Para o ano que vem, se este acabar, esta revista pretende fazer muitas coisas. São tantos planos… O que esperávamos de 2021 pode ter acontecido, mas a impressão que temos é que esse ano sequer começou. 2020 nunca acaba. A pandemia é um ano só, um período, um momento, uma era.
Mas façamos nossas listas para os dias vindouros, listas de vontades, planos e desejos, ainda que alguns pesadelos recorrentes queiram cegar nossa visão de futuro, nossa projeção de Brasil e de mundo, e nossa esperança por dias melhores.
Tudo passa, e tomara que todos os males que nos rodeiam (e nos governam) sejam derrubados e fracassem, que tombem magistralmente do alto de seus paus pequenos. Que nosso futuro doa neles o que dói, agora, em nós, este presente.
E enquanto não vem o novo e imaginamos/construímos futuros possíveis e impossíveis, observamos o presente e o passado para formular outras listas: o que, enquanto imagem, nos atravessou nesse(s) ano(s) que nunca termina(m)?
Em sua primeira contribuição para a Reimagem, Erly Vieira Jr. traça um panorama de curtas-metragens realizados no Brasil em 2020 e 2021, com direito a bônus de dois longas importantíssimos, para pensar os futuros caminhos do audiovisual nacional. Gustavo Guilherme da Conceição elenca 11 produções nacionais e internacionais recentes que, de alguma maneira, conversam entre si em uma busca pelo direito à memória, à resistência e à vida. Waldir Segundo aposta em uma lista mais direta e comercial que observa tanto filmes e séries como jogos e outros projetos audiovisuais realizadas em 2021. PH Martins, em seu trajeto de textos didáticos sobre questões técnicas fundamentais ao cinema, entrega uma lista de músicas dos Racionais MC’s que poderiam facilmente ser parte de uma aula de roteiro cinematográfico. Por fim, os integrantes do podcast Terrorias da Conspiração elencam filmes, séries e videoclipes baseados, inspirados ou totalmente entregues ao terror.
São cinco listas que olham para esses dois últimos anos como se fossem um, apontando para produções que, de alguma forma, podem resistir a tudo isso e nos acompanhar no caminho que pretendemos trilhar de aqui para adiante.
Em 2021, como parte integrante da nossa terceira edição, lançamos o podcast Terrorias da Conspiração, um programa bem humorado, dedicado aos filmes e séries de horror, onde a ideia central era refletir de modo leve sobre questões como vida e morte, céu e inferno, a fé e a religiosidade, e tantos outros temas comuns abordados pelo terror desde seus primeiros passos dentro da história do audiovisual. Estamos em hiato, reformulando ideias enquanto nos dedicamos a outro projeto.
Esta lista, em consonância com a proposta da atual edição, propõe enxergar dois anos em um: o ano da pandemia, do isolamento, da solidão forçada, no Brasil, por dois vírus: aquele que conhecemos como Covid-19, e o que provavelmente será lembrado como o pior governante brasileiro, o presidente Bolsonaro, cuja necropolítica fez brotar em nosso povo, em plena crise sanitária mundial, uma sensação de insegurança e desespero muito mais assustadora que a provocada por qualquer filme de terror já feito.
Formular uma lista que elenque (e indique, de certa forma) filmes/séries e outros produtos audiovisuais calcados no gênero pode parecer um gesto contraditório nesses tempos cabulosos, mas o fato é que alguns monstros e medos criados pela ficção, ultimamente, tem se tornado menos terríveis – e às vezes até mais agradáveis de se olhar – que os monstros e medos da vida real. Utilizar dessas expressões como refúgio da realidade assombrosa que vivemos – e que ainda tem um resto de caminho penoso em 2022 – foi e é, para muitos de nós, a única maneira de seguir em frente numa realidade de tantos absurdos evitáveis.
Eis nossa contribuição para este volume que a Reimagem nos propõe no fim desse tão cansado de… 2020? 2021?
