Escrevo este post ainda com o gosto do teu filme nos olhos: tremor nas pálpebras e resquícios de lágrima. É um sentimento doce.
Já te agradeci pessoalmente por escolher contar uma história de amor nestes dias tão feios, mas talvez devesse lhe dizer algo mais… ou talvez não. Talvez o filme, como um corpo dotado de sua própria alma, é o único que tenha algo realmente válido a ser dito. Às vezes penso que a crítica não tem nada a colaborar com determinada obra, mas sou um aquariano teimoso.
Quando tua voz, quente, empresta ao filme mais uma camada de memória, a tua memória, inventada ou não, meu peito estufa apavorado. As cartas de Lúcia e Oswaldo, por si só, já tinham feito seu papel: eu já estava desconcertado, gravemente sem jeito, incomodado por olhar tão intimamente para a alma impressa naquelas imagens. Sua voz (e o misterioso amor a quem ela se direciona) poderia soar como um palimpsesto, mas escapa da armadilha e me surpreende: revela-se cúmplice daquela história de amor.
Essa voz, tua e do próprio filme, você chamou de pacto – com Lúcia e suas cartas de amor, com as imagens e as memórias que elas evocam em si mesmas.
Imagem e memória habitando a tela em coexistência. Poesia.
Gosto de como o filme foge do saudosismo e prefere a saudade. Vibro quando corta da senhora saudosa de romantismo para a imagem dos carteiros, devidamente uniformizados sob um sol legitimamente carioca. Trabalhar cansa.
Fiquei com a ideia fixa de que aquelas cartas, celulose e tinta, eram o próprio cinema (tela e movimento). Letras são corpos que bailaram no papel e deixaram, ali, um rastro, uma imagem. O que esses corpos-letras traçaram em sua caligrafia dançada, é rastro, espírito – memória?
Tenho para mim que teu filme, que quer contar uma história de amor, encontrada uma feira tal qual uma antiguidade, constrói também sua declaração apaixonada: pelas cidades e sua arquitetura, pelas pessoas e suas histórias, saudades, destinos; pelas próprias imagens que carregam (e que carregam, em si, um mundo de significados possíveis). Carta que vira filme, que volta a ser carta, missiva de amor, monumento.
Não tem sido fácil acordar brasileiro e sei que, para você, o caminho nunca foi simples ou descomplicado. Decidir seguir o rastro de uma história de amor e transformar essa busca em filme é, como disse um personagem do teu filme, um ato de fé. Outra vez: obrigado.
Que outras histórias de amor te achem e, como os ventos de agosto, baguncem teus cabelos – e tuas ideias.
Corpo. “Constituição ou estrutura física de uma pessoa ou animal, composta por, além de todas suas estruturas e órgãos interiores, cabeça, tronco e membros. Qualquer substância material, orgânica ou inorgânica: corpo sólido. Parte material do animal, especialmente do homem, por oposição ao espírito; materialidade.” Substantivo. Masculino?
É através do corpo que nos apresentamos ao mundo, a nós mesmos, aos outros corpos. O espelho, a morte e o sexo refletem nossa corporeidade, dizia Foucault, apontando o corpo como lugar e, antes, como utopia.
Através do corpo, instrumento de conexão com o ambiente que nos rodeia, aprendemos sobre outros corpos, e também sobre sua relação com o que os cerca.
Para as artes e para questões sociológicas mais profundas, o corpo representa quem somos e nos identifica como seres sociais: gênero, raça, orientação sexual, traços culturais que se desenvolvem de acordo com a vivência subjetiva e material, individual e coletiva.
Em seu texto de estreia, Wanderson Viana celebra os 20 anos do lançamento de Madame Satã, percebendo em seu próprio corpo o corpo filmado da protagonista de Aïnouz. Letícia Oliveira traça uma análise perspicaz entre o corpo e o som. Matheus Alvarenga, também em estreia, lança provocações sobre a série A Diarista. Gustavo Guilherme da Conceição entrega uma declaração de amor ao filme Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem, de Natara Ney. Além disso, por ocasião de seu lançamento, revisitamos um texto sobre Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira. Por fim, o Podcast Reimagem convida Suely Bispo para falar da arte do corpo e da alma: a atuação.
Nesta edição, consideramos o corpo como um território sensorial e social, (im)possível através da observação e experimentação de si enquanto ferramenta performática, social, emissora e propagadora de signos, receptora de julgamentos e críticas e, enfim, e por si só, como equipamento fundamental na constituição de sua própria existência.
