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Críticas Vol. 03 - Nº 05 - 2022

Para Natara

Espero que esta te Encontre e que Estejas Bem (Natara Ney, 2020)

Querida Natara,

Escrevo este post ainda com o gosto do teu filme nos olhos: tremor nas pálpebras e resquícios de lágrima. É um sentimento doce.

Já te agradeci pessoalmente por escolher contar uma história de amor nestes dias tão feios, mas talvez devesse lhe dizer algo mais… ou talvez não. Talvez o filme, como um corpo dotado de sua própria alma, é o único que tenha algo realmente válido a ser dito. Às vezes penso que a crítica não tem nada a colaborar com determinada obra, mas sou um aquariano teimoso.

Quando tua voz, quente, empresta ao filme mais uma camada de memória, a tua memória, inventada ou não, meu peito estufa apavorado. As cartas de Lúcia e Oswaldo, por si só, já tinham feito seu papel: eu já estava desconcertado, gravemente sem jeito, incomodado por olhar tão intimamente para a alma impressa naquelas imagens. Sua voz (e o misterioso amor a quem ela se direciona) poderia soar como um palimpsesto, mas escapa da armadilha e me surpreende: revela-se cúmplice daquela história de amor.

Essa voz, tua e do próprio filme, você chamou de pacto – com Lúcia e suas cartas de amor, com as imagens e as memórias que elas evocam em si mesmas.

Imagem e memória habitando a tela em coexistência. Poesia.

Gosto de como o filme foge do saudosismo e prefere a saudade. Vibro quando corta da senhora saudosa de romantismo para a imagem dos carteiros, devidamente uniformizados sob um sol legitimamente carioca. Trabalhar cansa.

Fiquei com a ideia fixa de que aquelas cartas, celulose e tinta, eram o próprio cinema (tela e movimento). Letras são corpos que bailaram no papel e deixaram, ali, um rastro, uma imagem. O que esses corpos-letras traçaram em sua caligrafia dançada, é rastro, espírito – memória?

Tenho para mim que teu filme, que quer contar uma história de amor, encontrada uma feira tal qual uma antiguidade, constrói também sua declaração apaixonada: pelas cidades e sua arquitetura, pelas pessoas e suas histórias, saudades, destinos; pelas próprias imagens que carregam (e que carregam, em si, um mundo de significados possíveis). Carta que vira filme, que volta a ser carta, missiva de amor, monumento.

Não tem sido fácil acordar brasileiro e sei que, para você, o caminho nunca foi simples ou descomplicado. Decidir seguir o rastro de uma história de amor e transformar essa busca em filme é, como disse um personagem do teu filme, um ato de fé. Outra vez: obrigado.

Que outras histórias de amor te achem e, como os ventos de agosto, baguncem teus cabelos – e tuas ideias.

Espero que esta te encontre e que estejas bem.

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Vol. 02 - Nº 04 - 2021

Para além do “pandêmico”

Dois mil e vinte nunca acabou. Dois anos em um. Até agora. “A Pandemia”: assim chamamos um período inteiro de caos na saúde pública regido por um (des)governo inegavelmente irresponsável. Adotamos um adjetivo e até o utilizamos para nomear alguns projetos, algumas ideias: “pandêmico”. 

Nesse momento conturbado, porém, muita gente produziu filmes, séries, videoclipes, vídeos ensaios, webséries e toda uma complexidade de registros audiovisuais muito diversa, boa parte a fim de capturar alguma coisa desse período específico. Isolados, aqui ou em qualquer parte do mundo, produzimos como nunca e, produzindo, dissemos (ou não) muitas coisas.

Penso que, nesse instante interminável, um tema nos sobrevoa. Falamos de vivências e de morte, de lutas e resistências; destruímos e (re)construímos imagens com nossos corpos, com nossas dores, com nossas angústias e, também, com mistérios que redesenham e/ou redescobrem imaginários, que fabulam sobre passados, presentes e futuros (im)possíveis.

Somos, portanto, talvez mais do que sempre fomos, agentes de memória. Eis nosso tema “pandêmico” por excelência. A memória do que fomos e do que estamos sendo e do que poderemos ser em um futuro próximo.

Sobre as imagens que, nesse tempo, tecemos em tela, pode-se dizer então que costuramos um memorial atemporal. Afirmamos a vida através de nossos corpos, filmamos nosso cotidiano mais banal, ou nosso desejo mais abissal, nossas insignificâncias e nossos atravessamentos. Em nossos corpos traspassados, renegados, marginalizados, traçamos velhos e novos imaginários. Repudiamos um país que nos agride e inventamos outras pátrias, outros mundos, outros universos, outros futuros. Revisitamos ruínas e perscrutamos escombros, escavando e redescobrindo histórias que, um dia, foram roubadas de nossos ancestrais. Sobrevivemos e vivemos… e como vivemos! Ressuscitamos nossos mortos, viajamos no tempo e através dos espaços, sobretudo desses espaços espúrios que nos reservaram, adentramos suas portas e derrubamos suas paredes com a violência das nossas imagens-memórias, porque esse registro memorial não se detém aos limites impostos, não necessita de máscaras e obstáculos; tudo quer e pode ser visto.

É sob o prisma deste registro desmedido da memória e do direito à memória que penso essa lista, não numerada e sem ordem de preferência, desejoso que ela se encontre – e seja encontrada – em um território capaz de observá-la com algum carinho, sabendo que essa lista/memorial não se contenta em ser “pandêmica”, apesar do tempo em que foi construída. Uma lista de filmes e séries deste tempo, deste agora interminável, mas que também inventa outros tempos (ontens, hojes, amanhãs):

Uma Noite Sem Lua (Castiel Vitorino Brasileiro, 2020)

Pode ser visto aqui: https://telatrans.com.br/filme/uma-noite-sem-lua/

Voltei! (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)

Inabitável (Enock Carvalho e Matheus Farias, 2020)

Petite Maman (Céline Sciama, 2021)

Manhãs de Setembro (Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, 2021)

Primeira temporada disponível no serviço de streaming Prime Video.

Madres Paralelas (Pedro Almodóvar, 2021)

The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade (Barry Jenkis, 2021)

Série completa disponível no serviço de streaming Prime Video.

Memória (Apichatpong Weerasethakul, 2021)

Noche de Fuego (Tatiana Huezo, 2021)

República (Grace Passô, 2020)

Pode ser visto aqui: https://vimeo.com/423769303

Crash (Juçara Marçal, 2021)

https://www.youtube.com/watch?v=zhgmtLuEJq0