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Vol. 03 – Nº 06 – 2022

Formas de olhar para cima

O Espaço Sideral, lugar de destino e fabulação no imaginário dos homens, ocupa certo lugar cativo no cinema. Assistimos guerras espaciais e aventuras estelares, sonhos que envolvem a existência de vida inteligente fora do planeta Terra, a ideia de outras civilizações, batalhas contra asteroides e alienígenas invasores, tecnologias extraterrestres, etc. O terreno da ficção científica, central ou plano de fundo das mais variadas narrativas, compõe o imaginário popular que se vale de criações elaboradas por incontáveis cineastas, de Andrei Tarkovski e seu drama existencialista em Solaris (1972) ao brasileiríssimo dedo na ferida de Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós. Aparentemente, gostamos de imaginar, daqui, os mistérios que estão além das estrelas.

Inseridos nesse universo, Não! Não Olhe! (Jordan Peele) e Marte Um (Gabriel Martins), ambos lançados em 2022, compartilham, cada um a seu modo, esse interesse pelo extra-terreno: no primeiro, como um mistério que se impõe sobre as personagens centrais e o lugar no qual estão inseridas; no segundo, como a motivação central do protagonista e, consequentemente, como força dramática que costura toda a narrativa. Duas formas de olhar (ou não) para cima.

Jordan Peele vem de duas obras muito celebradas. Corra! (2017) e Nós (2019) receberam bastante atenção na época de seus respectivos lançamentos, sendo que seu filme de estreia lhe garantiu, entre outros reconhecimentos, um Oscar que fez dele o primeiro homem negro a ganhar o prêmio na categoria de roteiro original. Logo de cara, um marco que colocaria sobre ele os olhos e a atenção de muita gente. Nós, seu filme seguinte, pode ter dividido a opinião de alguns aqui e ali, mas a mão do autor era, ainda, plenamente visível. Nessa toada, bastou que fosse lançado o trailer de sua mais nova empreitada para que inúmeras especulações começassem a rondar as redes. Nope, título aqui traduzido para Não! Não Olhe!, como era de se esperar, já entrou em cartaz sob uma áurea de excitação e altas expectativas por boa parte do público.

Por sua vez, o diretor mineiro Gabriel Martins, o Gabito, chegaria sozinho na condução de Marte Um após parcerias interessantes em co-direções de filmes como O Nó do Diabo (2017) e No Coração do Mundo (2019), este último em uma colaboração que já vinha de outros projetos com o também mineiro Maurílio Martins. Com a etiqueta da produtora Filmes de Plástico, formada pelos próprios Gabriel e Maurílio, mas também por André Novais Oliveira (outro grande nome do cinema mineiro contemporâneo) e o produtor Thiago Macêdo Correia, Marte Um ganhou o público rapidamente, chamou a atenção da crítica especializada e, quando tudo já parecia perfeito em sua carreira comercial, ainda foi selecionado para representar o Brasil na mesma premiação* que catapultou a carreira de Jordan Peele, o Oscar.

Mas o que realmente aproxima esses dois realizadores é o fato de serem ambos homens negros realizando filmes em uma indústria majoritariamente branca. Não por acaso, lá está o slogan da empresa familiar que protagoniza o filme americano, “since the moment pictures could move, we had skin in the game” (algo como “desde quando as imagens passaram a se mover, tínhamos a pele no jogo”), frase que toma para si o protagonismo de uma conhecida imagem de Eadweard Muybridge (abaixo), em uma invocação de ancestralidade a qual o próprio Gabito já havia recorrido em seu curta-metragem Rapsódia para um Homem Negro (2015), filme construído sob as nuances da relação entre Ogum e Oxossi, para dar texto e subtexto aos seus protagonistas, os irmãos Luiz e Odé.

Não! Não Olhe! acompanha o cotidiano de uma família negra de criadores/treinadores de cavalo (eles mesmos destacam: os únicos proprietários negros de cavalos em toda Hollywood) que se veem diante do desafio de manter a empresa funcionando após a morte do patriarca Otis, fatalmente atingido por um objeto misterioso que caiu do céu. Dentre as estratégias para manter tudo em pleno funcionamento, o filho mais velho Otis Jr., ou apenas OJ (Daniel Kaluuya), e sua irmã Emerald (Keke Palmer) chegam a vender um de seus cavalos para um rancho vizinho, onde funciona um parque temático cujo dono é um ex-ator mirim, interpretado por Steven Yeun, cujo show fora, muitos anos antes, encerrado por causa de uma tragédia brutal ocorrida no set de filmagens. De repente, eventos inexplicáveis começam a acontecer nos céus da Califórnia, sobre a região dos ranchos de OJ e Ricky (Yeun), mistérios que, por um lado, causam horror aos ocupantes daquele lugar, mas que, por outro viés, podem ser a oportunidade que eles precisavam para manterem-se vivos naquele caos.

Na lógica dos acontecimentos de Não! Não Olhe!, é coerente que, em certa altura da história, um dos personagens teorize a respeito do “monstro” que os assombra: talvez seja melhor não olhar diretamente para ele, já que isso o torna mais agressivo, mais perigoso. É como se o tal monstro fosse, talvez, uma espécie de espelho cujo reflexo devolve ao seu observador o medo, o mais puro pavor, ou uma sensação de morte iminente.

Marte Um é outra história, outro filme, mas também observa de perto o cotidiano de uma família negra. Essa, no caso, vive na região periférica de Contagem, Minas Gerais, em um tempo que agora podemos chamar de passado e, finalmente, olhar com alguma distância (ainda que inicial): o tempo da eleição de um governo que destruiu o Brasil nos últimos quatro anos. Pai, mãe, filha e filho, cada um deles uma constelação inteira. Deivinho (Cícero Lucas), o caçula da família, sonha em se tornar astrofísico, mas o pai, Wellington (Carlos Francisco), quer que o filho siga a carreira de jogador profissional de futebol, já que o garoto tem talento para isso. Tércia (Rejane Faria), a mãe, deixa-se contaminar por certo mau agouro após um evento traumático, reimaginando seu cotidiano sob a sombra dessa maldição enquanto Eunice (Camilla Damião), a filha mais velha, descobre a si mesma ao conhecer o amor.