Sem ordem de preferência, eis a lista:
Midnight Mass (Mike Flanagan, 2021)
In Your Eyes (The Weeknd, 2020)
The Night House (David Bruckner, 2021)
Malignant (James Wan, 2021)
Censor (Prano Bailey-Bond, 2021)
Relic (Natalie Erika James, 2020)
Menarca (Lillah Halla, 2020)
A Queda (Gloria Groove, 2021)
Sound of violence (Alex Noyer, 2021)
Fear Street (Leigh Janiak, 2021)
Lovecraft Country (Misha Green, 2020)
Tapuru (Getúlio Abelha, 2021)
Chucky (Don Mancini, 2021)
Old (M. Night Shyamalan, 2021)
Nem um Pouquinho (Duda Beat, 2021)
Menção desonrosa (ou menção horrorosa)
Assim como tudo nessa vida não passa de uma grande piada horrorosa, o Terrorias da Conspiração segue essa filosofia e, para ilustrar toda essa (des)graça, separamos esta seção da lista para nossas Menções Horrorosas, que vão para: Oxygen(Alexandre Aja, 2021); Host(Rob Savage, 2020); os dois filmes baseados no crime Richthofen (O Menino/A Menina que Matou meus/os Pais) e a série Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado, ambos da Amazon Prime Video (2021).
Essa lista foi elaborada por integrantes (reais ou imaginários) do podcast Terrorias da Conspiração. Você pode discordar, mas não pode nos matar. Afinal, já estamos todxs mortxs.
Dois mil e vinte nunca acabou. Dois anos em um. Até agora. “A Pandemia”: assim chamamos um período inteiro de caos na saúde pública regido por um (des)governo inegavelmente irresponsável. Adotamos um adjetivo e até o utilizamos para nomear alguns projetos, algumas ideias: “pandêmico”.
Nesse momento conturbado, porém, muita gente produziu filmes, séries, videoclipes, vídeos ensaios, webséries e toda uma complexidade de registros audiovisuais muito diversa, boa parte a fim de capturar alguma coisa desse período específico. Isolados, aqui ou em qualquer parte do mundo, produzimos como nunca e, produzindo, dissemos (ou não) muitas coisas.
Penso que, nesse instante interminável, um tema nos sobrevoa. Falamos de vivências e de morte, de lutas e resistências; destruímos e (re)construímos imagens com nossos corpos, com nossas dores, com nossas angústias e, também, com mistérios que redesenham e/ou redescobrem imaginários, que fabulam sobre passados, presentes e futuros (im)possíveis.
Somos, portanto, talvez mais do que sempre fomos, agentes de memória. Eis nosso tema “pandêmico” por excelência. A memória do que fomos e do que estamos sendo e do que poderemos ser em um futuro próximo.
Sobre as imagens que, nesse tempo, tecemos em tela, pode-se dizer então que costuramos um memorial atemporal. Afirmamos a vida através de nossos corpos, filmamos nosso cotidiano mais banal, ou nosso desejo mais abissal, nossas insignificâncias e nossos atravessamentos. Em nossos corpos traspassados, renegados, marginalizados, traçamos velhos e novos imaginários. Repudiamos um país que nos agride e inventamos outras pátrias, outros mundos, outros universos, outros futuros. Revisitamos ruínas e perscrutamos escombros, escavando e redescobrindo histórias que, um dia, foram roubadas de nossos ancestrais. Sobrevivemos e vivemos… e como vivemos! Ressuscitamos nossos mortos, viajamos no tempo e através dos espaços, sobretudo desses espaços espúrios que nos reservaram, adentramos suas portas e derrubamos suas paredes com a violência das nossas imagens-memórias, porque esse registro memorial não se detém aos limites impostos, não necessita de máscaras e obstáculos; tudo quer e pode ser visto.
É sob o prisma deste registro desmedido da memória e do direito à memória que penso essa lista, não numerada e sem ordem de preferência, desejoso que ela se encontre – e seja encontrada – em um território capaz de observá-la com algum carinho, sabendo que essa lista/memorial não se contenta em ser “pandêmica”, apesar do tempo em que foi construída. Uma lista de filmes e séries deste tempo, deste agora interminável, mas que também inventa outros tempos (ontens, hojes, amanhãs):
Uma Noite Sem Lua (Castiel Vitorino Brasileiro, 2020)
Voltei! (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)
Inabitável (Enock Carvalho e Matheus Farias, 2020)
Petite Maman (Céline Sciama, 2021)
Manhãs de Setembro (Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, 2021)
Madres Paralelas (Pedro Almodóvar, 2021)
The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade (Barry Jenkis, 2021)
Felizmente, descobri os Racionais MC’s bem cedo na vida. Negro Drama. Isso na adolescência, um menino da roça, cidade pequena, zero conhecimento de mundo ou de seus problemas mais cruciais. Então, a música batia mais pelo ritmo e pela raiva cantada do que pelo que estava sendo dito. Mas batia, ainda assim.