As relações entre corpo e som perpassam muitas vertentes: biológica, comportamental, filosófica, acústica, psíquica, e muitas outras. Os estudos que correlacionam corpo e som tem seu ponto de partida na gestação, onde começamos a perceber o outro – a mãe – através de como ela ressoa. O mundo nos aparece, antes de tudo, pelo som, que é a primeira forma e, talvez, a mais transversal pela qual temos acesso ao mundo no qual vivemos.
Pesquisas que dizem respeito ao som sempre foram relacionadas ao sentido da visão, como encontramos em ensaios e pesquisas científicas de um passado recente, onde som e audição não se dissociam da visão, tratados como um só sistema. Por ser abstrato e, por vezes, denso em sua própria existência, é que muitos fatores sobre o entendimento do som passaram despercebidos durante tanto tempo.
A associação que o senso comum ocidental faz a respeito de que, para compreender o som, é preciso saber ler e escrever em notação tradicional, partituras e estruturação harmônica musical, limita muito o acervo e acesso ao conceito tão abrangente do que de fato compõe o som. Resumir som apenas ao fazer musical nos traz a impressão de que som é pura e simplesmente organização de alturas em um espaço limitado de tempo.
Um dos equívocos mais latentes entre pesquisadores do som e, especificamente, música, é a análise de conceitos outrora considerados musicais e sonoros, que na verdade pouco tem de documentação sonora – o que faz com que a falta de tato para este tipo de pesquisa tenha muitos pontos sem nós. Exemplo disso são análises de letras de música ou de contextos socioculturais e históricos que levam em consideração não o som ou sua manifestação e manipulação, mas sim os detalhes que complementam a execução musical e sonora em si. Analisa-se muito mais o contexto externo do que o som propriamente dito.
A distinção de áreas de interesse nas pesquisas também é caminho denso, já que somos expostos ao som desde antes do nascimento, e os determinantes que separam as áreas de estudo confundem-se ou misturam-se de diversas maneiras. Antropologia, estética, artes, literatura, história… O som passa por diversos contextos e essa associação influencia diretamente o produto final da pesquisa.
Outras vertentes de pesquisa em som relevantes nas últimas décadas são as interações e desenvolvimento de interfaces sonoras para além da utilização do som em formato musical e de entretenimento, como a ecologia acústica (soundscape ecology), que visa compreender os sons em sua forma natural, ou seja, a ambiência sonora em seu contexto de origem, seja geológico ou antropogênico. Em resumo, estuda o que as paisagens sonoras entregam e como influenciam nossa existência enquanto indivíduos biológicos e sociais.
Onde estamos nós enquanto sujeitos que produzem, vivem e absorvem o som? Quais interpretações podemos construir de nosso papel no processo de assimilação desse fenômeno?
Identidade psíquica do corpo enquanto sujeito sonoro
O corpo é, antes de mais nada, nossa maneira primária de ter contato com nós mesmos enquanto indivíduos, com outros indivíduos e com o meio que nos cerca: é através do corpo que conhecemos outros corpos e a relação entre eles e o mundo que os cerca. É no corpo que se encontram as regras, valores e normas da sociedade no qual este se desenvolve.
Para as artes da performance e, ainda, mais a fundo na questão sociológica, o corpo representa o que somos e nos identifica enquanto seres sociais: gênero, etnia, sexualidade, traços culturais que são adquiridos de acordo com o desenvolvimento de cada um em seu próprio contexto… Além disso, é alvo de redescobertas em relação a nossas capacidades cognitivas e o ambiente ao nosso redor, o que estimula a criação de novas perspectivas e ambientes que são aproveitados não só pelo deleite artístico em si, mas que também dá a luz a reflexões políticas, discussões sobre a existência humana do ponto de vista natural (biológico) e também influencia no desenvolvimento de novas tecnologias em vários âmbitos, como o da inteligência artificial e engenharia genética.
Durante o período clássico da arte, o corpo era interpretado e representado como algo perfeito, referência ao celestial. O maior exemplo disso é a ideologia grega, onde os corpos refletiam os ideais da religião vigente na sociedade da época. As esculturas mostram os objetivos perfeitos da sacralidade que o corpo significava naquele momento. A partir das vanguardas dos anos 1920’s, a centralidade do corpo sofre impactos relevantes, onde passa a ser ele o foco da obra, com indagações que perpassam toda a pluralidade de sua existência e transfiguração enquanto integrante ativo e subjetivo da sociedade, da natureza e de sua própria constituição: o corpo agora é organismo vivo e protagonista de si mesmo.