Resumidamente, é um filme que cobre eventos do cotidiano dos integrantes dessa família negra e periférica, com entrelinhas que comentam a vivência da negritude, mas sem apelar para estereótipos fáceis ou velhos costumes (geralmente racistas) do cinema brasileiro mainstream. E, apesar de se entrecruzarem ou colidirem aqui e ali, os trajetos dos astros que compõem essa constelação familiar acabam por, ao fim, cooperar e seguir um único sonho.

Se em Não! Não Olhe! o monstro que assombra aqueles corpos é um mistério que se revelará entre as nuvens, movimentando-se nos céus da Califórnia, em Marte Um o inimigo é o próprio “tempo presente” da narrativa, o tempo da eleição de Bolsonaro e da sombra maligna de seus ideais projetada sobre os indivíduos brasileiros marginalizados — a sensação da mãe de estar amaldiçoada é, de várias maneiras, um sintoma comum daquele momento, daqueles corpos. Se a ameaça nos céus californianos mantém as personagens cabisbaixas enquanto planejam estratégias para vencer o inimigo, aqui, a névoa bolsonarista faz com que os olhos de Deivinho enxerguem, em uma futura missão de colonização do planeta Marte, um sonho, um projeto de vida, um destino possível.

Em outro filme bem falado este ano (Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, de Radu Jude), um dos atos se configura como uma espécie de glossário ilustrado. Nele, há uma definição curiosa sobre o que seria o Cinema: entre os presentes oferecidos pelos deuses para derrotar a Medusa, está o escudo de Perseu, através do qual o herói foi capaz de observá-la através do reflexo, indiretamente, e derrotá-la, cortando sua cabeça com cabelos de cobra; para Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, o cinema é o escudo de Perseu, através do qual se pode olhar para a realidade sem encará-la diretamente.

Talvez essa não seja a definição perfeita (e alguma é?) sobre o que é o CInema, mas parece propícia aqui: observar através das lentes de uma câmera ou de um telescópio construído em casa, gesto ao qual recorrem tanto a família Haywood (Nope) quanto os Martins (Marte Um), permite a essas personagens não apenas ver através de um reflexo ou de uma captura, mas também observar o universo e as possibilidades de mundo muito além dos limites impostos pelas circunstâncias do tempo e do espaço.


*apenas um dia após a publicação deste texto, a Academia anunciou os pré-selecionados para a próxima fase na categoria de filme internacional e, infelizmente, Marte Um já não constava na lista.

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Para ouvir a memória das pedras

Os corpos que constantemente compõem as imagens dos filmes de Apichatpong Weerasethakul estão quase sempre envolvidos por uma aparência de sonho, fábula e mistério. São vultos fantasmagóricos que transitam entre a luz e a sombra, seja na sequência final de Mal dos Trópicos ou em toda a concepção visual de Tio Boonmee; no movimento hipnótico das chamas em Phantoms of Nabua ou na emblemática cena que observa a doença/sono dos soldados em Cemitério do Esplendor: tudo aparenta pertencer a um universo que só existe quando fechamos os olhos.

Memória, porém, é um filme que começa com um despertar. Em contraluz, uma figura humana recém acordada (por um estrondo sonoro que nós, espectadores, também ouvimos) se levanta da cama e perambula pelo cenário. A princípio, Jessica é apenas uma silhueta esguia, sombria e misteriosa, ainda sem rosto, que se move lentamente pelo chiaroscuro da cena com movimentos incertos que sugerem certo estado de dormência, como em um pós-transe, como uma alma que acaba de regressar ao seu corpo físico. 

Como no sonho mais ordinário, é necessário algum esforço para (re)conhecer a face de Jessica rodeada pela penumbra. E até mesmo quando o filme avança e já reconhecemos o rosto inconfundível de Tilda Swinton, que aqui assume uma expressão bastante diferente de outros trabalhos entre os tantos que já realizou em sua carreira, o filme insiste em registrá-la quase sempre como essa silhueta fantasmagórica que flutua pelas ruas e lugares de Bogotá. Talvez não chegue a ser um corpo habitado pelas incertezas de um fantasma, como os alienígenas de Kiyoshi Kurosawa em Antes que Tudo Desapareça (vazios, em busca de significados), mas é certamente um corpo perturbado pelo arrebatamento daquele primeiríssimo sonho, naquela primeiríssima cena. Nesse sentido, é mais provável que Apichatpong tenha bebido na fonte de outro Kurosawa, o Akira, especificamente de seu Sonhos, não pela expressão surrealista daquelas imagens, tão coloridas e por vezes abstratas, mas pela investigação do que há de material nos mistérios que habitam o subconsciente.

É essa perturbação da protagonista, inclusive, que se transformará em uma espécie de obsessão e, consequentemente, em força-motriz da narrativa. O barulho estrondoso da cena inicial se converterá em leitmotiv dentro da forma fílmica, quase sempre acompanhado de imagens dominadas por certa incompletude e incerteza, imagens que nos devolvem indagações que elas mesmas provocam — que barulho é esse, afinal? de onde ele vem? mais alguém o pode escutar?

À medida em que esse leitmotiv sonoro invade e preenche o filme, a tecitura narrativa se desfaz. Se, em determinada cena, um cachorro sonhado por outra personagem se materializa diante dos olhos de Jessica, provocando nela um visível espanto, em outra essa figura surgirá pacificada, dormindo ao seus pés enquanto ela, sentada tranquilamente em um banco de praça, recita um poema de sua própria autoria.  E quando o filme, em si, parece finalmente aceitar seu próprio mistério sem querer desvendá-lo, é que a obra de Apichatpong transcende. Som e imagem, enfim, dialogam em harmonia e o que outrora só se podia ver de olhos fechados, se revela na superfície da tela.

