A ideia inicial dessa edição era celebrar de alguma forma os 100 anos da Semana da Arte Moderna de 22. Mas as palavras seguem vivas e pulsantes na reta final de um (des)governo que, antes mesmo de assumir o controle do país, desvalorizava nossa História, nossa Cultura, nossa Arte e a importância de nossa complexidade enquanto brasileiros.
Por quatro anos, tudo que nos foi oferecido pelo governo vigente foi aquele mesmo conteúdo da bolsa de colonoscopia do início de mandato. Em vários formatos, conteúdos e texturas, todas as questões para as quais procuramos solução nos foram respondidas com uma enchurrada da mais fétida merda.
Agora, ao final dessa desgraça, o Palácio começa a ser esvaziado e vemos as obras de arte que de lá saem: é como presenciar a escatologia de um corpo já apodrecido por fora e por dentro, um “líder” que alimentava-se tanto de seu próprio ego que era capaz de cagá-lo (ainda que pela autoria de outros) em forma de quadros cafonas e esculturas patéticas.
Estamos todos cansados e, nessa onda, limitar a um tema seria contraproducente. Abrimos, então, a caixa dos sonhos.
Neste volume, Gustavo Guilherme imagina um paralelo entre dois sucessos de crítica e de público no cinema em 2022, os filmes Nope, de Jordan Peele, e Marte Um, da Gabriel Martins; Letícia Oliveira descreve a ideia de “gosto” como uma contrução social; Matheus Alvarenga revisita o Movimento Antropofágico com olhares voltados para os dias atuais; PH Martins observa o estilo de uma das cineastas mais relevantes da contemporaneidade e Renata Costa, em texto revisitado e republicado por nós especialmente para este volume, fala sobre o grande filme brasileiro da temporada, Marte Um.
Enlevo. Enternecimento. As palavras eleitas para iniciar esta resenha crítica informam a produção de sentidos a partir do olhar compreendido em um cinema do íntimo a cruzar nossos olhos com distinção e delicadeza, no narrar do cotidiano de uma família negra no subúrbio do estado de Minas Gerais.
Acompanhamos Tércia (Rejane Faria), a matrona, Wellington (Carlos Francisco), o patriarca, e os filhos: o ainda menino Deivinho (Cícero Lucas) e a jovem Eunice (Camila Damião), todos, necessário dizer, em absoluta imersão em suas personagens, com destaque para Rejane Faria.
A família crava a seu modo, posição defronte da rudeza constrangedora que traz a carestia econômica, o corte temporal está situado no governo atual, após a posse do atual presidente, o inominável.¹
A família negra no filme é, pode-se dizer, mais uma das personagens, composta pelo pai, Wellington, amoroso, alcoolista em recuperação, trabalhador em um edifício de classe média, Tércia, a matrona, é trabalhadora doméstica para o artista Tokinho, personagem que interpreta a si mesmo no longa. Eunice é acadêmica de Direito e Deivinho, criança e estudante, cujo sonho irá colidir com o projeto paterno.
Deivinho e Eunice mobilizam afetos a partir de suas escolhas e tecem alianças de irmãos, o silêncio no caso da dupla é cumplicidade e aceitação da orientação sexual de Eunice pelo irmão mais novo, e apoio da irmã ao projeto de Deivinho. Assim secretos, ambos refletem o papel das boas relações familiares em uma atmosfera composta pelo movimento de evocar o íntimo e o reconfortante.
Marte Um recupera, de certo modo, temas já discutidos de outras maneiras por lançamentos do cinema nacional recente (como Medusa de Anita da Silveira de 2021, e Carro Rei de Renata Pinheiro também de mesmo ano) com a distinção sem a qual este filme seria certamente outro: a racialidade.
No entanto, há linhas de fuga importantes aqui e diálogo com a perspectiva apontada por Mariana Queen Nwabasili em artigo para a plataforma Indeterminações:
Ao se tornarem repetição e tendência, esses formatos podem evidenciar que a exploração comum de recursos entre esses realizadores (negros) são, entre outras coisas, reflexo da positiva facilitação de acesso a meios para a criação (filmagem, montagem e finalização) de filmes por artistas de determinados grupos sociais. Porém, junto aos debates e reivindicações por representação-representatividade, a tendência parece apresentar também desgastes e vícios estético-narrativos que raramente têm conseguido ser superados para filmes, de fato, singulares e inovadores artística, narrativa e discursivamente. (A ‘representação-representatividade’ não irá nos salvar – Parte II: ‘Tirania da subjetividade’ e comoditização das diferenças. Plataforma Indeterminações, 2022)
Na chave do cinema de Gabriel Martins há ginga em caminhar no campo das visualidades de uma experiência social negra no Brasil sem se deixar capturar pelo gozo sobre corpos negros em tela, comum a muitos filmes (inclusive do cinema negro). A recusa ao um ponto de partida que emula as violências coloniais e imbrica poder, domesticação e desejo é o que nos emociona , nessa família tudo é sobre o amor.