Outra mudança notável é a descentralização do corpo que representa o artista que o cria; o corpo agora passa a ser alvo de indagações sociais, culturais, políticas e existenciais que ultrapassam a individualidade de quem o cria.
A performance também traz o corpo em sua existência híbrida, seja no teatro, na dança, nas interações das pessoas com o meio em que vivem e com a tecnologia; em artes audiovisuais como a videoarte, que surgiu na década de 1960 como antítese das artes comerciais e suas relações com novas perspectivas de existência. A partir dos anos 1920 ‘s, a relação entre arte e tecnologia cresce e se ressignifica com uma velocidade imensa.
Corpo e arte sonora
Em arte sonora, a relação entre arte e tecnologia se deu, de certa forma, pela evolução dos campos de conhecimento do desenvolvimento acústico e psicoacústico do som e o aumento no leque de possibilidades da produção e manipulação sonora através de meios eletrônicos. A partir disso, surgiram vários dispositivos que nos permitiram a gravação e geração de sons sem a exigência de maior aporte contextual e histórico para fazê-lo: eram pura e simplesmente sons. Essa mudança nos trouxe um espectro que viabilizou inúmeros novos modos de percepção e recepção sonora.
Se agora podemos registrar o som, podemos substituir e modificar a performance, rever o significado de reprodução mecânica do som (e da música), assim como o que de fato remete à performance sonora em si e o conceito de escuta, que outrora estava intrinsecamente conectado ao ato da performance. O que antes era possível apenas em aglomerações e espaços públicos, onde ocorriam os concertos e apresentações, agora é viável através dos meios eletrônicos de reprodução sonora em espaços domésticos, o que nos traz uma nova categoria de escuta: a escuta individualizada. Além disso, os modos de escuta tornam-se parte do processo criativo da obra – não resumindo-se apenas a performance, e o espectador passa a ser parte crítica e crucial da obra, pois agora a recepção sonora é parte do processo cultural da arte sonora.
A tecnologia aqui atua na modificação e criação de novos processos de percepção do som, onde agora o contexto histórico e cultural não é mais definidor, e a reprodução sonora é o centro da recepção do som. Não precisamos mais justificar – por meio de performance e cenário – o fazer sonoro, já que podemos executar e manipular o som através de meios eletrônicos em qualquer lugar que possibilite acesso aos recursos necessários. O som agora passa a ser matéria prima, sem que conceitos musicais sejam considerados e sequer cogitados ao pensar a obra. Para o artista, a manipulação dos meios eletrônicos e do som é suficiente para que se pense arte, o que ultrapassa o conceito do século anterior (XIX) e nos traz uma dimensão além para os processos de escuta e absorção sonora.
Audição
“Audição é um sentimento que nos mergulha no mundo, enquanto a visão nos remove dele.” (David Novak, 2015)
Nosso cérebro percebe e associa os sons ao redor, e os compreende para entender o ambiente em que estamos: é assim que se dá o processo de percepção auditiva em humanos. Esse processo ocorre desde antes de nascermos – a partir do terceiro mês de gestação, quando as vibrações externas passam pelo fluido intrauterino, estabelecendo ali a conexão sensorial entre o feto e o mundo exterior. É nesse momento que a memória auditiva começa a se formar.
Produção, propagação e percepção do som envolvem conceitos físicos, biológicos, artísticos e psíquicos relacionados às faculdades humanas, além de princípios físicos naturais como vibração, frequência, período, velocidade, comprimento de onda, energia, pressão, ressonância, etc.
Quando nos deparamos com novas posturas de escuta, contextualizadas no fazer sonoro contemporâneo, temos em evidência duas questões importantes: a primeira delas é a ressignificação da contemplação da obra de arte sonora, que passa a não depender mais da performance in loco e do performer, e colocamos um novo elemento no processo de execução: a eletricidade.
A tecnologia mediou e reconstruiu a distância entre emissor e receptor de mensagens e obras sonoras, o que tornou possível o rompimento entre a origem e a emissão sonora (esquizofonia). O que hoje nos parece obsoleto foi, na época, crucial para um ponto muito importante na história das comunicações, transmissão e recepção de mensagens (aqui, temos mensagem como algo a ser comunicado, o que engloba também o conceito de obra de arte, visto que arte é também mensagem a ser comunicada), ao ampliar o contato e alcance da escuta, o que transformou, e muito, nosso conceito de ambiência sonora.