Memória, então, resgata uma conexão universal que não está ligada à globalização, à tecnologia ou às angústias intermináveis da contemporaneidade, mas ao que há de mais sensorial na humanidade. Suas imagens parecem propor uma regressão ao subcutâneo, ao primário, uma viagem ao passado e ao futuro ainda aqui, no tempo presente; uma espécie de sonho comum que interliga o homem e as coisas em uma relação de afeto entre a memória do mundo e a memória mais antiga da existência humana: ainda no ventre, estrondos extra-uterinos aos poucos nos despertaram, anunciando a iminência da vida. 

Na sequência que precede as cenas finais, Jessica pergunta a um pescador se ele se lembra dos próprios sonhos, ao que ele responde com certo ceticismo, como alguém naturalmente incapaz de sonhar. Mas o pescador afirma ser capaz de ouvir o que as pedras falam e, compreendendo o que elas contam, pode observar e habitar o mundo em outro ritmo, em outro estado de percepção. É como se esse homem fosse capaz de sonhar apenas quando está de olhos e ouvidos abertos.

Para ouvir a voz das pedras, portanto, talvez seja preciso regressar ao interior da caverna e recordar daqueles sonhos já esquecidos. O olhar, a audição e a percepção atentos ao mundo, aos silêncios e aos sons que nos rodeiam entre luzes e sombras que, finalmente e desde o princípio, anunciam os mistérios e a memória da existência humana.

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Críticas Vol. 03 - Nº 05 - 2022

Para Natara

Espero que esta te Encontre e que Estejas Bem (Natara Ney, 2020)

Querida Natara,

Escrevo este post ainda com o gosto do teu filme nos olhos: tremor nas pálpebras e resquícios de lágrima. É um sentimento doce.

Já te agradeci pessoalmente por escolher contar uma história de amor nestes dias tão feios, mas talvez devesse lhe dizer algo mais… ou talvez não. Talvez o filme, como um corpo dotado de sua própria alma, é o único que tenha algo realmente válido a ser dito. Às vezes penso que a crítica não tem nada a colaborar com determinada obra, mas sou um aquariano teimoso.

Quando tua voz, quente, empresta ao filme mais uma camada de memória, a tua memória, inventada ou não, meu peito estufa apavorado. As cartas de Lúcia e Oswaldo, por si só, já tinham feito seu papel: eu já estava desconcertado, gravemente sem jeito, incomodado por olhar tão intimamente para a alma impressa naquelas imagens. Sua voz (e o misterioso amor a quem ela se direciona) poderia soar como um palimpsesto, mas escapa da armadilha e me surpreende: revela-se cúmplice daquela história de amor.

Essa voz, tua e do próprio filme, você chamou de pacto – com Lúcia e suas cartas de amor, com as imagens e as memórias que elas evocam em si mesmas.

Imagem e memória habitando a tela em coexistência. Poesia.

Gosto de como o filme foge do saudosismo e prefere a saudade. Vibro quando corta da senhora saudosa de romantismo para a imagem dos carteiros, devidamente uniformizados sob um sol legitimamente carioca. Trabalhar cansa.

Fiquei com a ideia fixa de que aquelas cartas, celulose e tinta, eram o próprio cinema (tela e movimento). Letras são corpos que bailaram no papel e deixaram, ali, um rastro, uma imagem. O que esses corpos-letras traçaram em sua caligrafia dançada, é rastro, espírito – memória?

Tenho para mim que teu filme, que quer contar uma história de amor, encontrada uma feira tal qual uma antiguidade, constrói também sua declaração apaixonada: pelas cidades e sua arquitetura, pelas pessoas e suas histórias, saudades, destinos; pelas próprias imagens que carregam (e que carregam, em si, um mundo de significados possíveis). Carta que vira filme, que volta a ser carta, missiva de amor, monumento.

Não tem sido fácil acordar brasileiro e sei que, para você, o caminho nunca foi simples ou descomplicado. Decidir seguir o rastro de uma história de amor e transformar essa busca em filme é, como disse um personagem do teu filme, um ato de fé. Outra vez: obrigado.

Que outras histórias de amor te achem e, como os ventos de agosto, baguncem teus cabelos – e tuas ideias.

Espero que esta te encontre e que estejas bem.

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Fragmentos de Batalha

Os Primeiros Soldados (Rodrigo de Oliveira, 2021)

XX

“…o soldado pensava que os primeiros sofrem de uma coragem de que ninguém nunca vai lembrar.”

Se narrar é costurar fragmentos, que tecido é esse que Os Primeiros Soldados tão intimamente tece em sua trama? Como transformar em narrativa cinematográfica uma história (ainda) não conhecida a respeito dos corpos afetados pela AIDS nos anos iniciais da crise da doença no Brasil? 

As imagens nos encaram de volta, versáteis em textura e formato, afirmando sua existência enquanto construção/fabulação de uma memória silenciada, seja através de uma feição emudecida atrás da fumaça de um cigarro, ou do seio de uma travesti exibido orgulhosamente em via pública.

XXIV

“Mente pra mim.”

Há uma frágil linha que separa estes gestos: atuar e mentir. Não é necessário estudar artes cênicas para se tornar um mentiroso, mas alguma noção de cena, sobretudo no que diz respeito aos mecanismos persuasivos do gesto e da fala, pode transformar qualquer mentira em manchete de jornal.

Não há mentira em Os Primeiros Soldados. Há invenção — no ritmo dos gestos e olhares de Suzano, na composição da imagem que alude a trincheiras e prisões no hospital da cidade ou no modo como os corpos se tocam levemente enquanto compartilham de um cigarro. Mas há também um desejo por reinvenção, seja explicitamente, como quando o coro melancólico de uma canção se converte em um trocadilho divertido às vésperas da meia-noite do réveillon de 83, ou de modo mais sutil, como na delicada reconstrução de outra época, conturbada e assustadora para a população LGBT no Brasil e no mundo.

Na voz de Rose, entretanto, mentir é reimaginar possibilidades de futuro, porque nesse contexto (re)imaginado pelo ato de “fazer cinema”, até mesmo a morte pode ser reconfigurada — ao ponto de caber em duas caixas de remédio —, seja pela montagem que traz de volta ao filme a personagem de Massaro, ou pela própria textura alterada da imagem que, quando convertida em VHS, nos aproxima definitivamente daqueles corpos que, outrora desaparecidos, persistem vivos.

