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Vol. 03 - Nº 05 - 2022

Madame Satã: um corpo filmado

Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002)

O corpo filmado em Madame Satã atravessou o meu próprio durante confuso percurso, passos vacilantes sobre incertezas cotidianas, pensamentos e sentimentos que brotaram e me fizeram refletir a respeito das sensações que o corpo em tela pode causar em mim. Um misto de admiração, fascínio, desejo e por que não, medo?

Madame Satã rompe com qualquer necessidade de aceitação social, e parte para o combate e quebra de normas socialmente construídas que ansiavam seu extermínio. O corpo é a peça que norteia o filme de Karim, uma vez que ele – o corpo – é seguido com muita proximidade por uma câmera que, hipnotizada, parece querer sentir e roçar na textura e no calor da pele da personagem: “o macho, a musa, a travesti e o marginal” (Rebeca Bussinger).

Logo nos primeiros minutos do longa de Karin, somos convidados a observar o corpo de Satã: negro, elegante, artista e transformista, ombros nus, Satã está enquadrada em primeiro plano. Observamos demoradamente a superfície da pele maltratada, ferida. Em off, a voz do delegado – ou de outrem com autoridade similar – nos apresenta “o desordeiro frequentador da Lapa nos anos 1932, do Rio de Janeiro”, “o pederasta que usa sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas”, “fuma e bebe”, “não gosta do convívio da sociedade, por ver que esta o repele dado os seus vícios”.

Observamos que o corpo é usado como agravante para qualquer que seja o delito que ela tenha cometido. Seu corpo negro, gay e fora-da-lei a torna culpada. Catalogado como aberração e marginalizado será, o corpo considerado desviante. E somente lhe será permitido existir, se abandonado, onde será garantida sua total ou parcial invisibilidade social: não o vejo na universidade, não o vejo no escritório, nunca nem mesmo o vi servindo mesas em bares ou restaurantes que frequento, logo, não existem ou pelo menos estou protegido e distante de suposta ameaça.

O diretor Karim Aïnouz nos presenteia com duas performances posicionadas no terço final do longa. Aïnouz opta por nos entregar um corpo em fragmentos filmados de maneira a transbordar do quadro. Uma câmera cheia de intenções a perseguir o corpo de Satã bem de perto. Um olhar háptico “que te convida a pequenos eventos, ao grão e a textura”.

O convite ao toque, que se relaciona com uma forma sensória de produzir conteúdo audiovisual, está presente em diversos momentos deste filme, o chamado cinema háptico, percebido tanto na fotografia quanto no som das texturas, possibilita ao espectador outra maneira de dar atenção à superfície de imagens. Um olhar mais demorado e hesitante sob os corpos e texturas filmados de perto.

O filme de Karim estará pairando em um possível desconforto, inquietações, identificação, vergonha, excitação, entre tantas possibilidades subjetivas ao ser espectatorial.

A câmera percorre as personagens, e o resultado que assistimos é uma valsa guiada pelo corpo, e não por enquadramentos milimetricamente organizados pelo que vê a câmera, como é de costume. O que interessa é o que está além do ótico.  Observamos em Madame Satã, no bailar do foco que se perde e se encontra novamente. As imagens são apresentadas em pedaços, que dentro da proposta do cinema sensorial, encorajam o espectador a convocar a imaginação, e completar os fragmentos, agregando memórias sensuais aos vestígios deixados.

Durante o longa, observamos Satã e seu processo de tomada do próprio corpo. Logo após a cartela que carrega o título do filme, bordada em lantejoulas onde se lê “Madame Satã”, estamos em um cabaré. Homens bem penteados e becados parecem ignorar o número sensual de Vitória, mulher branca, loira, bem maquiada de meia idade, que declama o famoso conto árabe das Mil e Uma Noites.

Satã acompanha com prazer a performance de Vitória, o texto já decorado indica que ela já viu aquela mesma apresentação uma porção de vezes. Saboreia cada gesto. Sua pele roça e sente as texturas das paredes, dos enfeites e dos tecidos. O toque está visível e audível, as texturas estão próximas à tela, para que o espectador também possa sentir o desejo carnal da personagem.

Os blocos de sequências iniciais se alternam entre convívio social de Satã no cabaré, e nas ruas escuras e bares da Lapa, Rio de Janeiro. No primeiro ambiente, Satã se relaciona diretamente com Vitória, a quem ele se dirige com respeito e admiração; e também o patrão. Na Lapa, Satã estará entre aqueles que ela mesma elegeu como sua família: Laurita, prostituta, amiga, e esposa; a filha de Laurita, Firmina; Tabu, amigo e cúmplice, e Renatinho, o amante.

Quando no cabaré, assistimos uma Madame Satã contida, subserviente e de fala mansa, que se abaixa para dar ouvidos à Vitória sentada no camarim. Vitória mal a olha nos olhos, e esnoba seus elogios. Para Vitória apenas interessa as mãos que a servem. Este parece ser um ambiente hostil para Satã, e seu portar refreado denuncia que ela o sabe.

Em casa e nos bares que frequenta na Lapa, bairro onde vive, Satã é o macho, bravo, cafetão, protetor, autoritário e chefe de família. Conhecido pelos golpes de capoeira, e por não levar desaforos para casa. Ela vive duas personalidades, ambas as performances ainda utilizadas com a finalidade de proteção do próprio ser.