Uma faculdade de cinema depois, ouço Racionais todos os dias. Me tornei um ouvinte assíduo nos últimos três anos, agora sim pelo que se dizia nas letras, pela forma com que se dizia, e pelo ritmo, pelas histórias…
Sou um roteirista aspirante, de alguma forma estudioso do roteiro cinematográfico e de suas teorias. Talvez por isso tenha percebido outra coisa em relação às músicas do grupo: algumas delas são puro cinema, roteiros perfeitos de tramas bem elaboradas e bem contadas. Se o roteiro de cinema é um modo de (d)escrever ações e imagens e saber selecionar tanto as partes tensas quanto amenas de uma vida para construir uma trama, então os Racionais, além de músicos, são cineastas.
Por isso apresento esta lista. Vou escrever, brevemente, sobre cinco músicas dos Racionais MC’s que deveriam ser usadas como estudo de roteiro cinematográfico.
Então, vamos lá:
5 – Eu Sou 157
No livro “Sobrevivendo no Inferno”, que junta as letras do álbum de mesmo nome dos Racionais, há um prefácio escrito por Acauam Silverio de Oliveira onde o autor analisa toda a obra do grupo e pontua as mudanças de estilo com o passar do tempo. A parte mais interessante para mim é quando Acauam mostra que, nas primeiras músicas, o discurso falava dos problemas da favela com uma visão soberba, colocando as soluções diante dos olhos dos moradores das comunidades e julgando o fato de que eles não as viam. A partir de Sobrevivendo no Inferno isso muda. Toda a problemática agora é tratada de forma respeitosa, mesmo com as coisas mais violentas. A intenção não é mostrar para o restante da sociedade a vivência da favela, isso a MPB tentou fazer. O que os Racionais queriam e ainda querem é olhar para dentro e fortalecer a própria favela. Por isso, a mudança de postura.
Dentro disso se encontra Eu Sou 157, do álbum Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Aqui, Mano Brown conta um pouco da cabeça de um rapaz que já está completamente enraizado no crime. Na segunda estrofe, é apresentada uma situação que mostra essas raízes, em que o personagem é abordado por um outro homem querendo se enturmar, falando gíria, falando de drog…. Ele analisa essa pessoa, fala dos seus modos, de como chegou ali, e no fim descobre que era um policial sob disfarce. Sua experiência possibilitou esse reconhecimento e essa fuga.
A música segue contando seus pensamentos internos até que surge um trabalho a fazer, um assalto planejado. Mas o crime dá errado, alguém os caguetou e um moleque morre. Então, vem a estrofe:
O neguinho vinha vindo, do que vinha rindo? O pesadelo do sistema não tem medo da morte Dobrou o joelho e caiu como um homem Na giratória, abraçado com o malote Eu falei, porra! Eu não te falei?! Não ia dar! Pra mãe dele, quem que vai falar, quando nóis chegar? Um filho pra criar, imagina a notícia Lamentável, vamo aí, vai chover de polícia
Em seguida, a música faz uma digressão. Por alguns segundos o beat para, ouvimos o som de uma televisão e de uma mulher chorando em desespero. É a mãe do menino morto. No meio da ação, Brown faz uma vírgula para contar brevemente sobre outra linha narrativa. E só precisa de um choro para isso.
Depois, outra estrofe, seguida do refrão:
A vida é sofrida, mas não vou chorar Viver de quê? Eu vou me humilhar? É tudo uma questão de conhecer o lugar Quanto tem, quanto vem e a minha parte, quanto dá porque…
Hoje eu sou ladrão, artigo 157 As cachorra me ama, os playboy se derrete Hoje eu sou ladrão, artigo 157 A polícia bola um plano, sou herói dos pivete
Foi triste, foi sofrido, mas essa é a vida dessa personagem. Agora, e o dinheiro? É o fim perfeito.