Importante recuperar Denise Ferreira da Silva no artigo À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo no qual ela desvela as camadas do erótico colonial estruturante para pessoas negras a deslizar ora para a posição de objeto, ora para um sujeito a ser devorado pela outridade branca. Nem paixão (que embora não determinada pela razão institui um sujeito na medida em que a pessoa afetada é determinada por certo objeto), nem amor (que também se refere a um modo de afeição,de um desejo destrutivo. (página 18, 2006)
A direção opera um mergulho profundo em lirismo e densidade ao optar em distintos momentos pela não-narrativa, ou seja há espaço para silêncio, sussurro, o olhar com vagar passeando pelas personagens, e a respiração, não há pressa, podemos nos emocionar, indignar e nos pôr imersos em sequências repletas de elementos ordinários cotidianos apresentados como arte. A chave das tensões encadeadas em desigualdades múltiplas, binarismos, violências de todo tipo, racismos é periférica na narrativa e se une em um incidente incitante a partir de Tércia, sobre o qual trabalho em detalhe no tópico um destes escritos.
Intenciono no esteio dessa proposta de resenha assentar três chaves a saber: Feminino Impossível, Amor como cura e abertura, e Masculinidades Negras – Integração e sensibilidade, a partir delas teço uma reflexão ativa encadeada em singulares referências, afinal compreendo o filme como algo da ordem que filia-se a uma anterioridade, e por vezes dialoga com certo zeitgeist. No caso de Marte Um, esse espírito da época está informado pela apresentação e representação das histórias das famílias negras em campos distintos da arte brasileira como a literatura e a cinematografia feita por artistas afro-brasileiros.
Este jogo de forças nos mostra no espelho um rosto, quem nos olha de lá do passado?
FEMININO IMPOSSÍVEL
Eu comecei a me perguntar: por que havia essa sensação fantasmagórica na existência rotineira de alguém? Por que essa sensação de um fantasma, de um duplo [doppelganger] chamado John Akomfrah ocupando o “lado de fora” do meu “lado de dentro” nessas narrativas nacionais? Por que, por exemplo, apesar dos inúmeros esforços para pertencer da minha parte, o espectro da diferença espreitava cada movimento meu? Por que, apesar da crescente evidência ao contrário, eu era incessantemente advertido: “não seja tão sensível, somos todos iguais. Não há nada de errado”? E então por que, a meu ver, havia essa sensação de que tinha “algo errado”? (AKOMFRAH, John. Memory and the morphologies of difference. In: SCOTTINI, M.; GALASSO, E. (orgs.). Politics of memory. Berlim: Archive Books, 2015.)
Tércia é uma das primeiras em tela, no lotação, ao lavar a louça, apaziguar os conflitos entre pai e filha, a auxiliar o filho, acompanhamos esta mulher negra interrogar-se, angustiar-se a partir de um episódio jocoso, indelicado, violento por ela vivido. O incidente revela uma fissura dentro de um corpo contido em si mesmo. Gabriel com seu roteiro parece interrogar, de quais modos sepultamos as cinzas em nós do que foi queimado? Há poder de morte e vida a operar para corpos como os dela. Para onde vai esse arfar seco e abafado pelo ordinário? Em uma realidade social sem acalanto fácil e livre e atenta escuta para mulheres como Tércia a ferida aberta traga a vida, em sua rotina ela inicia um processo de insônia, de temor do próprio poder (enquanto imagina que sua presença chama a morte² e o infortúnio) e ao encontro com a necessidade de pausar diante de um mundo insaciável a devorar o tempo, as oportunidades de vida digna, e o próprio espaço para se constituir sujeito, mulher, nome próprio.
Há um feminino negro a habitar uma zona impossível de se revelar em pujança, inteireza e poder até que se operem alguns encontros geracionais e intelectuais. O contraponto é a ponte para linhas de afirmação do amor e da vivência dos desejos.