No cabaré Satã existe por um desejo. Nos diálogos está explicitado que ali ela não está pelo dinheiro, mas fascinada pelo micro espetáculo que é realizado todas as noites, há dois anos, por Vitória. As roupas e o brilho, os gestos delicados, o tom suave da voz, e a maquiagem, tudo encanta. E quando resolve externar o desejo, e veste o figurino da apresentação da patroa, amolece os gestos e o tom de voz, é que as relações de poder são escancaradas. Vitória irrita-se ao ver Satã em suas roupas e se vale de injúrias raciais para constrangê-la. Não seria muito atrevimento este preto querer ser artista? Ele só pode ser doido! E nesse movimento de opressor versus oprimida, que Satã se rebela. Seu corpo parece lhe impor uma existência submissa, a qual ela não pretende aderir. E se nascer preto é estar destinado à senzala e à inferioridade, e subverter a tal realidade imposta é levar uma vida marginalizada, e passível de castigos, então é a esta segunda alternativa a qual Satã vai se agarrar. “[…] nasci para ter vida de malandro, e vou levar é rasgada!”[1].

No filme de Karim Aïnouz, o espectador assiste ao momento exato em que Satã decide tomar para si por direito seu próprio corpo.

Em outra passagem do filme, na entrada do clube bacanudo “High Life”, Satã é barrada: vagabundo não entra! Episódio que faz Satã questionar se há este nome escrito em sua testa: Vagabundo. Ora, o que a torna um “vagabundo” aos olhos de outro? Quais são as características impressas no corpo de um vagabundo? O silêncio posterior da personagem no caminho de volta para casa, em sequência a revolta e o diálogo com Laurita, onde ela questiona as atitudes de Satã, ao que Satã responde que gostaria de se “endireitar”. Este é o onde acredito que a personagem toma consciência de seu próprio corpo. O conjunto de uma vida de injúrias, onde ela percebe que o seu corpo a condena. Mas aqui, Satã ainda é puro caos e não sabe o que fazer agora que descobriu que está nesse corpo. O que é “se endireitar”?

Satã se deixa prender injustamente. Como redenção, na tentativa de conter o “bicho” que habita dentro dela.

Anos depois, em liberdade, ela ainda parece presa. Contida embaixo do blazer e do cabelo bem escovado, permanece o corpo rebelde. Satã sabe que seu corpo existe, e que lhe pertence, e o fato de existir em evidência é uma afronta.

As coisas parecem as mesmas. Laurita e Tabu ainda vivem na mesma casa. Laurita, porém, é mensageira da novidade que abala Satã: a morte de seu amado, Renatinho.  A notícia da morte do amante enche Satã de vida. Buscando tomar para si seu próprio corpo, é que Satã põe em evidência tudo o que a torna abjeto socialmente. Veste o traje social do ridículo, viado, bicha e chupa-rola. A plenitude do ser que nasce com a subversão, com o rompimento da necessidade de aceitação social. Aquele corpo a pertence, e sua condição marginal imposta será celebrada.

Satã se agarra a sua primeira oportunidade, e graças a sua sagacidade adquirida, e os bons amigos, nasce “Madame Satã” nos palcos dos bares da Lapa.

“Vivia na maravilhosa China um bicho tubarão, bruto e cruel, que mordia tudo, e virava tudo em carvão. Pra acalmar a fera, os chinês fazia todo dia uma oferenda com sete gato maracajá que ele mordia antes do pôr do sol. No ímpeto de por fim a tal ciclo de barbaridades chegou Jamacy, uma entidade da floresta da Tijuca. Ela corria pelos matos e avoava pelos morro. E Jamacy virou uma onça dourada, de jeito macio, de gosto delicioso(grrr) e começou a brigar com o tubarão, por 1001 noites. No final, a gloriosa Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucados que ninguém sabia mais quem era um,  quem era outro. E assim, eles viraram uma coisa só: a Mulata do Balacochê”[2]. João recita os versos em um momento chave do longa, segundos antes de subir ao palco para sua primeira apresentação. Seguro, erótico, e selvagem. Senhor de seu corpo, e disposto a leva-lo até a última consequência de sua existência.

A narrativa recitada em cena pela personagem captura e revela sua própria trajetória e seu embate interno, entre o lutador, em constante movimento e rebelião, apontado por Laurita como homem de atitudes semelhantes a bicho e um devir feminino, gracioso de voz mansa. Ele transitava entre a leveza e a rigidez de seu corpo.

Satã celebra seu corpo no palco, pintado e reluzente. Tudo nela goza em liberdade. Seus cabelos, seus movimentos corporais, sua voz e seus desejos. Aqui o cineasta exibe sua afeição e curiosidade por esse corpo. A câmera nos traz o suor, as rugas em sentidas expressões faciais, o foco que trabalha em função do corpo, em se perder e revelar. Tudo visto de muito perto, ao alcance do toque dos olhos do espectador.

O corpo do espectador é convidado ao arrebatamento de sensações, através de intensidades que transbordam dos sujeitos filmados. Em Madame Satã, o espectador antes que possa notar, se vê envolvido carnalmente na dança, independente da orientação sexual que norteia seu desejo.

De alguma maneira essa sensorialidade existente no filme de Karim, alinhada à narrativa guiada por esse corpo em processo de tomada de consciência existencial no mundo, proporciona ao espectador uma experiência carnal e erótica ao acompanhar o cotidiano de Madame Satã. A obra convida o espectador a experimentar ou minimamente compartilhar a sensação de consciência do próprio corpo.


[1] Trecho extraído do diálogo da personagem durante o filme de Karim Aïnouz.

[2] Trecho extraído do texto do filme de Karim Aïnouz, Madame Satã, pela Professora Geisa Rodrigues do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Madame Satã: A voz do corpo negro, teve publicação na Revista Universitária do Audiovisual, da mesma universidade em 2009.