4 – Capítulo 4, Versículo 3
A terceira faixa de Sobrevivendo no Inferno é uma das maiores canções da história da música brasileira. Ela abre exatamente com o discurso que citei acima. Não adianta falar da criminalidade, da pobreza e da fome como se a solução fosse fácil. Ela não é. E se há um lugar por onde começar a encontrá-la, esse lugar não está fora da favela, não está em Brasília. Está dentro da própria comunidade. Esse trecho famoso fala exatamente sobre isso:
Colou dois mano, umacenou pra mim De jaco de cetim, de tênis, calça jeans Ei, Brown, sai fora, nem vai, nem cola Não vale a pena dar ideia nesse tipo aí Ontem à noite eu vi na beira do asfalto Tragando a morte, soprando a vida pro alto Ó os cara, só o pó, pele e osso No fundo do poço, mó flagrante no bolso Veja bem, ninguém é mais que ninguém Veja bem, veja bem, e eles são nossos irmãos também Mas de cocaína e crack, uísque e conhaque Os mano morre rapidinho, sem lugar de destaque Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? Nem dá, nunca te dei porra nenhuma
Por isso, Capítulo 4, Versículo 3 funciona como essa grande reflexão, intercalando diálogos internos com histórias pontuais. Funciona como Magnólia, do Paul Thomas Anderson, ou Amores Brutos, do Alejandro González Iñarritu.
Em seguida, segue a história de vários anos de um personagem que foi do céu ao inferno.
Em poucas linhas, os Racionais falam da vitória e da desgraça, falam de todos os problemas que esse personagem passou ao mesmo tempo em que também falam de questões “menores”. E isso é roteiro, saber fazer perceber, às vezes, que o que vemos de um personagem também pode ser algo que já se deu anteriormente, ou que vai se repetir no futuro. O que diz muito sobre tal personagem. O pulo do gato, no entanto, é saber contar isso sem soar artificial:
Você vai terminar tipo o outro mano lá Que era um preto tipo A, ninguém tava numa Mó estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma, é Um jeito humilde de ser, no trampo e no rolê Curtia um Funk, jogava uma bola Buscava a preta dele no portão da escola Exemplo pra nós, mó moral, mó Ibope Mas começou a colar com os branquinho do shopping (aí já era) Ih, mano, outra vida, outro pique Só mina de elite, balada, vários drinques Puta de boutique, toda aquela porra Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra Faz uns nove anos Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto O cara cheira mal, as tias sentem medo Muito loco de sei lá o quê, logo cedo Agora não oferece mais perigo Viciado, doente, fudido, inofensivo
3 – Jesus Chorou
Talvez eu vá longe demais agora, mas a introdução de Jesus Chorou, também do Nada Como Dia Após o Outro Dia me lembra a introdução de Persona, do Ingmar Bergman. Persona é um dos maiores filmes de todos os tempos e sua primeira sequência, da primeira vez em que se vê, parece completamente deslocada do resto do filme. Ela mostra diversas imagens de arquivo até chegar no quarto onde uma criança dorme. Essa criança acorda e vê, numa tela, talvez a mesma tela em que as imagens de arquivo estavam passando, o rosto da personagem de Liv Ulmann, Elisabet. Há algumas teorias sobre essa introdução de Bergman, a principal delas é que essa criança é uma representação do filho de Elisabet, que (ela mesma é quem conta) ela não foi capaz de criar.
A primeira estrofe de Jesus Chorou é uma reflexão sobre a angústia, e faz isso ao falar sobre a lágrima:
O que é, o que é? Clara e salgada, Cabe em um olho e pesa uma tonelada Tem sabor de mar, Pode ser discreta Inquilina da dor, Morada predileta Na calada ela vem, Refém da vingança, Irmã do desespero, Rival da esperança Pode ser causada por vermes e mundanas E o espinho da flor, Cruel que você ama Amante do drama, Vem pra minha cama, Por querer, sem me perguntar me fez sofrer E eu que me julguei forte, E eu que me senti, Serei um fraco quando outras delas vir Se o barato é louco e o processo é lento, No momento, Deixa eu caminhar contra o vento Do que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável? O vento não, ele é suave, mas é frio e implacável (E quente) Borrou a letra triste do poeta (Só) Correu no rosto pardo do profeta Verme sai da reta, A lágrima de um homem vai cair, Esse é o seu BO pra eternidade Diz que homem não chora, Tá bom, falou, Não vai pra grupo irmão aí, Jesus chorou!
