Categorias
Vol. 03 - Nº 05 - 2022

A Diarista: humor fora dos padrões?

Quem viveu no Brasil nos anos 2000 com certeza se lembra do marco da televisão nessa época. Sem smartphones e com baixo entretenimento digital, os anos 2000 proporcionaram produções audiovisuais que ditaram moda e pautaram os assuntos discutidos na época, bem como a vestimenta das pessoas e seus gostos.

Uma dessas produções foi a clássica série A Diarista, que reverbera até hoje no gosto popular e gera debates acerca de estética, comportamento e do teor humorístico aceito na época, que deu o tom e o contexto daquela produção.

Escrita por Gloria Perez, Maria Mariana, Bruno Mazzeo e Aloísio de Abreu, A Diarista conta a história de uma diarista do Rio de Janeiro que vive histórias para lá de engraçadas. A ideia é ilustrar, de maneira exagerada, situações do dia a dia que os brasileiros vivenciavam no trabalho, no transporte público e até em seus locais de diversão.

Protagonizada por Cláudia Rodrigues, que vivia Marinete, A Diarista teve sua primeira exibição no ano de 2004 e última em 2007 e possui 4 temporadas, que começavam a ser exibidas no início de cada ano e finalizadas, no fim deles.

Entre os ingredientes daquela obra, os amigos de Marinete:

Solineuza (Dira Paes), a “Poia”, apelido dado por Marinete, pois ela era a personagem ‘burra’; Seu Figueirinha (Serjão Loroza), o chefe mesquinho de Marinete, constantemente hostilizado por seu corpo gordo e sua cor; Dalila (Cláudia Mello), a amiga macumbeira de Marinete, constantemente hostilizada por sua mediunidade/simpatias; Ipanema (Helena Fernandes), a amiga fora dos padrões femininos, constantemente hostilizada por tal.

Todos esses ingredientes eram misturados a um outro: a elite carioca daquele tempo, os patrões de Marinete, que a rebaixavam por ser pobre e diarista.

Todas as representações de seres humanos fora dos padrões de comportamento e aparência da sociedade eram servidas ao público como ‘humor’. Nos tempos de hoje, A Diarista seria hostilizada por grande parte do público justamente por esse feito. Um dos grandes problemas da série é que, pelo teor humorístico com minorias, constantemente eram apresentadas cenas de black face, prática já fortemente rechaçada hoje em dia.

FOTO: Episódio 14 da 2ª Temporada

A série parecia suportar apenas pessoas que seguem os padrões da sociedade e ignorar alguns participantes dela, como homossexuais, que possuíam pequenas participações em alguns episódios e, quando apareciam, era sempre de modo caricato, com empregos que reforçavam estereótipos – como o cabelereiro afeminado, por exemplo.

A espiritualidade na série está fortemente ligada à religião cristã, já que todo e qualquer personagem que pense diferente dessa ideologia, é criticado, como Dalila por exemplo (personagem cuja fé estava ligada a uma religião de matriz africana).

Além disso, Marinete vivia reclamando de seu cabelo, alegando ser “ruim”, o chamando de “bombril” um cabelo crespo. Serjão Loroza, que vivia Figueirinha, possuía um papel bem peculiar. Além de mesquinho, ele ironizava o fato de ser um ‘negão’ e acima do peso. Apesar do corpo fora dos padrões, Seu Figueirinha era um personagem hiper sexualizado, que reforçava estereótipos de promiscuidade de pessoas pretas, sobretudo com frases como: “não aguenta o negão”, “o do negão é maior” etc.

Figueirinha também reforçava estereótipos sobre o corpo gordo, já que constantemente aparecia comendo banquetes e mais banquetes, como se o corpo gordo só fosse assim por conta de algum descontrole alimentar. Tal comportamento se repetia em Dalila, que também era gorda.