Os olhos perdidos de Tércia somam divagações, devaneios, escapes, deles vazam cenas, as quais ocultam um desejo intenso e em luta para se apresentar; sem elaboração, ele comparece como revolta, violência e o terror de uma vida sem descanso, onde não se dorme, na qual o tempo é um trabalhador atento e arguto cuja força a personagem busca aplacar, modelar no terreiro. Para então, deslocar-se do lugar do cuidado e da abnegação, para ir do consumir-se até a exaustão à pausa, ao sono na cadeira de praia, ao lado de sua família, lugar de muitos afetos e angústias de mãos dadas.
São diversas as autoras a tratar do tema da solidão e do lugar do indizível na experiência de ser uma mulher negra e ocupar a posicionalidade de um feminino sempre invadido e interditado. Sobre ele já dissertaram em suas personagens Ana Maria Gonçalves, Eliane Alves Cruz, Toni Morrison, Conceição Evaristo, Alice Walker, Maya Angelou, Paulina Chiziane, Marilene Felinto com substância, e sem sombra de dúvida bell hooks e seu tino ético na reflexão sobre o amor. Creio firmemente no cruzamento destes campos inspiracionais e dos romances a informar o cinema de Gabriel, mais uma vez, zeitgeist.
Jogar uma moeda para o poço dos desejos e resgatá-la com sorte é o mérito do roteiro ao apresentar a personagem Eunice, filha de Tércia, uma jovem uma mulher negra a amar outra mulher negra, no longa ela apresenta-se com muita delicadeza e coragem diante da família, vemos em cena um horizonte de angústia se transmutar a partir da próxima geração de mulheres consubstanciada em Eunice, importante pontuar que esta perspectiva não inaugura um outro campo de enunciação para mulheres negras sendo retratado no cinema brasileiro.
Há certo tempo um cinema feminino negro e de uma estética queer e/ou feminista se desdobra em obras importantes ao redor do mundo como Rafiki de Wanuri Kahiu, e autorias outras brasileiras como as de Grace Passô, Renata Martins e Viviane Ferreira, alguns dentre muitos exemplos da construção de obras onde o feminino negro é múltiplo, escapa da captura pela outridade.
Sem ingenuidades ou floreios da realidade brasileira, o amor entre mulheres é apresentado como caminho constituidor, de cuidado, afetos verdadeiros capazes de oferecer abrigo e acolhida, espaço onde o feminino negro se transmuta em rota oposta a da alienação de si.
AMOR COMO CURA E ABERTURA– FAMÍLIA NEGRA E REARRANJO
A ternura como percurso é uma escolha do filme ao lançar luz sobre episódios triviais, mas nem por isso menos repletos de afeto, desde o cuidado com a parceira para a produção de um momento marcante a duas, no improviso, no cuidado, desde outros momentos nos quais o amor se revela como abertura para o outro.
Impossível não rememorar outro longa clássico do cinema negro cuja protagonista empreende uma busca na construção do amor interior e da segurança em assumir outras posicionalidades, em Losing Ground a diretora Kathleen Collins, falecida precocemente aos 46 anos de idade, se dedica a esmiuçar o íntimo das relações afetivo-sexuais entre mulheres e homens negros.
Assim como bell hooks em sua dedicada investigação em Love Trilogy, na qual começa desestabilizando o amor como substantivo e aproximando-o de um horizonte espiritual e ético-político de ação, portanto verbo, a deslizar menos pelo campo da fantasia e mais pelo da ação e da implicação para promoção de crescimento mútuo. É nesse campo de uma ternura repleta de ações simples a inundar o longa é que fazem da família negra lugar de cura e rearranjo contínuo diante da impermanência do viver.
A família negra é continuamente descrita na literatura a partir do que foi perdido, dos desencontros promovidos pela diáspora e seus efeitos, ao escolher caminhar em terreno novo, Marte Um inaugura uma posição já ensaiada pelos brasileiros Joel Zito em As Filhas do Vento, afinal, como esquecer Dona Léa Garcia dançando como menina na chuva ao lado da irmã? Por Jefferson De em Luiz Gama, ao representar a personagem do biografado ao lado de sua família.
Entretanto o que nesses filmes falta devido ao tamanho da empreitada que seus diretores intencionam realizar, sobra em Marte Um; não há uma tentativa de preencher o silêncio, de explicar o vivido e sim de entender como ele acontece, como fazer uma vida habitável em meio a um contexto de uma grande crise democrática sem cindir completamente?