XIX

“…se essa praga é gay, a mãe dela é travesti!”

Renata Carvalho performa a própria vida. Um corpo travesti. Uma “corpa”, como diria Castiel Vitorino Brasileiro. Tão dona da própria palavra quanto das minúcias que compõem sua personagem — fragmentos de si mesma. Renata e Rose coabitam o mesmo corpo e entregam-se uma para a outra, em uma relação simbiótica que transgride os limites do plano cinematográfico e retribui o olhar de quem a observa. Uma existência que atravessa a superfície da imagem, seja cantando sobre um palco de boate ou quando nos encara de volta em um monólogo que se converte em diálogo com a câmera que, percebendo a dureza do semblante cansado de mulher, permite ser atravessada. 

Aqui, a travesti é a mãe de todas as imagens.

VII

“…eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo, é isso o que eles fazem; e o que a gente faz é sobreviver sendo linda”

Para sobreviver em um mundo que trabalha incansavelmente pelo seu apagamento enquanto indivíduo, faz-se necessário roubar o controle de sua própria narrativa. 

Nas cenas-dentro-da-cena, na boate, ainda não se pode prever, mas a concepção das imagens em breve se reorganizará: Rose, Suzano e Humberto assumem, com identidade e linguagem próprias, a coautoria de sua própria história — um filme dentro do filme. Sobrevive-se, então, nessas imagens que atravessam outras imagens. 

Entre a inevitabilidade da morte e o desejo de manter-se vivo, Os Primeiros Soldados decide-se por “sobreviver sendo linda”. Pois se nos tentam matar desde que o mundo é mundo, nossa resposta está nos mínimos gestos de cada uma dessas personagens. A cada novo beijo apaixonado, sempre antecedido por um flerte delicioso (esse desejo de vislumbrar a própria vida refletida no olhar do outro), instaura-se uma declaração: entre beijos, baladas e fogos de artifício, permaneceremos vivas.

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Vol. 02 - Nº 04 - 2021

Para além do “pandêmico”

Dois mil e vinte nunca acabou. Dois anos em um. Até agora. “A Pandemia”: assim chamamos um período inteiro de caos na saúde pública regido por um (des)governo inegavelmente irresponsável. Adotamos um adjetivo e até o utilizamos para nomear alguns projetos, algumas ideias: “pandêmico”. 

Nesse momento conturbado, porém, muita gente produziu filmes, séries, videoclipes, vídeos ensaios, webséries e toda uma complexidade de registros audiovisuais muito diversa, boa parte a fim de capturar alguma coisa desse período específico. Isolados, aqui ou em qualquer parte do mundo, produzimos como nunca e, produzindo, dissemos (ou não) muitas coisas.

Penso que, nesse instante interminável, um tema nos sobrevoa. Falamos de vivências e de morte, de lutas e resistências; destruímos e (re)construímos imagens com nossos corpos, com nossas dores, com nossas angústias e, também, com mistérios que redesenham e/ou redescobrem imaginários, que fabulam sobre passados, presentes e futuros (im)possíveis.

Somos, portanto, talvez mais do que sempre fomos, agentes de memória. Eis nosso tema “pandêmico” por excelência. A memória do que fomos e do que estamos sendo e do que poderemos ser em um futuro próximo.

Sobre as imagens que, nesse tempo, tecemos em tela, pode-se dizer então que costuramos um memorial atemporal. Afirmamos a vida através de nossos corpos, filmamos nosso cotidiano mais banal, ou nosso desejo mais abissal, nossas insignificâncias e nossos atravessamentos. Em nossos corpos traspassados, renegados, marginalizados, traçamos velhos e novos imaginários. Repudiamos um país que nos agride e inventamos outras pátrias, outros mundos, outros universos, outros futuros. Revisitamos ruínas e perscrutamos escombros, escavando e redescobrindo histórias que, um dia, foram roubadas de nossos ancestrais. Sobrevivemos e vivemos… e como vivemos! Ressuscitamos nossos mortos, viajamos no tempo e através dos espaços, sobretudo desses espaços espúrios que nos reservaram, adentramos suas portas e derrubamos suas paredes com a violência das nossas imagens-memórias, porque esse registro memorial não se detém aos limites impostos, não necessita de máscaras e obstáculos; tudo quer e pode ser visto.

É sob o prisma deste registro desmedido da memória e do direito à memória que penso essa lista, não numerada e sem ordem de preferência, desejoso que ela se encontre – e seja encontrada – em um território capaz de observá-la com algum carinho, sabendo que essa lista/memorial não se contenta em ser “pandêmica”, apesar do tempo em que foi construída. Uma lista de filmes e séries deste tempo, deste agora interminável, mas que também inventa outros tempos (ontens, hojes, amanhãs):

Uma Noite Sem Lua (Castiel Vitorino Brasileiro, 2020)

Pode ser visto aqui: https://telatrans.com.br/filme/uma-noite-sem-lua/

Voltei! (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)

Inabitável (Enock Carvalho e Matheus Farias, 2020)

Petite Maman (Céline Sciama, 2021)

Manhãs de Setembro (Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, 2021)

Primeira temporada disponível no serviço de streaming Prime Video.

Madres Paralelas (Pedro Almodóvar, 2021)

The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade (Barry Jenkis, 2021)

Série completa disponível no serviço de streaming Prime Video.

Memória (Apichatpong Weerasethakul, 2021)

Noche de Fuego (Tatiana Huezo, 2021)

República (Grace Passô, 2020)

Pode ser visto aqui: https://vimeo.com/423769303

Crash (Juçara Marçal, 2021)

https://www.youtube.com/watch?v=zhgmtLuEJq0
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Poema ao Tempo

Sento-me diante de uma página em branco.

Imagino um criador-criatura observando o vazio:

quero ser esse vazio, estar nele, habitá-lo…

Desejo escrever a respeito de um filme, mas não posso

porque ele me escapa…

Começo um poema que não saberei terminar.

Não compreendo minhas próprias palavras

elas me afogam.