Com a alteração na maneira de manipular e perceber o som através da eletricidade – amplificação – a noção de escuta foi modificada, ampliada e inserida em novos aspectos, o que alterou padrões de execução sonora de várias maneiras, como por exemplo na possibilidade de lidar com sons antes inaudíveis, na mudança nos padrões estéticos da voz cantada e no surgimento de novas modalidades de interpretações de obras sonoras e musicais que fizeram parte de outros contextos históricos e culturais. Agora, além de releituras, aqui podemos refazer uma mesma obra através de diversos parâmetros sonoros diferentes.
Graças a essas mudanças, começamos a conviver com dinâmicas sonoras antes inimagináveis até mesmo do ponto de vista acústico. O meio não é mais empecilho para a execução sonora, e o limite criativo se expandiu de forma exponencial. A escuta passa a ser individual, imersiva. Compreendemos a mensagem enviada, mas o contato com o emissor se torna dispensável: sequer sabemos onde ele está, porque agora o conceito de som independe de sua origem, e pode ser ressignificado de maneiras infinitas.
Isso afeta, por consequência inevitável, a produção cinematográfica, onde as representações outrora impossíveis de serem inseridas numa narrativa tornam-se palpáveis, e muitos sons eletrônicos começam a fazer parte do fazer musical, como efeitos de reverberação e eletrificação de instrumentos. A complexidade das nuances sonoras que passam a ser incorporadas à nossa percepção começa a construir infinitos novos caminhos. Aqui, podemos retomar o conceito de esquizofonia, que pode ser considerado uma ferramenta poderosa para trabalhar sound design em cinema e na arte contemporânea, porque é na distância entre o som e sua fonte emissora (natural) que surgem sentidos não premeditados atribuídos à linguagem artística. Isso garantiu o aporte necessário para a mescla de elementos outrora desconectados (como por exemplo som emitido por baleias ser associado ao som de grilos para a criação de objetos sonoros híbridos em narrativas sonoras).
A função da arte aqui possui muitas variações que antes não faziam parte do espectro: sua função comunicativa expande-se para ambientes mais complexos que independem de contexto cultural vigente, e desvinculam-se de padrões estéticos ou éticos adquiridos. Agora, a arte passa a investir ainda mais na pluralidade da existência humana, unindo, de certa forma, padrões composicionais e de manipulação mistos, tornando o leque de matéria prima dos criadores muito mais extenso.
Os debates entre emissão, recepção e assimilação da obra de arte sonora passam a ser infinitamente mais complexos que antes, o que acaba por tornar essa simbiose ainda mais interessante para todas as partes do processo: esse embate faz parte do aproveitamento e deleite de uma obra de arte e, de alguma forma, faz com que o interlocutor atribua diversos sentidos, de diversas maneiras.
O conceito de corpo em arte contemporânea e, especificamente, como centro e centralizador da obra de arte, do significado de arte sonora desde antes de seu acontecimento e da criação da relação entre arte e tecnologia nos trazem infinitas reflexões. Conhecemos o potencial subjetivo e protagonista de nossa própria existência, e sua influência na existência de outros, que materializa e potencializa as experimentações e transfigurações artísticas e naturais pelas quais as várias sociedades estiveram e estão sujeitas no decorrer da história de sua formação e transformação simbiótica.
Os artistas contemporâneos, a partir dos anos 1920’s, visavam o corpo através de sua infinita capacidade de expressão, sua materialidade palpável e subjetiva e, ainda, pelo desenvolvimento das técnicas pós revolução industrial – com a evolução da tecnologia – que fez parte de diversos âmbitos do cotidiano. Arte e tecnologia sempre estiveram relacionadas, quer seja através das artes visuais, performáticas ou sonoras, quer seja em outras manifestações da existência humana, guiando os conceitos e comportamentos de escuta e construindo a história do som como matéria-prima pura, e dissociando a consciência da audição dos outros sentidos.
Quem viveu no Brasil nos anos 2000 com certeza se lembra do marco da televisão nessa época. Sem smartphones e com baixo entretenimento digital, os anos 2000 proporcionaram produções audiovisuais que ditaram moda e pautaram os assuntos discutidos na época, bem como a vestimenta das pessoas e seus gostos.
Uma dessas produções foi a clássica série A Diarista, que reverbera até hoje no gosto popular e gera debates acerca de estética, comportamento e do teor humorístico aceito na época, que deu o tom e o contexto daquela produção.