Os horizontes de abertura entre as personagens se alongam à medida que fazem escolhas para compor uns com os outros, ainda que os projetos de Pais e filhos colidam com intersecções etárias, de gênero e de legado.
A memória é um fio fino e resistente trançada por Tércia ao contar para Deivinho do avô, ao trazer em uma mala³ seus objetos, fotografias do passado e contar do ancestral e dele como sua continuidade. Essas políticas da memória comparecem no terreiro, na história do Pai com a constituição de uma beleza negra com o cabelo black power na juventude em espelhamento com a adoção do mesmo pela filha, ainda que agora a adoção estética esteja composta de outras posições. A partir destas políticas da memória, um retrato fiel do passado não é o objetivo, mas a compreensão de que nossas memórias são também criação, presente espiralado.
MASCULINIDADES NEGRAS – INTEGRAÇÃO E SENSIBILIDADE
Wellington, o patriarca, é um simpático homem negro de meia idade, porteiro, gentil, projeta sonhos de glória sobre o filho Deivinho, cuja postura audaz ensina e emoldura uma bela ideia da infância como fase da vida de criação dos nossos sonhos. Torcemos por ele, desejamos vê-lo realizando seus intentos.
O pai é um homem comum, torcedor aficionado de seu time, amante da mulher e cuidadoso com os filhos, vive imprensado sobre o verniz de um trabalho precarizado, sem regulamentação adequada com a síndica, sua empregadora a cruzar limites remetendo a dinâmicas senhoriais e coloniais na partilha do trabalho dos funcionários do prédio, que em dado momento se convertem em “funcionários dela” exercendo atividades para as quais não são pagos mas que assentem em fazer para não gerar atrito, mal-estar e, claro, demissão.
Acompanhamos um alcoolista em recuperação na busca de criar uma vida vivível nas margens de um sonho de emancipação econômica , as angústias e o silêncio repleto de paixão e afeto da personagem na cena na qual entrega uma cadeira reformada como simbólico da herança paterna e do legado familiar para sua filha, que está saindo de casa sob seu protesto são do mais puro apuro e singeleza.
A masculinidade de Wellington é repleta de contradição, ambiguidade, e humanidade, a delicadeza com que apresenta seu amor, pede colo e é cuidado pelos seus4 demonstra em tela na contraluz os projetos das famílias negras brasileiras como fato cotidiano, ordinário e belo. Marte Um, o planeta vermelho, o sonho de Deivinho revela a falência de um projeto de nação no qual se torna impossível sonhar, o desejo de escape opera sob uma zona de sonho-invenção, beleza e ausência de uma terra firme, talvez no espaço possa-se ser outro eu, em plenitude no gozar a vida. Sonharemos um dia com a possibilidade de habitar este planeta sem sucumbir ao cotidiano em muitos momentos, mortal para corpos negros?
O filme encerra nos devolvendo um enigma para o futuro.
1 O filme marca sua linha temporal após a posse do Presidente Jair Messias Bolsonaro, o projeto do político marca a entrada do Brasil em uma guinada à extrema direita. Com um governo marcado pela ruptura com os pactos democráticos, a tortura, ao extermínio de povos originários, e um forte fundamentalismo evangélico, o Brasil retornou a figurar em listas que já havia deixado como a da insegurança alimentar que hoje atinge cerca de ⅓ da população brasileira segundo dados da OXFAM, batemos também o índice de mortalidade materna durante a pandemia, de cada 10 grávidas morrendo no mundo no auge da pandemia 8 viviam no Brasil. No auge da pandemia o presidente imitou uma pessoa morrendo de falta de ar de modo jocoso, a piada de mau gosto, mau agouro se traduz em mais de seiscentos mil mortos durante o auge da COVID-19. Em tempo, a primeira morte registrada por COVID no Brasil foi a de uma trabalhadora doméstica negra, profissão que a personagem Tércia tem no longa.
