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Vol. 03 – Nº 06 – 2022

Formas de olhar para cima

O Espaço Sideral, lugar de destino e fabulação no imaginário dos homens, ocupa certo lugar cativo no cinema. Assistimos guerras espaciais e aventuras estelares, sonhos que envolvem a existência de vida inteligente fora do planeta Terra, a ideia de outras civilizações, batalhas contra asteroides e alienígenas invasores, tecnologias extraterrestres, etc. O terreno da ficção científica, central ou plano de fundo das mais variadas narrativas, compõe o imaginário popular que se vale de criações elaboradas por incontáveis cineastas, de Andrei Tarkovski e seu drama existencialista em Solaris (1972) ao brasileiríssimo dedo na ferida de Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós. Aparentemente, gostamos de imaginar, daqui, os mistérios que estão além das estrelas.

Inseridos nesse universo, Não! Não Olhe! (Jordan Peele) e Marte Um (Gabriel Martins), ambos lançados em 2022, compartilham, cada um a seu modo, esse interesse pelo extra-terreno: no primeiro, como um mistério que se impõe sobre as personagens centrais e o lugar no qual estão inseridas; no segundo, como a motivação central do protagonista e, consequentemente, como força dramática que costura toda a narrativa. Duas formas de olhar (ou não) para cima.

Jordan Peele vem de duas obras muito celebradas. Corra! (2017) e Nós (2019) receberam bastante atenção na época de seus respectivos lançamentos, sendo que seu filme de estreia lhe garantiu, entre outros reconhecimentos, um Oscar que fez dele o primeiro homem negro a ganhar o prêmio na categoria de roteiro original. Logo de cara, um marco que colocaria sobre ele os olhos e a atenção de muita gente. Nós, seu filme seguinte, pode ter dividido a opinião de alguns aqui e ali, mas a mão do autor era, ainda, plenamente visível. Nessa toada, bastou que fosse lançado o trailer de sua mais nova empreitada para que inúmeras especulações começassem a rondar as redes. Nope, título aqui traduzido para Não! Não Olhe!, como era de se esperar, já entrou em cartaz sob uma áurea de excitação e altas expectativas por boa parte do público.

Por sua vez, o diretor mineiro Gabriel Martins, o Gabito, chegaria sozinho na condução de Marte Um após parcerias interessantes em co-direções de filmes como O Nó do Diabo (2017) e No Coração do Mundo (2019), este último em uma colaboração que já vinha de outros projetos com o também mineiro Maurílio Martins. Com a etiqueta da produtora Filmes de Plástico, formada pelos próprios Gabriel e Maurílio, mas também por André Novais Oliveira (outro grande nome do cinema mineiro contemporâneo) e o produtor Thiago Macêdo Correia, Marte Um ganhou o público rapidamente, chamou a atenção da crítica especializada e, quando tudo já parecia perfeito em sua carreira comercial, ainda foi selecionado para representar o Brasil na mesma premiação* que catapultou a carreira de Jordan Peele, o Oscar.

Mas o que realmente aproxima esses dois realizadores é o fato de serem ambos homens negros realizando filmes em uma indústria majoritariamente branca. Não por acaso, lá está o slogan da empresa familiar que protagoniza o filme americano, “since the moment pictures could move, we had skin in the game” (algo como “desde quando as imagens passaram a se mover, tínhamos a pele no jogo”), frase que toma para si o protagonismo de uma conhecida imagem de Eadweard Muybridge (abaixo), em uma invocação de ancestralidade a qual o próprio Gabito já havia recorrido em seu curta-metragem Rapsódia para um Homem Negro (2015), filme construído sob as nuances da relação entre Ogum e Oxossi, para dar texto e subtexto aos seus protagonistas, os irmãos Luiz e Odé.

Não! Não Olhe! acompanha o cotidiano de uma família negra de criadores/treinadores de cavalo (eles mesmos destacam: os únicos proprietários negros de cavalos em toda Hollywood) que se veem diante do desafio de manter a empresa funcionando após a morte do patriarca Otis, fatalmente atingido por um objeto misterioso que caiu do céu. Dentre as estratégias para manter tudo em pleno funcionamento, o filho mais velho Otis Jr., ou apenas OJ (Daniel Kaluuya), e sua irmã Emerald (Keke Palmer) chegam a vender um de seus cavalos para um rancho vizinho, onde funciona um parque temático cujo dono é um ex-ator mirim, interpretado por Steven Yeun, cujo show fora, muitos anos antes, encerrado por causa de uma tragédia brutal ocorrida no set de filmagens. De repente, eventos inexplicáveis começam a acontecer nos céus da Califórnia, sobre a região dos ranchos de OJ e Ricky (Yeun), mistérios que, por um lado, causam horror aos ocupantes daquele lugar, mas que, por outro viés, podem ser a oportunidade que eles precisavam para manterem-se vivos naquele caos.