Penso no tempo e na vida e na morte e nas coisas inevitáveis:

crescer, sonhar, amar, enlouquecer, perder, temer.

Entre viver e morrer,

há apenas um instante,

um segundo que perdura…

Quantas eternidades cabem em mim?

Tento.

Escrevo algumas palavras, mas as rejeito.

O poema, como uma criança sem cuidado, está morto.

Acendo um cigarro e me afeto por seu gosto de canela.

Três instantes eternos:

puxar, tragar e soltar

(viver, tragar o mundo e morrer)

Observo a fumaça: estou nela,

Deus está nela,

a vida e a morte estão nela.

Um filme inteiro se esvaindo depressa.

Dentro da fumaça, crianças crescem em uma cena torta

(desenquadramento)

Não percebi de onde vinha o vento que carregava a fumaça,

o mesmo vento que movimenta as ondas

do mar, da câmera, da encenação, da passagem dos anos.

A vida é um filme que se esvai em duas horas,

e cada hora corresponde a uma morte inteira,

e cada hora corresponde a uma noite inteira,

Deus, do alto de sua montanha,

filma os homens

escreve o Certo e Errado

em linhas tortas torpes tolas

porque o Homem é um tolo.

Uma criança com feições adultas interrompe o vento.

Não há futuro, porque tudo passou.

Tudo passou.

É o fim:

o recomeço de tudo.

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Homem-máquina, Máquina-homem

As ranhuras na película da TV usada que compramos há dois anos têm aumentado consideravelmente. O que antes eram só pequenos arranhões que deformavam de leve a imagem proposta pelos pixels, agora, apresentam uma extensa faixa branca que cobre boa parte da tela. De onde vejo, as imagens não são mais as mesmas.

Tem sido uma experiência curiosa a de ver filmes, acompanhar festivais, produzir e estudar cinema nestes tempos de isolamento. É que, em casa, as telas parecem brilhar um tanto mais, convocando uma atenção que nem sempre nos cabe e que, às vezes, nos desatina de nosso foco: um filme passa na tv enquanto engatilho o twitter como se fosse uma extensão de minha percepção. 

Tuíto, logo existo.

Carro Rei foi o primeiro filme que me chamou atenção na programação do 49º Festival de Cinema de Gramado – carros falantes e algum tipo de complô político já eram anunciados no trailer, coisas que têm minha atenção garantida desde muito cedo. Culpa do Carpenter e de sua Christine, que conheci em alguma noite do passado, quando minha atenção ainda se dedicava totalmente aos emissores de luz daquela TV antiga na casa dos meus tios… me encantei pela Christine do Carpenter muito antes de saber que existia uma Christine do King – a literatura viria a ser foco maior da minha atenção na adolescência, quando tudo que me interessava no cinema eram as sequências de terror juvenil americanas pós-Pânico.

Carro Rei começa com uma crônica ágil sobre uma mulher que dá a luz a um menino dentro de um automóvel. Essa criança cresce com o estranho dom de se comunicar com os carros. Carros serão também um negócio de família que o menino precisará levar adiante, mesmo que tenha outros planos de vida. 

Na tela muito arranhada da minha TV, os rostos dos atores se desconfiguram dependendo de sua posição no enquadramento das cenas. Me sinto um tanto traído pelo aparelho, já que não recebo daqui o que o filme me envia de lá. O filme ainda é o mesmo?

Uma vez tocaram saxofone aos pés da minha janela enquanto assistia, pela primeira vez, um dos filmes do Decálogo, do Kieslowski. Era uma serenata para o vizinho. Não Amarás ganhou uma trilha sonora que mais soava como uma sessão do antigo Cine Privé, do canal Bandeirantes, e aquilo mudou para sempre minha percepção a respeito do filme. 

Lembro de ter feito um post sobre isso.

Como daquela vez, o filme que me chega agora parece alterado por condições extra fílmicas. Não só pelo defeito na película da minha TV, mas principalmente pelo modo como as coisas se dão no filme da Renata Pinheiro: a tecnologia como extensão do corpo e da mente humana – ou seria o contrário?

Em Carro Rei, tudo surge com vontade de se assumir simbiótico: do filtro azulado aos nomes das personagens; o nascimento do menino Uno/Ninho e sua capacidade de se comunicar com os carros; a breve e divertida alusão à cena final de Holy Motors; ou o modo como o filme nos apresenta a personagem Mercedes (que, com uma espécie de farol acoplado em sua calcinha, traça um caminho vertical vermelho entre os carros mortos de um ferro velho): tudo grita por uma união perene entre homem e máquina.

Esse desejo encontra sua melhor expressão na figura de Zé Macaco, personagem interpretado por um Matheus Nachtergaele inspirado que, infelizmente, sofre demais na tela arranhada da minha sucata. Amo-o desde seu primeiro aparecimento, mas minha televisão me prega peças e o rosto do ator é repartido ao meio pelo cansaço de minha tv defeituosa.  

Zé Macaco é uma espécie de evolução humana às avessas, um Homo Sapiens que evoluiu para macaco; o bicho, por causa do jeito que fala e se comporta, mas também o instrumento de trabalho. Poderia se chamar “Zé Macaco Hidráulico”, que tudo continuaria fazendo sentido. Uma evolução homem-ferramenta no processo de involução homem-bicho. Até o movimento de seu corpo regride do autoconhecimento adquirido pela prática do pole dance para uma dureza mecânica de um corpo devotado servilmente ao trabalho, dominado pela tecnologia inteligente batizada de “carro rei”. 

Anotei uma palavra no meu celular enquanto via uma das cenas: “autômato”. 

As tecnologias e seu modo de usar são, aqui, propositalmente invertidas: quem deveria controlar e manipular as máquinas é subserviente às suas vontades de máquina. Deste modo, torna-se impossível pensar a tecnologia como extensão de si, pois ela já não nos serve como instrumento ou ferramenta. 