2 Em dado momento ao se crer amaldiçoada, Tércia tateia algo que vaza de si mesma em articulação com o escárnio coletivo diante do vivido pela população brasileira no contexto atual de morte, escárnio sobre a própria vida dos brasileiros, com o cotidiano se apresentando como uma piada de péssimo gosto. Nas Ámericas uma boa reflexão sobre corpos negros , assombrações transgeracionais e poder está na entrevista da poeta Krista Franklin para The Yale Review: “Just living in the body of Blackness—the bodies of Blacknesses—means we are constantly walking with the dead. As Black people and as Black makers, we often feel in very close proximity to death, which is ever circling, like a vulture. There is the ever-present specter of a violent end, due to white supremacy and factors we have absolutely no control over. Because we have that specific relationship and understanding to death—because the hauntology is something we are constantly living in—our stories are full of those who have passed on, or who are passing on, or who have not yet arrived. Engaging with the dead is instructive: the people who came before us had to endure so much, from the transatlantic slave trade to the Civil Rights Movement. You had to be a strong person to persevere and stay alive in environments where you were not even deemed human. Our ancestors told their children to go places they knew they were not ever going to go themselves. They said to their children, “You can do better than me.” Through their collective imaginings, they opened the portals that make it possible for us to be in the world. Listening to the dead means harnessing some of that power.” Link: https://yalereview.org/article/hauntology-conversation
3 A metáfora da viagem perpassa as culturas afro-diaspóricas, um bom exemplo são os jongos e caxambus nos quais o mastro sempre rememora o mar, o simbólico das travessias, o primeiro ancestral da humanidade, em distintas manifestações culturais pretas a viagem é re-animada com narradores populares criando sobre a história do negro no Brasil. Escrevi sobre esta ideia nesta comunicação da 32ª Reunião Brasileira de Antropologia: https://www.32rba.abant.org.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=114 em uma outra chave analítica relacionada aos povos tradicionais. Uma referência sobre este tópico é a pesquisadora carioca Leda Maria Martins em sua publicação intitulada Afrografias da Memória sobre o campo religioso dos Reisados negros.
4 Impossível não fazermos referência a Barry Jenkins e ao emblemático Moonlight como diálogo possível sobre as visualidades das masculinidades negras e o campo vivo sobre o qual se movimentam articulando amor e afeto como possibilidade.
REFERÊNCIAS
AKOMFRAH, John. Memory and the morphologies of difference. In: SCOTTINI, M.; GALASSO, E. (orgs.). Politics of memory. Berlim: Archive Books, 2015.
HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução: Stephanie Borges Editora Elefante, 2021.
NWABASILI, Mariana Queen.A ‘representação-representatividade’ não irá nos salvar – Parte II: ‘Tirania da subjetividade’ e comoditização das diferenças. Plataforma Indeterminações, 2022
SILVA, Denise Ferreira da. À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo. Em: Estudos Feministas, Florianópolis, 14(1): 336, janeiro-abril/2006
Raising the Dead. Three writers on engaging and honoring their ghosts in: https://yalereview.org/article/hauntology-conversation
Escrevo este post ainda com o gosto do teu filme nos olhos: tremor nas pálpebras e resquícios de lágrima. É um sentimento doce.
Já te agradeci pessoalmente por escolher contar uma história de amor nestes dias tão feios, mas talvez devesse lhe dizer algo mais… ou talvez não. Talvez o filme, como um corpo dotado de sua própria alma, é o único que tenha algo realmente válido a ser dito. Às vezes penso que a crítica não tem nada a colaborar com determinada obra, mas sou um aquariano teimoso.
Quando tua voz, quente, empresta ao filme mais uma camada de memória, a tua memória, inventada ou não, meu peito estufa apavorado. As cartas de Lúcia e Oswaldo, por si só, já tinham feito seu papel: eu já estava desconcertado, gravemente sem jeito, incomodado por olhar tão intimamente para a alma impressa naquelas imagens. Sua voz (e o misterioso amor a quem ela se direciona) poderia soar como um palimpsesto, mas escapa da armadilha e me surpreende: revela-se cúmplice daquela história de amor.
Essa voz, tua e do próprio filme, você chamou de pacto – com Lúcia e suas cartas de amor, com as imagens e as memórias que elas evocam em si mesmas.
Imagem e memória habitando a tela em coexistência. Poesia.
Gosto de como o filme foge do saudosismo e prefere a saudade. Vibro quando corta da senhora saudosa de romantismo para a imagem dos carteiros, devidamente uniformizados sob um sol legitimamente carioca. Trabalhar cansa.
Fiquei com a ideia fixa de que aquelas cartas, celulose e tinta, eram o próprio cinema (tela e movimento). Letras são corpos que bailaram no papel e deixaram, ali, um rastro, uma imagem. O que esses corpos-letras traçaram em sua caligrafia dançada, é rastro, espírito – memória?