Na lógica dos acontecimentos de Não! Não Olhe!, é coerente que, em certa altura da história, um dos personagens teorize a respeito do “monstro” que os assombra: talvez seja melhor não olhar diretamente para ele, já que isso o torna mais agressivo, mais perigoso. É como se o tal monstro fosse, talvez, uma espécie de espelho cujo reflexo devolve ao seu observador o medo, o mais puro pavor, ou uma sensação de morte iminente.

Marte Um é outra história, outro filme, mas também observa de perto o cotidiano de uma família negra. Essa, no caso, vive na região periférica de Contagem, Minas Gerais, em um tempo que agora podemos chamar de passado e, finalmente, olhar com alguma distância (ainda que inicial): o tempo da eleição de um governo que destruiu o Brasil nos últimos quatro anos. Pai, mãe, filha e filho, cada um deles uma constelação inteira. Deivinho (Cícero Lucas), o caçula da família, sonha em se tornar astrofísico, mas o pai, Wellington (Carlos Francisco), quer que o filho siga a carreira de jogador profissional de futebol, já que o garoto tem talento para isso. Tércia (Rejane Faria), a mãe, deixa-se contaminar por certo mau agouro após um evento traumático, reimaginando seu cotidiano sob a sombra dessa maldição enquanto Eunice (Camilla Damião), a filha mais velha, descobre a si mesma ao conhecer o amor.

Resumidamente, é um filme que cobre eventos do cotidiano dos integrantes dessa família negra e periférica, com entrelinhas que comentam a vivência da negritude, mas sem apelar para estereótipos fáceis ou velhos costumes (geralmente racistas) do cinema brasileiro mainstream. E, apesar de se entrecruzarem ou colidirem aqui e ali, os trajetos dos astros que compõem essa constelação familiar acabam por, ao fim, cooperar e seguir um único sonho.

Se em Não! Não Olhe! o monstro que assombra aqueles corpos é um mistério que se revelará entre as nuvens, movimentando-se nos céus da Califórnia, em Marte Um o inimigo é o próprio “tempo presente” da narrativa, o tempo da eleição de Bolsonaro e da sombra maligna de seus ideais projetada sobre os indivíduos brasileiros marginalizados — a sensação da mãe de estar amaldiçoada é, de várias maneiras, um sintoma comum daquele momento, daqueles corpos. Se a ameaça nos céus californianos mantém as personagens cabisbaixas enquanto planejam estratégias para vencer o inimigo, aqui, a névoa bolsonarista faz com que os olhos de Deivinho enxerguem, em uma futura missão de colonização do planeta Marte, um sonho, um projeto de vida, um destino possível.

Em outro filme bem falado este ano (Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, de Radu Jude), um dos atos se configura como uma espécie de glossário ilustrado. Nele, há uma definição curiosa sobre o que seria o Cinema: entre os presentes oferecidos pelos deuses para derrotar a Medusa, está o escudo de Perseu, através do qual o herói foi capaz de observá-la através do reflexo, indiretamente, e derrotá-la, cortando sua cabeça com cabelos de cobra; para Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, o cinema é o escudo de Perseu, através do qual se pode olhar para a realidade sem encará-la diretamente.

Talvez essa não seja a definição perfeita (e alguma é?) sobre o que é o CInema, mas parece propícia aqui: observar através das lentes de uma câmera ou de um telescópio construído em casa, gesto ao qual recorrem tanto a família Haywood (Nope) quanto os Martins (Marte Um), permite a essas personagens não apenas ver através de um reflexo ou de uma captura, mas também observar o universo e as possibilidades de mundo muito além dos limites impostos pelas circunstâncias do tempo e do espaço.


*apenas um dia após a publicação deste texto, a Academia anunciou os pré-selecionados para a próxima fase na categoria de filme internacional e, infelizmente, Marte Um já não constava na lista.