O discurso que perpassa o filme de Renata Pinheiro e serve de motivação para suas personagens, humanas ou não (já não faz diferença), talvez esteja em algum lugar entre: 1) uma crítica ao uso das tecnologias como um condicionamento decisivo da visão e da experimentação do mundo em detrimento de uma experiência mais direta, menos mediada pelas máquinas, com a vida e; 2) um discurso que busque um viés mais harmonioso e menos conservador, que vislumbre e viabilize possibilidades para essa convivência inevitável com o universo tecnológico que habita nosso cotidiano. 

Alguém tuitou sobre o filme.

Achei anotado no celular assim que a exibição terminou: “…no filme tem essa planta que se alimenta dos resíduos da máquina e, na contracorrente do senso comum, brota e encontra um jeito de evoluir”. 

A simbiose, afinal?

tuitar (para não esquecer): preciso consertar a tv.

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Vol. 02 - Nº 03 - 2021

Um filme dentro do filme

Um filme observa outro filme. Curioso por natureza, remonta outras histórias a fim de construir novas possibilidades. Retira dessa auto-observação várias peças que se reestruturarão em outro filme. Esse Cinema é um monstro muito parecido com aquele criado por Mary Shelley – aqui, no entanto, ele também é o cientista. Frankenstein. Um Cinema que se debruça sobre si mesmo, ansioso por (re)descobrir aspectos de sua existência, desvendar suas origens, atualizar sua linguagem. Cinema esse que adquire uma autoconsciência capaz de transformar antigos códigos e fórmulas em um complexo sistema de (res)significações inovadoras e que, mesmo morto, pode se refazer ao reconfigurar sua própria forma e sentido.

No cinema, a metalinguagem pode se dar tanto através da forma do filme – como acontece em documentários de arquivo ou nos found footages – ou no próprio gesto criativo da produção em questão: remakes, reboots, adaptações, etc. Em ambos os casos, é como se os filmes perscrutassem e interrogassem a si mesmos, ou como se houvesse a emulação de  uma observação a respeito de sua própria natureza a partir da forma. É um modo de se curvar diante de sua própria linguagem, dissecando e estudando suas entranhas, destruindo-a e reconstruindo-a a partir dos escombros.

Mas, de que serve esse gesto, afinal?

É um fato recorrente no cinema norte-americano que diretores estrangeiros sejam convidados e contratados para refilmar sua própria obra em uma versão hollywoodiana. Nessa lógica, parece um exercício vazio, egóico, pouco inovador, justificado unicamente pela megalomania de uma indústria que, enquanto mercado, precisa manter um certo status de superioridade.

Desse modo, é como se Ju-on (2000) e The Grudge (2002), ambos dirigidos pelo realizador japonês Takashi Shimizu, não fossem o mesmo filme, já que o remake estaria laureado com essa insígnia da “versão americana”, como se isso fosse, por si só, uma garantia de qualidade – o que, na maioria das vezes (como sabemos), não é. Nesse caso específico, inclusive, é fácil notar o quão empobrecida foi, em questões de inventividade, a versão hollywoodiana, cafona e limitada se comparada ao original.

Outro exemplo crasso é o de George Sluizer e suas duas versões de “O Silêncio do Lago” (1988 e 1992). De um lado, a primeira fita é dotada de nuances e pequenezas narrativas que conduzem bem um mistério instigante de desfecho fascinante; do outro, há uma certa fadiga que permeia aquelas imagens que soam como se elas já nascessem, nesse remake, cansadas, inférteis e pouco interessantes.

Revisitar a própria obra, no entanto, não é um gesto recente, tampouco costume próprio de cineastas de gerações contemporâneas. São do mesmíssimo Alfred Hitchcock, por exemplo, as duas versões de “O Homem que Sabia Demais”, com quase duas décadas de distância entre elas (1934 e 1956). Analisando-as, é quase impossível não comparar as atuações de Peter Lorre, dono de uma aura quase mística que, nesse filme, transforma sua atuação em um verdadeiro monumento, a do lendário James Stewart e seu carisma inigualável de estrela. São, inegavelmente, dois filmes diferentes, cada um deles com características únicas que os distanciam facilmente. Nos anos 90, a obra mais popular desse mesmo Hitchcock serviu como uma espécie de exercício de linguagem. Em 1998, Gus Van Sant realizou sua versão de Psicose, quase quarenta anos depois de Hitchcock, com enquadramentos idênticos aos do filme original, o que conferiu a sua obra um aspecto artificial, pouco realista, que ressoava, quadro a quadro, na atuação engessada e robótica do elenco – um verdadeiro estudo da mise-en-scène de um daqueles que viria a se tornar um dos grandes expoentes americanos do chamado cinema de fluxo, alguns anos mais tarde.

Michael Haneke, quando convidado a realizar, dez anos depois do lançamento de seu Funny Games (1997), uma versão hollywoodiana, resolveu refilmar sua própria obra sem nenhuma inovação se não a de elenco. Realizou, quadro a quadro, frame a frame, dois filmes idênticos em quase tudo. O que pode soar para muitos como uma ego trip ou uma crise de criatividade é, na verdade, uma afirmação ácida e irônica. Funny Games é um filme pronto em sua forma e significação, compreendê-lo é, inegavelmente, não desejar dar o play novamente – a famosa cena do controle remoto bastaria para entender que este é um filme feito para ser visto e compreendido uma única vez. É como se Haneke alimentasse o complexo de superioridade da indústria americana com fragmentos de sua própria vaidade, ou como se dissesse aos gringos: tudo que pretendia ser dito está dito, lidem com isso.

Aos “puristas do original”, portanto, fica o aviso, ainda que tardio: não se iludam. A ideia aqui jamais teria sido a de manter o brinquedo dentro da caixa, muito pelo contrário. Cinema é linguagem, precisa ser experimentada. E, de certa forma, pensar um filme unicamente a partir do fato de ser ou não uma adaptação, um remake ou um reboot é um ponto de partida preguiçoso, pois todo filme é portador de sua própria experiência formal dentro do universo da linguagem cinematográfica. Em outras palavras, todo filme é um filme por si só.

A metalinguagem enquanto exercício é um movimento de experimentação do cinema, esse sistema de signos e significados formado por sons e imagens manipuladas. Um filme que se curva sobre si mesmo, ou sobre algum aspecto que o compõe como filme, está irremediavelmente alterando essa linguagem, reconfigurando-a, permitindo que se expanda e transborde para além dos limites da tela.