Tenho para mim que teu filme, que quer contar uma história de amor, encontrada uma feira tal qual uma antiguidade, constrói também sua declaração apaixonada: pelas cidades e sua arquitetura, pelas pessoas e suas histórias, saudades, destinos; pelas próprias imagens que carregam (e que carregam, em si, um mundo de significados possíveis). Carta que vira filme, que volta a ser carta, missiva de amor, monumento.
Não tem sido fácil acordar brasileiro e sei que, para você, o caminho nunca foi simples ou descomplicado. Decidir seguir o rastro de uma história de amor e transformar essa busca em filme é, como disse um personagem do teu filme, um ato de fé. Outra vez: obrigado.
Que outras histórias de amor te achem e, como os ventos de agosto, baguncem teus cabelos – e tuas ideias.
“…o soldado pensava que os primeiros sofrem de uma coragem de que ninguém nunca vai lembrar.”
Se narrar é costurar fragmentos, que tecido é esse que Os Primeiros Soldados tão intimamente tece em sua trama? Como transformar em narrativa cinematográfica uma história (ainda) não conhecida a respeito dos corpos afetados pela AIDS nos anos iniciais da crise da doença no Brasil?
As imagens nos encaram de volta, versáteis em textura e formato, afirmando sua existência enquanto construção/fabulação de uma memória silenciada, seja através de uma feição emudecida atrás da fumaça de um cigarro, ou do seio de uma travesti exibido orgulhosamente em via pública.
XXIV
“Mente pra mim.”
Há uma frágil linha que separa estes gestos: atuar e mentir. Não é necessário estudar artes cênicas para se tornar um mentiroso, mas alguma noção de cena, sobretudo no que diz respeito aos mecanismos persuasivos do gesto e da fala, pode transformar qualquer mentira em manchete de jornal.
Não há mentira em Os Primeiros Soldados. Há invenção — no ritmo dos gestos e olhares de Suzano, na composição da imagem que alude a trincheiras e prisões no hospital da cidade ou no modo como os corpos se tocam levemente enquanto compartilham de um cigarro. Mas há também um desejo por reinvenção, seja explicitamente, como quando o coro melancólico de uma canção se converte em um trocadilho divertido às vésperas da meia-noite do réveillon de 83, ou de modo mais sutil, como na delicada reconstrução de outra época, conturbada e assustadora para a população LGBT no Brasil e no mundo.
Na voz de Rose, entretanto, mentir é reimaginar possibilidades de futuro, porque nesse contexto (re)imaginado pelo ato de “fazer cinema”, até mesmo a morte pode ser reconfigurada — ao ponto de caber em duas caixas de remédio —, seja pela montagem que traz de volta ao filme a personagem de Massaro, ou pela própria textura alterada da imagem que, quando convertida em VHS, nos aproxima definitivamente daqueles corpos que, outrora desaparecidos, persistem vivos.
XIX
“…se essa praga é gay, a mãe dela é travesti!”
Renata Carvalho performa a própria vida. Um corpo travesti. Uma “corpa”, como diria Castiel Vitorino Brasileiro. Tão dona da própria palavra quanto das minúcias que compõem sua personagem — fragmentos de si mesma. Renata e Rose coabitam o mesmo corpo e entregam-se uma para a outra, em uma relação simbiótica que transgride os limites do plano cinematográfico e retribui o olhar de quem a observa. Uma existência que atravessa a superfície da imagem, seja cantando sobre um palco de boate ou quando nos encara de volta em um monólogo que se converte em diálogo com a câmera que, percebendo a dureza do semblante cansado de mulher, permite ser atravessada.
Aqui, a travesti é a mãe de todas as imagens.
VII
“…eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo, é isso o que eles fazem; e o que a gente faz é sobreviver sendo linda”
Para sobreviver em um mundo que trabalha incansavelmente pelo seu apagamento enquanto indivíduo, faz-se necessário roubar o controle de sua própria narrativa.
Nas cenas-dentro-da-cena, na boate, ainda não se pode prever, mas a concepção das imagens em breve se reorganizará: Rose, Suzano e Humberto assumem, com identidade e linguagem próprias, a coautoria de sua própria história — um filme dentro do filme. Sobrevive-se, então, nessas imagens que atravessam outras imagens.