Escrita por Gloria Perez, Maria Mariana, Bruno Mazzeo e Aloísio de Abreu, A Diarista conta a história de uma diarista do Rio de Janeiro que vive histórias para lá de engraçadas. A ideia é ilustrar, de maneira exagerada, situações do dia a dia que os brasileiros vivenciavam no trabalho, no transporte público e até em seus locais de diversão.
Protagonizada por Cláudia Rodrigues, que vivia Marinete, A Diarista teve sua primeira exibição no ano de 2004 e última em 2007 e possui 4 temporadas, que começavam a ser exibidas no início de cada ano e finalizadas, no fim deles.
Entre os ingredientes daquela obra, os amigos de Marinete:
Solineuza (Dira Paes), a “Poia”, apelido dado por Marinete, pois ela era a personagem ‘burra’; Seu Figueirinha (Serjão Loroza), o chefe mesquinho de Marinete, constantemente hostilizado por seu corpo gordo e sua cor; Dalila (Cláudia Mello), a amiga macumbeira de Marinete, constantemente hostilizada por sua mediunidade/simpatias; Ipanema (Helena Fernandes), a amiga fora dos padrões femininos, constantemente hostilizada por tal.
Todos esses ingredientes eram misturados a um outro: a elite carioca daquele tempo, os patrões de Marinete, que a rebaixavam por ser pobre e diarista.
Todas as representações de seres humanos fora dos padrões de comportamento e aparência da sociedade eram servidas ao público como ‘humor’. Nos tempos de hoje, A Diarista seria hostilizada por grande parte do público justamente por esse feito. Um dos grandes problemas da série é que, pelo teor humorístico com minorias, constantemente eram apresentadas cenas de black face, prática já fortemente rechaçada hoje em dia.
A série parecia suportar apenas pessoas que seguem os padrões da sociedade e ignorar alguns participantes dela, como homossexuais, que possuíam pequenas participações em alguns episódios e, quando apareciam, era sempre de modo caricato, com empregos que reforçavam estereótipos – como o cabelereiro afeminado, por exemplo.
A espiritualidade na série está fortemente ligada à religião cristã, já que todo e qualquer personagem que pense diferente dessa ideologia, é criticado, como Dalila por exemplo (personagem cuja fé estava ligada a uma religião de matriz africana).
Além disso, Marinete vivia reclamando de seu cabelo, alegando ser “ruim”, o chamando de “bombril” um cabelo crespo. Serjão Loroza, que vivia Figueirinha, possuía um papel bem peculiar. Além de mesquinho, ele ironizava o fato de ser um ‘negão’ e acima do peso. Apesar do corpo fora dos padrões, Seu Figueirinha era um personagem hiper sexualizado, que reforçava estereótipos de promiscuidade de pessoas pretas, sobretudo com frases como: “não aguenta o negão”, “o do negão é maior” etc.
Figueirinha também reforçava estereótipos sobre o corpo gordo, já que constantemente aparecia comendo banquetes e mais banquetes, como se o corpo gordo só fosse assim por conta de algum descontrole alimentar. Tal comportamento se repetia em Dalila, que também era gorda.
A Diarista, assim como grande parte das produções dos anos 2000, não ligava para o politicamente correto e investia pesado naquele famoso humor clichê, com “piadas de gordo”, “piadas de loira” e “piadas de macumbeiro”, não respeitando religiões de origem não cristã, tampouco o corpo e ou a sexualidade das pessoas.
Sobre o ambiente de diversão em que viviam as personagens, era o mais insalubre possível quando se tratava de Marinete e suas amigas, justamente para gerar a impressão de que pessoas pobres não possuem acesso a locais de qualidade, reservados apenas para a elite carioca, ou seja, gente como os patrões de Marinete, que sempre apareciam em locais mais sofisticados, enquanto a pobre diarista ocupava, constantemente, os botequins malcuidados da cidade.
O reforço desses estereótipos fazia um belo desserviço para a população consumidora daquele sucesso. Isso porque a Rede Globo, quando os inseria com naturalidade na produção, também gerava certa naturalidade no dia a dia. Ou seja, se as pessoas já riam disso, possivelmente passariam a reproduzir tais preconceitos contra gordos, pessoas pretas, homossexuais, pobres e de religiões com vieses diferentes dos cristãos.
O machismo também era algo bastante presente, já que as mulheres sempre eram objetificadas pelos próprios personagens, como Seu Figueirinha. Um dos episódios que mais deixa explícito (S02E17), foi um em que Ipanema participou de um ensaio fotográfico para ganhar um dinheiro extra e foi perseguida por dias, por vários homens com comportamentos primitivos.