Eu entendo Jesus Chorou como uma das músicas mais pessoais de Mano Brown, e também vejo nela uma ligação com o momento que os Racionais viviam, o da fama absoluta.
Depois dessa introdução, a música segue contando de um personagem que é acordado por uma ligação. Um amigo lhe conta de um encontro que teve ontem com um cara que começou a falar que esse personagem era uma pessoa mesquinha e que não se importava com os seus (seus manos da favela), depois que ficou bem de vida. Ela funciona como um longo diálogo interno, o personagem não está psicologicamente bem de saúde. A música não conta uma história completa como as outras que já apresentei, mas gosto como ela apresenta angústias, medos e pensamentos do personagem. Como neste trecho:
Vermelho e azul, “Hotel”, pisca só no, Cinza escuro do céu Chuva cai lá fora e aumenta o ritmo, Sozinho eu sou agora o meu inimigo íntimo Lembranças más vem, pensamentos bons vai, Me ajude, sozinho penso merda pra caralho Gente que acredito, gosto e admiro, Brigava por justiça e paz levou tiro: Malcom X, Ghandi, Lennon, Marvin Gaye, Che Guevara, 2Pac, Bob Marley e O evangélico Martin Luther King Lembrei de um truta meu falar assim: “Não joga pérolas aos porcos irmão, Joga lavagem eles prefere assim, ‘Cê tem de usar piolhagem!”
Então, o personagem foge um pouco da situação que lhe tirou da zona de conforto e conta sobre outra coisa que lhe tira o sono. Expõe que pode estar pensando em coisas muito ruins, como o suicídio.
Jesus Chorou é uma aula de como mostrar problemas internos de uma personagem de várias formas diferentes, sendo que elas estão interligadas. E isso traz o sentimento e a veracidade, coisas essenciais para um roteiro ser triunfante na hora de contar sua história.
2 – Diário de um Detento
Essa é clássica e fácil de colocar numa lista como esta. Aliás, Diário de um Detento já é filme. Carandiru, de Héctor Babenco, é uma adaptação do livro de Dráusio Varella, mas também está intrinsecamente ligado à música dos Racionais.
Escrita por Mano Brown junto de um detento que sobreviveu ao massacre do Carandiru, Jocenir, a história da música se passa em 3 dias. Um antes do massacre, o massacre em si e o dia seguinte a ele. É um roteiro clássico. Há a apresentação dos vários elementos que constituem a história já no primeiro ato:
[…] Na muralha, em pé, mais um cidadão José Servindo o Estado, um PM bom Passa fome, metido a Charles Bronson Ele sabe o que eu desejo Sabe o que eu penso O dia ‘tá chuvoso o clima ‘tá tenso Vários tentaram fugir, eu também quero Mas de um a cem, a minha chance é zero […] Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá Tanto faz, os dias são iguais Acendo um cigarro, e vejo o dia passar Mato o tempo pra ele não me matar Homem é homem, mulher é mulher Estuprador é diferente, né? Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés E sangra até morrer na rua 10 Cada detento uma mãe, uma crença Cada crime uma sentença Cada sentença um motivo, uma história de lágrima Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo Misture bem essa química Pronto, eis um novo detento
Temos a virada do primeiro para o segundo ato (antes de um grande momento de reflexão sobre o que é ser um presidiário):
[…] Amanheceu com sol, dois de outubro Tudo funcionando, limpeza, jumbo De madrugada eu senti um calafrio Não era do vento, não era do frio Acertos de conta tem quase todo dia Tem outra logo mais, eu sabia Lealdade é o que todo preso tenta Conseguir a paz, de forma violenta Se um salafrário sacanear alguém Leva ponto na cara igual Frankestein Fumaça na janela, tem fogo na cela Fudeu, foi além, se pã, tem refém Na maioria, se deixou envolver Por uns cinco ou seis que não têm nada a perder Dois ladrões considerados passaram a discutir Mas não imaginavam o que estaria por vir
O segundo ato, no caso, é todo o massacre. Para então chegar ao ato final, aqui descrito em 4 versos:
[…] Ratatatá, Fleury e sua gangue Vão nadar numa piscina de sangue Mas quem vai acreditar no meu depoimento? Dia 3 de Outubro, diário de um detento
Se eu fosse professor de roteiro (algo que tenho desejo, confesso), proporia o seguinte exercício aos alunos: “tente escrever três dias de um personagem, vamos ver em quantas páginas você faz isso. Esses dias precisam ter conflitos, ideias, e a premissa precisa estar presente”.