Entre a inevitabilidade da morte e o desejo de manter-se vivo, Os Primeiros Soldados decide-se por “sobreviver sendo linda”. Pois se nos tentam matar desde que o mundo é mundo, nossa resposta está nos mínimos gestos de cada uma dessas personagens. A cada novo beijo apaixonado, sempre antecedido por um flerte delicioso (esse desejo de vislumbrar a própria vida refletida no olhar do outro), instaura-se uma declaração: entre beijos, baladas e fogos de artifício, permaneceremos vivas.
Dois mil e vinte nunca acabou. Dois anos em um. Até agora. “A Pandemia”: assim chamamos um período inteiro de caos na saúde pública regido por um (des)governo inegavelmente irresponsável. Adotamos um adjetivo e até o utilizamos para nomear alguns projetos, algumas ideias: “pandêmico”.
Nesse momento conturbado, porém, muita gente produziu filmes, séries, videoclipes, vídeos ensaios, webséries e toda uma complexidade de registros audiovisuais muito diversa, boa parte a fim de capturar alguma coisa desse período específico. Isolados, aqui ou em qualquer parte do mundo, produzimos como nunca e, produzindo, dissemos (ou não) muitas coisas.
Penso que, nesse instante interminável, um tema nos sobrevoa. Falamos de vivências e de morte, de lutas e resistências; destruímos e (re)construímos imagens com nossos corpos, com nossas dores, com nossas angústias e, também, com mistérios que redesenham e/ou redescobrem imaginários, que fabulam sobre passados, presentes e futuros (im)possíveis.
Somos, portanto, talvez mais do que sempre fomos, agentes de memória. Eis nosso tema “pandêmico” por excelência. A memória do que fomos e do que estamos sendo e do que poderemos ser em um futuro próximo.
Sobre as imagens que, nesse tempo, tecemos em tela, pode-se dizer então que costuramos um memorial atemporal. Afirmamos a vida através de nossos corpos, filmamos nosso cotidiano mais banal, ou nosso desejo mais abissal, nossas insignificâncias e nossos atravessamentos. Em nossos corpos traspassados, renegados, marginalizados, traçamos velhos e novos imaginários. Repudiamos um país que nos agride e inventamos outras pátrias, outros mundos, outros universos, outros futuros. Revisitamos ruínas e perscrutamos escombros, escavando e redescobrindo histórias que, um dia, foram roubadas de nossos ancestrais. Sobrevivemos e vivemos… e como vivemos! Ressuscitamos nossos mortos, viajamos no tempo e através dos espaços, sobretudo desses espaços espúrios que nos reservaram, adentramos suas portas e derrubamos suas paredes com a violência das nossas imagens-memórias, porque esse registro memorial não se detém aos limites impostos, não necessita de máscaras e obstáculos; tudo quer e pode ser visto.
É sob o prisma deste registro desmedido da memória e do direito à memória que penso essa lista, não numerada e sem ordem de preferência, desejoso que ela se encontre – e seja encontrada – em um território capaz de observá-la com algum carinho, sabendo que essa lista/memorial não se contenta em ser “pandêmica”, apesar do tempo em que foi construída. Uma lista de filmes e séries deste tempo, deste agora interminável, mas que também inventa outros tempos (ontens, hojes, amanhãs):
Uma Noite Sem Lua (Castiel Vitorino Brasileiro, 2020)
Voltei! (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)
Inabitável (Enock Carvalho e Matheus Farias, 2020)
Petite Maman (Céline Sciama, 2021)
Manhãs de Setembro (Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, 2021)
Madres Paralelas (Pedro Almodóvar, 2021)
The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade (Barry Jenkis, 2021)
As ranhuras na película da TV usada que compramos há dois anos têm aumentado consideravelmente. O que antes eram só pequenos arranhões que deformavam de leve a imagem proposta pelos pixels, agora, apresentam uma extensa faixa branca que cobre boa parte da tela. De onde vejo, as imagens não são mais as mesmas.
Tem sido uma experiência curiosa a de ver filmes, acompanhar festivais, produzir e estudar cinema nestes tempos de isolamento. É que, em casa, as telas parecem brilhar um tanto mais, convocando uma atenção que nem sempre nos cabe e que, às vezes, nos desatina de nosso foco: um filme passa na tv enquanto engatilho o twitter como se fosse uma extensão de minha percepção.
Tuíto, logo existo.