Wes Craven, criador de personagens como Freddy Krueger e Ghostface, queria que os censores analisassem o primeiro filme da série Pânico (1996) como uma comédia, já que a ideia central da obra era parodiar toda uma cultura de filmes de terror que predominava no gênero até ali. Craven ainda desdobraria ao máximo seu exercício de metalinguagem durante os demais filmes da série, inclusive criando para os filmes uma outra série de filmes (Stab), que só existem dentro da franquia. A sequência inicial de Pânico 4 (2011) ilustra, com sofisticada literalidade e comentários, esse gesto de experimentar a linguagem cinematográfica e atualizá-la através de si mesma: um filme, dentro de um filme, dentro do filme. “É essa metalinguagem pós-moderna de autoconsciência, só funcionou em 1996”, debocha a personagem de Anna Paquin, segundos antes de morrer.

Desde A Bruxa de Blair (1999), que fez da forma fílmica um simulacro de realismo, atingindo um paradoxo cinematográfico muito bem-vindo (e muito explorado) à experiência narrativa no cinema contemporâneo, os found footages se espalharam em inúmeras produções ao redor do globo. Ainda que a indústria tente assimilar sua fórmula a fim de arrecadar seus milhões, o estilo permanece inovando e rendendo filmes que, apesar de pouco vistos, ressoam ares de novidade. Que outro modo de realização seria capaz de registrar, por exemplo, um filme que ainda não existe? Ou melhor, um filme que só existe na cabeça do personagem principal? Be My Cat: A Film for Anne (Adrian Tofei, 2015) é o registro ficcional de um cineasta que deseja realizar um filme a ser protagonizado pela atriz Anne Hathaway; a fim de convencê-la a aceitar o convite, ele filma com outras atrizes algumas ideias do que viria a ser esse filme. Be My Cat é tão criativo quanto doentio, mas impensável não fosse a metalinguagem do found footage. Death of a Vlogger (Graham Hughes, 2019) explora o universo e a estética dos vlogs para contar uma história de assombração que, até mesmo durante os créditos finais, se manterá duvidosa, explorando aspectos formais do idioma das redes para compor sua identidade cinematográfica. M.O.M. Mothers of Monsters (Tucya Liman, 2020), por sua vez, abusa do formato, diverte-se, mergulha de cabeça nas possibilidades da estética found footage para ilustrar, entre câmeras escondidas e filmagens de celular/notebook, uma relação de extrema desconfiança entre um filho adolescente e uma mãe que acredita ter gerado um psicopata. Nos três casos, a fórmula “filme dentro do filme” revela esse interesse pela atualização constante e ininterrupta da linguagem cinematográfica.

O cinema, portanto, enquanto um sistema de mecanismos e formas que manipulam sentidos e significados, está vivo. E, ainda que morra, tratará de se refazer de suas próprias ruínas, renovando-se de novas possibilidades, como tem feito nos últimos 125 anos, pois seu código básico está sempre disposto a se remontar em sofisticadas versões de si mesmo, atualizadas ou não. A metalinguagem no cinema, sendo assim, não é apenas um movimento autoconsciente que se observa e se ressignifica, mas uma espécie de via respiratória (re)formulada através da forma fílmica, ou do artifício cinematográfico, que está a fim, principalmente, de manter vivo e em movimento esse monstro chamado Linguagem.

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Clausura narrativa em Oxygen, de Alexandre Aja

Na verdade eu queria dizer narrativa em clausura. Talvez eu esteja confuso.

Oxygen, produção recente da Netflix dirigida pelo cineasta francês Alexandre Aja, promete, desde seu primeiríssimo plano, uma narrativa condicionada à claustrofobia: em um gigantesco labirinto, um rato de laboratório perambula perdido; o animalzinho, tenso, obviamente não sabe para onde deve ir. Essa condição de clausura logo se revelará um fator indispensável para o desenvolvimento da trama e, para tanto, se fará necessário associar essa natureza claustrofóbica a uma figura central.

Elizabeth Hansen (Mélanie Laurent) passará praticamente um filme inteiro, seja lá quanto isso dure, presa dentro de uma cápsula tecnológica programada para levar seu corpo a outro planeta a fim de colonizá-lo, já que a vida humana na Terra foi fatalmente comprometida. Nada de novo no front.

Despertada do sono por causa de problemas técnicos em sua cápsula, tudo que ela precisará para escapar dessa minúscula prisão é acessar sua própria memória, que fora completamente desestruturada por causa dos anos em que passou adormecida em um sono profundo proporcionado pela máquina que, agora, aprisiona seu corpo. Parece que enveredaremos para o campo da memória…

Códigos, mecanismos, programações: tal como na metáfora do rato perdido no labirinto, sua salvação está registrada em si mesma, em algum lugar de difícil acesso dentro de sua mente (que sabe-se lá por quais motivos se revelará obcecada por outro objetivo até os minutos finais da trama).

Esse cenário, apesar de minúsculo, guarda algumas surpresas, armadilhas programadas, alucinações, mecanismos que vão desde sedativos a injeção letal, caso seja necessário. Se devia ser uma alusão aos processos de memória, talvez coubesse também um indicativo patológico. Tudo isso poderia servir como amplificador da tensão necessária para que o filme, enquanto narrativa claustrofóbica, de fato funcione em sua completude, mas o roteiro lança mão de todo esse recurso com tamanha rapidez e superficialidade que fica difícil esperar alguma nova ameaça para além das limitações geométricas da cápsula (barreira que já entendemos desde os primeiros minutos de filme, oras).

Todo esse esquema narrativo criado a partir do claustro, portanto, parece imobilizar também o desenvolvimento da trama, engessá-lo ao previsível, como um rato que corre atrás do próprio rabo; principalmente quando se adiciona a ela um fator importantíssimo que, inclusive, dá nome ao filme: o que resta de oxigênio dentro da cápsula é o que Elizabeth ainda tem de tempo de vida. Cinema, tempo, movimento… uma armadilha.