Além de ser perseguida, Ipanema recebeu o desprezo de suas amigas, ao invés de apoio, pois ela teria tecnicamente “roubado” todos os homens só para ela. Um comportamento bizarro que tecia, ali, um comentário certeiro a respeito da união entre os homens e a ideia de “rivalidade feminina”.
Vale ressaltar que, naquele mesmo episódio, assim que outra mulher posou para o calendário, no mês seguinte, Ipanema foi esquecida e deixada de lado, como um brinquedo que ninguém quer mais brincar e larga numa gaveta do armário.
Vimos mais um exemplo de objetificação da mulher e de LGBTfobia no episódio 14 da 1ª temporada, onde Marinete atende uma patroa que quer evitar seu ex-namorado. Para despistá-lo, esta inventa que Marinete era sua nova namorada.
Durante todo o episódio, várias ofensas à comunidade LGBT eram proferidas com o intuito de gerar humor. A própria justificativa da patroa era estapafúrdia: criar um relacionamento homossexual mentiroso apenas para despistar o boy? Como diria Isabela Boscov: “Ah, tenha santa paciência!”
Como pode ser observado, são vários os problemas na obra da Rede Globo, mas deve-se ponderar o contexto em que ela foi exibida. A sociedade agia dessa forma, talvez até mais do que atualmente, e A Diarista apenas reproduzia, de maneira exagerada e caricata, os comportamentos, ao mesmo tempo que os reforçava.
Apesar dos movimentos a favor de cada minoria citada já existirem na época, não tinham tanta força quanto nos dias de hoje. Com a democratização do acesso à internet, a informação tomou conta de vários espaços onde a ignorância imperava, fazendo com que o audiovisual se moldasse aos novos costumes da sociedade.
É possível que A Diarista tenha sido uma excelente série nos anos em que foi exibida, mas hoje, com certeza, seria um desserviço para a televisão brasileira pela carga preconceituosa que carregava.
Sem dúvidas, um marco de altíssima qualidade, mas perigoso para os dias atuais, já que objetificava o corpo e reduzia as espiritualidades não cristãs a mera chacota social.
O corpo filmado em Madame Satã atravessou o meu próprio durante confuso percurso, passos vacilantes sobre incertezas cotidianas, pensamentos e sentimentos que brotaram e me fizeram refletir a respeito das sensações que o corpo em tela pode causar em mim. Um misto de admiração, fascínio, desejo e por que não, medo?
Madame Satã rompe com qualquer necessidade de aceitação social, e parte para o combate e quebra de normas socialmente construídas que ansiavam seu extermínio. O corpo é a peça que norteia o filme de Karim, uma vez que ele – o corpo – é seguido com muita proximidade por uma câmera que, hipnotizada, parece querer sentir e roçar na textura e no calor da pele da personagem: “o macho, a musa, a travesti e o marginal” (Rebeca Bussinger).
Logo nos primeiros minutos do longa de Karin, somos convidados a observar o corpo de Satã: negro, elegante, artista e transformista, ombros nus, Satã está enquadrada em primeiro plano. Observamos demoradamente a superfície da pele maltratada, ferida. Em off, a voz do delegado – ou de outrem com autoridade similar – nos apresenta “o desordeiro frequentador da Lapa nos anos 1932, do Rio de Janeiro”, “o pederasta que usa sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas”, “fuma e bebe”, “não gosta do convívio da sociedade, por ver que esta o repele dado os seus vícios”.
Observamos que o corpo é usado como agravante para qualquer que seja o delito que ela tenha cometido. Seu corpo negro, gay e fora-da-lei a torna culpada. Catalogado como aberração e marginalizado será, o corpo considerado desviante. E somente lhe será permitido existir, se abandonado, onde será garantida sua total ou parcial invisibilidade social: não o vejo na universidade, não o vejo no escritório, nunca nem mesmo o vi servindo mesas em bares ou restaurantes que frequento, logo, não existem ou pelo menos estou protegido e distante de suposta ameaça.
O diretor Karim Aïnouz nos presenteia com duas performances posicionadas no terço final do longa. Aïnouz opta por nos entregar um corpo em fragmentos filmados de maneira a transbordar do quadro. Uma câmera cheia de intenções a perseguir o corpo de Satã bem de perto. Um olhar háptico “que te convida a pequenos eventos, ao grão e a textura”.