A Diarista, assim como grande parte das produções dos anos 2000, não ligava para o politicamente correto e investia pesado naquele famoso humor clichê, com “piadas de gordo”, “piadas de loira” e “piadas de macumbeiro”, não respeitando religiões de origem não cristã, tampouco o corpo e ou a sexualidade das pessoas.

Sobre o ambiente de diversão em que viviam as personagens, era o mais insalubre possível quando se tratava de Marinete e suas amigas, justamente para gerar a impressão de que pessoas pobres não possuem acesso a locais de qualidade, reservados apenas para a elite carioca, ou seja, gente como os patrões de Marinete, que sempre apareciam em locais mais sofisticados, enquanto a pobre diarista ocupava, constantemente, os botequins malcuidados da cidade.

O reforço desses estereótipos fazia um belo desserviço para a população consumidora daquele sucesso. Isso porque a Rede Globo, quando os inseria com naturalidade na produção, também gerava certa naturalidade no dia a dia. Ou seja, se as pessoas já riam disso, possivelmente passariam a reproduzir tais preconceitos contra gordos, pessoas pretas, homossexuais, pobres e de religiões com vieses diferentes dos cristãos.

O machismo também era algo bastante presente, já que as mulheres sempre eram objetificadas pelos próprios personagens, como Seu Figueirinha. Um dos episódios que mais deixa explícito (S02E17), foi um em que Ipanema participou de um ensaio fotográfico para ganhar um dinheiro extra e foi perseguida por dias, por vários homens com comportamentos primitivos.

Além de ser perseguida, Ipanema recebeu o desprezo de suas amigas, ao invés de apoio, pois ela teria tecnicamente “roubado” todos os homens só para ela. Um comportamento bizarro que tecia, ali, um comentário certeiro a respeito da união entre os homens e a ideia de “rivalidade feminina”.

Vale ressaltar que, naquele mesmo episódio, assim que outra mulher posou para o calendário, no mês seguinte, Ipanema foi esquecida e deixada de lado, como um brinquedo que ninguém quer mais brincar e larga numa gaveta do armário.

Vimos mais um exemplo de objetificação da mulher e de LGBTfobia no episódio 14 da 1ª temporada, onde Marinete atende uma patroa que quer evitar seu ex-namorado. Para despistá-lo, esta inventa que Marinete era sua nova namorada.

Durante todo o episódio, várias ofensas à comunidade LGBT eram proferidas com o intuito de gerar humor. A própria justificativa da patroa era estapafúrdia: criar um relacionamento homossexual mentiroso apenas para despistar o boy? Como diria Isabela Boscov: “Ah, tenha santa paciência!”

Como pode ser observado, são vários os problemas na obra da Rede Globo, mas deve-se ponderar o contexto em que ela foi exibida. A sociedade agia dessa forma, talvez até mais do que atualmente, e A Diarista apenas reproduzia, de maneira exagerada e caricata, os comportamentos, ao mesmo tempo que os reforçava.

Apesar dos movimentos a favor de cada minoria citada já existirem na época, não tinham tanta força quanto nos dias de hoje. Com a democratização do acesso à internet, a informação tomou conta de vários espaços onde a ignorância imperava, fazendo com que o audiovisual se moldasse aos novos costumes da sociedade.

É possível que A Diarista tenha sido uma excelente série nos anos em que foi exibida, mas hoje, com certeza, seria um desserviço para a televisão brasileira pela carga preconceituosa que carregava.

Sem dúvidas, um marco de altíssima qualidade, mas perigoso para os dias atuais, já que objetificava o corpo e reduzia as espiritualidades não cristãs a mera chacota social.

Categorias
Críticas

Uma comédia brasileira

Quando Cine Holliúdy, comédia regional dirigida por Halder Gomes, caiu nas graças do público, o contexto político e social dos brasileiros era inegavelmente outro. Se apenas no ano seguinte o país romperia em manifestações numerosas que mudariam completamente os rumos de nossa história política, exigindo da arte, a partir daí, uma postura outra diante do mundo, nosso cinema mais popular podia ainda respirar tranquilamente os ares de uma liberdade imaginativa que, naquele momento, gozava de carta branca para aparentar altos níveis de ingenuidade. 