Mas o que para muitos pode soar como um jogo interessante dentro da dinâmica espaço/tempo (cápsula/oxigênio), pode, por outro lado, parecer um tanto mórbido para outros olhares – afinal, qual seria a graça de se observar, durante quase duas horas, a imagem de um rato eternamente preso em um labirinto, emitindo sons inteligíveis de agonia?

O modus operandi do desenvolvimento narrativo acaba se deixando enclausurar pelo próprio mecanismo que propõe, porque tudo que é turvo se revela depressa e o que era mistério se elucida com tamanha obviedade que pouco resta ao espectador mais sedento.

Uma curiosidade talvez escape, um fator que confirmaria a ideia de claustrofobia como aposta central da narrativa: a escolha de Mathieu Almaric como ator responsável pela voz onipresente do robô M.I.L.O (a voz dentro da cápsula) muito provavelmente por causa de seu papel ontológico em um drama radicalmente claustrofóbico, O Escafandro e a Borboleta (Julian Schnabel, 2007). Lá, a ousadia do dispositivo fílmico mantinha mesmo tudo em clausura, tensionando limites e experimentando uma linguagem áspera e única que, aqui, não chega nem perto.

Trocadilhos à parte, falta ar em Oxygen.

Previsível, o filme parece cada vez menor e menos interessante à medida que se aproxima de seu desfecho. É como se, a partir de pouco mais da metade, nada mais lhe restasse a não ser uma coletânea cafona de ângulos e sequências melancolicamente masoquistas, um repertório pobre e pouco inovador deveras distinto do que o mesmo Alexandre Aja conseguiu elaborar em sua obra anterior, o igualmente claustrofóbico, mas muito mais inteligente e eficaz Predadores Assassinos (2019).

Sufoco.

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Uma comédia brasileira

Quando Cine Holliúdy, comédia regional dirigida por Halder Gomes, caiu nas graças do público, o contexto político e social dos brasileiros era inegavelmente outro. Se apenas no ano seguinte o país romperia em manifestações numerosas que mudariam completamente os rumos de nossa história política, exigindo da arte, a partir daí, uma postura outra diante do mundo, nosso cinema mais popular podia ainda respirar tranquilamente os ares de uma liberdade imaginativa que, naquele momento, gozava de carta branca para aparentar altos níveis de ingenuidade. 

De lá para cá, o Brasil mudou bastante. E isso inclui nosso cinema como um todo, já que a última década foi dominada por filmes politicamente engajados que vão desde obras mundialmente reconhecidas, como Democracia em Vertigem ou Bacurau, à comédias pop, de elenco e estilo manjados, como a O Candidato Honesto, por exemplo. A questão é que, provavelmente por servirem como uma possibilidade agradável e simples de escape da realidade, nossas comédias sempre estiveram no gosto do público, desde as chanchadas carnavalescas dos anos 30, passando pelas pornochanchadas, até chegar aos filmes de humor da atualidade. Afinal, não foi à toa que o mais recente dos filmes da franquia Minha Mãe é uma Peça destronou todos os recordes e tornou-se a maior bilheteria nacional de todos os tempos.

Engana-se, porém, quem acredita que tais filmes se abstenham do teor político tão explícito em outros gêneros no cinema brasileiro da última década. Em Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, a diretora Fernanda Pessoa consegue revelar entrelinhas da Pornochanchada através de uma remontagem que, por si só, traz à luz a subversão de um gênero que muitas vezes se opunha, ainda que cautelosamente, à opressão da ditadura em curso. Ou como não perceber a complexa força que reside no fato de um filme protagonizado por uma drag queen tornar-se recorde de popularidade em um país ainda tão preconceituoso? O viés político, enfim, para o bem ou para o mal, passou a fazer parte de nossos discursos e de nosso cotidiano, o que aplica no Cinema (e na arte como um todo) um xeque-mate: deste ponto em diante, é impossível se fingir inocente.

Dias atrás, pouco mais de um ano depois do início da pandemia, a comédia Cabras da Peste estreou repleta de atualizações de clichês de gênero que, reconfigurados de modo a caber nos moldes de um estilo específico (muito semelhante ao dos filmes do Halder Gomes, que aqui assina apenas como produtor), podem fazê-lo soar como mais uma comédia descartável de fim de tarde. Mas o modo como o filme constrói e dispõe os elementos básicos que compõem a narrativa é, por si só, uma afirmação política: o policial nordestino, Bruceuilis Nonato, recém chegado em São Paulo, encontrará auxílio e alguma esperança no parceiro improvável, um completo desajustado ou, como se diz no próprio filme, o oposto do que se espera de um “policial de verdade”; juntos, essas duas figuras atrapalhadas, ligadas pelo paradeiro de uma cabra, precisarão encarar um vilão que, na ordem cronológica da narrativa, ganha contornos antagônicos após, literalmente, roubar o doce de uma criança, mas que acabará por se revelar um antagonista autoconsciente de sua monstruosidade, desses que veste a máscara da honestidade e do patriotismo para passar ileso por um caminho de corrupção e ilegalidades. Não é por acaso, por exemplo, que esse vilão se gaba de direitos adquiridos com seu cargo político e parafraseia jargões de determinados figurões da política brasileira. É possível, inclusive, enxergar na escolha do ator que personifica o vilão como um sofisticado comentário político: ser brega, em um sentido menos estético e mais comportamental, é vestir-se das mentiras mais cafonas, a fim de disfarçar a cretinice de uma personalidade cruel e vazia. 

Ao contrário de Cine Holliúdy, no qual a antagonização da chegada da televisão em detrimento da preservação da exibição cinematográfica pode dar ao mote central da narrativa um ar conservador, Cabras da Peste aposta em encontros improváveis (somando a essa equação uma cabra sequestrada, uma motorista de aplicativo hiper prestativa e um típico político corrupto) para formular uma história que, por mais que não assuma seus comentários políticos explicitamente como tantos outros filmes nacionais recentes, tem em sua composição criativa mais fundamental uma compreensão astuta das urgências do Brasil do tempo presente e a personificação precisa de uma iconografia inconfundivelmente brasileira.