O convite ao toque, que se relaciona com uma forma sensória de produzir conteúdo audiovisual, está presente em diversos momentos deste filme, o chamado cinema háptico, percebido tanto na fotografia quanto no som das texturas, possibilita ao espectador outra maneira de dar atenção à superfície de imagens. Um olhar mais demorado e hesitante sob os corpos e texturas filmados de perto.
O filme de Karim estará pairando em um possível desconforto, inquietações, identificação, vergonha, excitação, entre tantas possibilidades subjetivas ao ser espectatorial.
A câmera percorre as personagens, e o resultado que assistimos é uma valsa guiada pelo corpo, e não por enquadramentos milimetricamente organizados pelo que vê a câmera, como é de costume. O que interessa é o que está além do ótico. Observamos em Madame Satã, no bailar do foco que se perde e se encontra novamente. As imagens são apresentadas em pedaços, que dentro da proposta do cinema sensorial, encorajam o espectador a convocar a imaginação, e completar os fragmentos, agregando memórias sensuais aos vestígios deixados.
Durante o longa, observamos Satã e seu processo de tomada do próprio corpo. Logo após a cartela que carrega o título do filme, bordada em lantejoulas onde se lê “Madame Satã”, estamos em um cabaré. Homens bem penteados e becados parecem ignorar o número sensual de Vitória, mulher branca, loira, bem maquiada de meia idade, que declama o famoso conto árabe das Mil e Uma Noites.
Satã acompanha com prazer a performance de Vitória, o texto já decorado indica que ela já viu aquela mesma apresentação uma porção de vezes. Saboreia cada gesto. Sua pele roça e sente as texturas das paredes, dos enfeites e dos tecidos. O toque está visível e audível, as texturas estão próximas à tela, para que o espectador também possa sentir o desejo carnal da personagem.
Os blocos de sequências iniciais se alternam entre convívio social de Satã no cabaré, e nas ruas escuras e bares da Lapa, Rio de Janeiro. No primeiro ambiente, Satã se relaciona diretamente com Vitória, a quem ele se dirige com respeito e admiração; e também o patrão. Na Lapa, Satã estará entre aqueles que ela mesma elegeu como sua família: Laurita, prostituta, amiga, e esposa; a filha de Laurita, Firmina; Tabu, amigo e cúmplice, e Renatinho, o amante.
Quando no cabaré, assistimos uma Madame Satã contida, subserviente e de fala mansa, que se abaixa para dar ouvidos à Vitória sentada no camarim. Vitória mal a olha nos olhos, e esnoba seus elogios. Para Vitória apenas interessa as mãos que a servem. Este parece ser um ambiente hostil para Satã, e seu portar refreado denuncia que ela o sabe.
Em casa e nos bares que frequenta na Lapa, bairro onde vive, Satã é o macho, bravo, cafetão, protetor, autoritário e chefe de família. Conhecido pelos golpes de capoeira, e por não levar desaforos para casa. Ela vive duas personalidades, ambas as performances ainda utilizadas com a finalidade de proteção do próprio ser.
No cabaré Satã existe por um desejo. Nos diálogos está explicitado que ali ela não está pelo dinheiro, mas fascinada pelo micro espetáculo que é realizado todas as noites, há dois anos, por Vitória. As roupas e o brilho, os gestos delicados, o tom suave da voz, e a maquiagem, tudo encanta. E quando resolve externar o desejo, e veste o figurino da apresentação da patroa, amolece os gestos e o tom de voz, é que as relações de poder são escancaradas. Vitória irrita-se ao ver Satã em suas roupas e se vale de injúrias raciais para constrangê-la. Não seria muito atrevimento este preto querer ser artista? Ele só pode ser doido! E nesse movimento de opressor versus oprimida, que Satã se rebela. Seu corpo parece lhe impor uma existência submissa, a qual ela não pretende aderir. E se nascer preto é estar destinado à senzala e à inferioridade, e subverter a tal realidade imposta é levar uma vida marginalizada, e passível de castigos, então é a esta segunda alternativa a qual Satã vai se agarrar. “[…] nasci para ter vida de malandro, e vou levar é rasgada!”[1].
No filme de Karim Aïnouz, o espectador assiste ao momento exato em que Satã decide tomar para si por direito seu próprio corpo.