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Críticas

Clausura narrativa em Oxygen, de Alexandre Aja

Na verdade eu queria dizer narrativa em clausura. Talvez eu esteja confuso.

Oxygen, produção recente da Netflix dirigida pelo cineasta francês Alexandre Aja, promete, desde seu primeiríssimo plano, uma narrativa condicionada à claustrofobia: em um gigantesco labirinto, um rato de laboratório perambula perdido; o animalzinho, tenso, obviamente não sabe para onde deve ir. Essa condição de clausura logo se revelará um fator indispensável para o desenvolvimento da trama e, para tanto, se fará necessário associar essa natureza claustrofóbica a uma figura central.

Elizabeth Hansen (Mélanie Laurent) passará praticamente um filme inteiro, seja lá quanto isso dure, presa dentro de uma cápsula tecnológica programada para levar seu corpo a outro planeta a fim de colonizá-lo, já que a vida humana na Terra foi fatalmente comprometida. Nada de novo no front.

Despertada do sono por causa de problemas técnicos em sua cápsula, tudo que ela precisará para escapar dessa minúscula prisão é acessar sua própria memória, que fora completamente desestruturada por causa dos anos em que passou adormecida em um sono profundo proporcionado pela máquina que, agora, aprisiona seu corpo. Parece que enveredaremos para o campo da memória…

Códigos, mecanismos, programações: tal como na metáfora do rato perdido no labirinto, sua salvação está registrada em si mesma, em algum lugar de difícil acesso dentro de sua mente (que sabe-se lá por quais motivos se revelará obcecada por outro objetivo até os minutos finais da trama).

Esse cenário, apesar de minúsculo, guarda algumas surpresas, armadilhas programadas, alucinações, mecanismos que vão desde sedativos a injeção letal, caso seja necessário. Se devia ser uma alusão aos processos de memória, talvez coubesse também um indicativo patológico. Tudo isso poderia servir como amplificador da tensão necessária para que o filme, enquanto narrativa claustrofóbica, de fato funcione em sua completude, mas o roteiro lança mão de todo esse recurso com tamanha rapidez e superficialidade que fica difícil esperar alguma nova ameaça para além das limitações geométricas da cápsula (barreira que já entendemos desde os primeiros minutos de filme, oras).

Todo esse esquema narrativo criado a partir do claustro, portanto, parece imobilizar também o desenvolvimento da trama, engessá-lo ao previsível, como um rato que corre atrás do próprio rabo; principalmente quando se adiciona a ela um fator importantíssimo que, inclusive, dá nome ao filme: o que resta de oxigênio dentro da cápsula é o que Elizabeth ainda tem de tempo de vida. Cinema, tempo, movimento… uma armadilha.

Mas o que para muitos pode soar como um jogo interessante dentro da dinâmica espaço/tempo (cápsula/oxigênio), pode, por outro lado, parecer um tanto mórbido para outros olhares – afinal, qual seria a graça de se observar, durante quase duas horas, a imagem de um rato eternamente preso em um labirinto, emitindo sons inteligíveis de agonia?

O modus operandi do desenvolvimento narrativo acaba se deixando enclausurar pelo próprio mecanismo que propõe, porque tudo que é turvo se revela depressa e o que era mistério se elucida com tamanha obviedade que pouco resta ao espectador mais sedento.

Uma curiosidade talvez escape, um fator que confirmaria a ideia de claustrofobia como aposta central da narrativa: a escolha de Mathieu Almaric como ator responsável pela voz onipresente do robô M.I.L.O (a voz dentro da cápsula) muito provavelmente por causa de seu papel ontológico em um drama radicalmente claustrofóbico, O Escafandro e a Borboleta (Julian Schnabel, 2007). Lá, a ousadia do dispositivo fílmico mantinha mesmo tudo em clausura, tensionando limites e experimentando uma linguagem áspera e única que, aqui, não chega nem perto.

Trocadilhos à parte, falta ar em Oxygen.

Previsível, o filme parece cada vez menor e menos interessante à medida que se aproxima de seu desfecho. É como se, a partir de pouco mais da metade, nada mais lhe restasse a não ser uma coletânea cafona de ângulos e sequências melancolicamente masoquistas, um repertório pobre e pouco inovador deveras distinto do que o mesmo Alexandre Aja conseguiu elaborar em sua obra anterior, o igualmente claustrofóbico, mas muito mais inteligente e eficaz Predadores Assassinos (2019).

Sufoco.