De lá para cá, o Brasil mudou bastante. E isso inclui nosso cinema como um todo, já que a última década foi dominada por filmes politicamente engajados que vão desde obras mundialmente reconhecidas, como Democracia em Vertigem ou Bacurau, à comédias pop, de elenco e estilo manjados, como a O Candidato Honesto, por exemplo. A questão é que, provavelmente por servirem como uma possibilidade agradável e simples de escape da realidade, nossas comédias sempre estiveram no gosto do público, desde as chanchadas carnavalescas dos anos 30, passando pelas pornochanchadas, até chegar aos filmes de humor da atualidade. Afinal, não foi à toa que o mais recente dos filmes da franquia Minha Mãe é uma Peça destronou todos os recordes e tornou-se a maior bilheteria nacional de todos os tempos.

Engana-se, porém, quem acredita que tais filmes se abstenham do teor político tão explícito em outros gêneros no cinema brasileiro da última década. Em Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, a diretora Fernanda Pessoa consegue revelar entrelinhas da Pornochanchada através de uma remontagem que, por si só, traz à luz a subversão de um gênero que muitas vezes se opunha, ainda que cautelosamente, à opressão da ditadura em curso. Ou como não perceber a complexa força que reside no fato de um filme protagonizado por uma drag queen tornar-se recorde de popularidade em um país ainda tão preconceituoso? O viés político, enfim, para o bem ou para o mal, passou a fazer parte de nossos discursos e de nosso cotidiano, o que aplica no Cinema (e na arte como um todo) um xeque-mate: deste ponto em diante, é impossível se fingir inocente.

Dias atrás, pouco mais de um ano depois do início da pandemia, a comédia Cabras da Peste estreou repleta de atualizações de clichês de gênero que, reconfigurados de modo a caber nos moldes de um estilo específico (muito semelhante ao dos filmes do Halder Gomes, que aqui assina apenas como produtor), podem fazê-lo soar como mais uma comédia descartável de fim de tarde. Mas o modo como o filme constrói e dispõe os elementos básicos que compõem a narrativa é, por si só, uma afirmação política: o policial nordestino, Bruceuilis Nonato, recém chegado em São Paulo, encontrará auxílio e alguma esperança no parceiro improvável, um completo desajustado ou, como se diz no próprio filme, o oposto do que se espera de um “policial de verdade”; juntos, essas duas figuras atrapalhadas, ligadas pelo paradeiro de uma cabra, precisarão encarar um vilão que, na ordem cronológica da narrativa, ganha contornos antagônicos após, literalmente, roubar o doce de uma criança, mas que acabará por se revelar um antagonista autoconsciente de sua monstruosidade, desses que veste a máscara da honestidade e do patriotismo para passar ileso por um caminho de corrupção e ilegalidades. Não é por acaso, por exemplo, que esse vilão se gaba de direitos adquiridos com seu cargo político e parafraseia jargões de determinados figurões da política brasileira. É possível, inclusive, enxergar na escolha do ator que personifica o vilão como um sofisticado comentário político: ser brega, em um sentido menos estético e mais comportamental, é vestir-se das mentiras mais cafonas, a fim de disfarçar a cretinice de uma personalidade cruel e vazia. 

Ao contrário de Cine Holliúdy, no qual a antagonização da chegada da televisão em detrimento da preservação da exibição cinematográfica pode dar ao mote central da narrativa um ar conservador, Cabras da Peste aposta em encontros improváveis (somando a essa equação uma cabra sequestrada, uma motorista de aplicativo hiper prestativa e um típico político corrupto) para formular uma história que, por mais que não assuma seus comentários políticos explicitamente como tantos outros filmes nacionais recentes, tem em sua composição criativa mais fundamental uma compreensão astuta das urgências do Brasil do tempo presente e a personificação precisa de uma iconografia inconfundivelmente brasileira.