Carro Rei foi o primeiro filme que me chamou atenção na programação do 49º Festival de Cinema de Gramado – carros falantes e algum tipo de complô político já eram anunciados no trailer, coisas que têm minha atenção garantida desde muito cedo. Culpa do Carpenter e de sua Christine, que conheci em alguma noite do passado, quando minha atenção ainda se dedicava totalmente aos emissores de luz daquela TV antiga na casa dos meus tios… me encantei pela Christine do Carpenter muito antes de saber que existia uma Christine do King – a literatura viria a ser foco maior da minha atenção na adolescência, quando tudo que me interessava no cinema eram as sequências de terror juvenil americanas pós-Pânico.
Carro Rei começa com uma crônica ágil sobre uma mulher que dá a luz a um menino dentro de um automóvel. Essa criança cresce com o estranho dom de se comunicar com os carros. Carros serão também um negócio de família que o menino precisará levar adiante, mesmo que tenha outros planos de vida.
Na tela muito arranhada da minha TV, os rostos dos atores se desconfiguram dependendo de sua posição no enquadramento das cenas. Me sinto um tanto traído pelo aparelho, já que não recebo daqui o que o filme me envia de lá. O filme ainda é o mesmo?
Uma vez tocaram saxofone aos pés da minha janela enquanto assistia, pela primeira vez, um dos filmes do Decálogo, do Kieslowski. Era uma serenata para o vizinho. Não Amarás ganhou uma trilha sonora que mais soava como uma sessão do antigo Cine Privé, do canal Bandeirantes, e aquilo mudou para sempre minha percepção a respeito do filme.
Lembro de ter feito um post sobre isso.
Como daquela vez, o filme que me chega agora parece alterado por condições extra fílmicas. Não só pelo defeito na película da minha TV, mas principalmente pelo modo como as coisas se dão no filme da Renata Pinheiro: a tecnologia como extensão do corpo e da mente humana – ou seria o contrário?
Em Carro Rei, tudo surge com vontade de se assumir simbiótico: do filtro azulado aos nomes das personagens; o nascimento do menino Uno/Ninho e sua capacidade de se comunicar com os carros; a breve e divertida alusão à cena final de Holy Motors; ou o modo como o filme nos apresenta a personagem Mercedes (que, com uma espécie de farol acoplado em sua calcinha, traça um caminho vertical vermelho entre os carros mortos de um ferro velho): tudo grita por uma união perene entre homem e máquina.
Esse desejo encontra sua melhor expressão na figura de Zé Macaco, personagem interpretado por um Matheus Nachtergaele inspirado que, infelizmente, sofre demais na tela arranhada da minha sucata. Amo-o desde seu primeiro aparecimento, mas minha televisão me prega peças e o rosto do ator é repartido ao meio pelo cansaço de minha tv defeituosa.
Zé Macaco é uma espécie de evolução humana às avessas, um Homo Sapiens que evoluiu para macaco; o bicho, por causa do jeito que fala e se comporta, mas também o instrumento de trabalho. Poderia se chamar “Zé Macaco Hidráulico”, que tudo continuaria fazendo sentido. Uma evolução homem-ferramenta no processo de involução homem-bicho. Até o movimento de seu corpo regride do autoconhecimento adquirido pela prática do pole dance para uma dureza mecânica de um corpo devotado servilmente ao trabalho, dominado pela tecnologia inteligente batizada de “carro rei”.
Anotei uma palavra no meu celular enquanto via uma das cenas: “autômato”.
As tecnologias e seu modo de usar são, aqui, propositalmente invertidas: quem deveria controlar e manipular as máquinas é subserviente às suas vontades de máquina. Deste modo, torna-se impossível pensar a tecnologia como extensão de si, pois ela já não nos serve como instrumento ou ferramenta.
O discurso que perpassa o filme de Renata Pinheiro e serve de motivação para suas personagens, humanas ou não (já não faz diferença), talvez esteja em algum lugar entre: 1) uma crítica ao uso das tecnologias como um condicionamento decisivo da visão e da experimentação do mundo em detrimento de uma experiência mais direta, menos mediada pelas máquinas, com a vida e; 2) um discurso que busque um viés mais harmonioso e menos conservador, que vislumbre e viabilize possibilidades para essa convivência inevitável com o universo tecnológico que habita nosso cotidiano.
Alguém tuitou sobre o filme.
Achei anotado no celular assim que a exibição terminou: “…no filme tem essa planta que se alimenta dos resíduos da máquina e, na contracorrente do senso comum, brota e encontra um jeito de evoluir”.
A simbiose, afinal?
tuitar (para não esquecer): preciso consertar a tv.
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