Em outra passagem do filme, na entrada do clube bacanudo “High Life”, Satã é barrada: vagabundo não entra! Episódio que faz Satã questionar se há este nome escrito em sua testa: Vagabundo. Ora, o que a torna um “vagabundo” aos olhos de outro? Quais são as características impressas no corpo de um vagabundo? O silêncio posterior da personagem no caminho de volta para casa, em sequência a revolta e o diálogo com Laurita, onde ela questiona as atitudes de Satã, ao que Satã responde que gostaria de se “endireitar”. Este é o onde acredito que a personagem toma consciência de seu próprio corpo. O conjunto de uma vida de injúrias, onde ela percebe que o seu corpo a condena. Mas aqui, Satã ainda é puro caos e não sabe o que fazer agora que descobriu que está nesse corpo. O que é “se endireitar”?
Satã se deixa prender injustamente. Como redenção, na tentativa de conter o “bicho” que habita dentro dela.
Anos depois, em liberdade, ela ainda parece presa. Contida embaixo do blazer e do cabelo bem escovado, permanece o corpo rebelde. Satã sabe que seu corpo existe, e que lhe pertence, e o fato de existir em evidência é uma afronta.
As coisas parecem as mesmas. Laurita e Tabu ainda vivem na mesma casa. Laurita, porém, é mensageira da novidade que abala Satã: a morte de seu amado, Renatinho. A notícia da morte do amante enche Satã de vida. Buscando tomar para si seu próprio corpo, é que Satã põe em evidência tudo o que a torna abjeto socialmente. Veste o traje social do ridículo, viado, bicha e chupa-rola. A plenitude do ser que nasce com a subversão, com o rompimento da necessidade de aceitação social. Aquele corpo a pertence, e sua condição marginal imposta será celebrada.
Satã se agarra a sua primeira oportunidade, e graças a sua sagacidade adquirida, e os bons amigos, nasce “Madame Satã” nos palcos dos bares da Lapa.
“Vivia na maravilhosa China um bicho tubarão, bruto e cruel, que mordia tudo, e virava tudo em carvão. Pra acalmar a fera, os chinês fazia todo dia uma oferenda com sete gato maracajá que ele mordia antes do pôr do sol. No ímpeto de por fim a tal ciclo de barbaridades chegou Jamacy, uma entidade da floresta da Tijuca. Ela corria pelos matos e avoava pelos morro. E Jamacy virou uma onça dourada, de jeito macio, de gosto delicioso(grrr) e começou a brigar com o tubarão, por 1001 noites. No final, a gloriosa Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucados que ninguém sabia mais quem era um, quem era outro. E assim, eles viraram uma coisa só: a Mulata do Balacochê”[2]. João recita os versos em um momento chave do longa, segundos antes de subir ao palco para sua primeira apresentação. Seguro, erótico, e selvagem. Senhor de seu corpo, e disposto a leva-lo até a última consequência de sua existência.
A narrativa recitada em cena pela personagem captura e revela sua própria trajetória e seu embate interno, entre o lutador, em constante movimento e rebelião, apontado por Laurita como homem de atitudes semelhantes a bicho e um devir feminino, gracioso de voz mansa. Ele transitava entre a leveza e a rigidez de seu corpo.
Satã celebra seu corpo no palco, pintado e reluzente. Tudo nela goza em liberdade. Seus cabelos, seus movimentos corporais, sua voz e seus desejos. Aqui o cineasta exibe sua afeição e curiosidade por esse corpo. A câmera nos traz o suor, as rugas em sentidas expressões faciais, o foco que trabalha em função do corpo, em se perder e revelar. Tudo visto de muito perto, ao alcance do toque dos olhos do espectador.
O corpo do espectador é convidado ao arrebatamento de sensações, através de intensidades que transbordam dos sujeitos filmados. Em Madame Satã, o espectador antes que possa notar, se vê envolvido carnalmente na dança, independente da orientação sexual que norteia seu desejo.
De alguma maneira essa sensorialidade existente no filme de Karim, alinhada à narrativa guiada por esse corpo em processo de tomada de consciência existencial no mundo, proporciona ao espectador uma experiência carnal e erótica ao acompanhar o cotidiano de Madame Satã. A obra convida o espectador a experimentar ou minimamente compartilhar a sensação de consciência do próprio corpo.
[1] Trecho extraído do diálogo da personagem durante o filme de Karim Aïnouz.
[2] Trecho extraído do texto do filme de Karim Aïnouz, Madame Satã, pela Professora Geisa Rodrigues do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Madame Satã: A voz do corpo negro, teve publicação na Revista Universitária do Audiovisual, da mesma universidade em 2009.
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