Óbvio, um roteiro não tem a duração de uma música, mas é inegável a habilidade dos Racionais MC’s em falar muito com poucas palavras e tudo ainda fazer sentido.
1 – Tô Ouvindo Alguém Me Chamar
Essa, para mim, é a melhor música do grupo e a maior e melhor canção da música brasileira. Ainda não ouvi nada que tivesse a complexidade narrativa de Tô Ouvindo Alguém Me Chamar. Ela valeria um texto só, e eu ainda devo algum dia esboçar algo assim.
A música conta sobre dois amigos de vida e de crime. O principal é quem narra, o outro é o Guina, um ladrão conhecido, violento, temido. Ela vai e vem no tempo, faz digressões psicológicas no meio de cenas importantíssimas, que contam mais sobre os personagens, reforçam características ou justificam ações. Tudo isso em 8 minutos de música.
O Guina, como falei, é apontado como alguém a se ter medo:
[…] Todo ponta firme, foi professor no crime Também mó sangue frio, não dava boi pra ninguém […] O Guina não tinha dó: Se reagir, Bum!, vira pó […] Eu tava bem de perto e acertei uns seis O Guina foi e deu mais três
Logo depois desse último trecho, Brown entra com a história do Guina, começando da sua infância, passando pela adolescência e chegando na vida adulta. Ele conta de possíveis ações que o fizeram ficar assim. E ainda fala um pouco do destino de todos da favela, de como a vida acaba sendo muito cruel mesmo com quem consegue expressar suas potências:
[…] Lembro que um dia o Guina me falou Que não sabia bem o que era amor Falava quando era criança Uma mistura de ódio, frustração e dor De como era humilhante ir pra escola Usando a roupa dada de esmola De ter um pai inútil, digno de dó Mais um bêbado, filho da puta e só Sempre a mesma merda, todo dia igual Sem feliz aniversário, Páscoa ou Natal Longe dos cadernos, bem depois A primeira mulher e o 22 Prestou vestibular no assalto do busão Numa agência bancária se formou ladrão Não, não se sente mais inferior Aí neguinho, agora eu tenho o meu valor Guina, eu tinha mó admiração, ó Considerava mais do que meu próprio irmão, ó Ele tinha um certo dom pra comandar Tipo, linha de frente em qualquer lugar Tipo, condição de ocupar um cargo bom e tal Talvez em uma multinacional É foda… Pensando bem que desperdício Aqui na área acontece muito disso Inteligência e personalidade Mofando atrás da porra de uma grade A outra digressão é composta de apenas uma linha.
O personagem principal fala muito de sua família, de como saiu de casa e, principalmente, da relação com seu irmão, um cara que não foi para o crime, que conseguiu estudar e formar uma família. Sentimos muita angústia do personagem ao contar essa histórias, até porque a música, no fim, é sobre seu desejo de viver tranquilamente. Por isso, em um momento, ele reflete sobre os crimes que cometeu e sonha com a própria morte:
[…] Agora é tarde, eu já não podia mais Parar com tudo, nem tentar voltar atrás Mas no fundo, mano, eu sabia Que essa porra ia zoar a minha vida um dia Me olhei no espelho e não reconheci Estava enlouquecendo, não podia mais dormir Preciso ir até o fim Será que Deus ainda olha pra mim? Eu sonho toda madrugada Com criança chorando e alguém dando risada Não confiava nem na minha própria sombra Mas segurava a minha onda Sonhei que uma mulher me falou, eu não sei o lugar Que um conhecido meu (quem?) ia me matar Precisava acalmar a adrenalina Precisava parar com a cocaína Não to sentindo meu braço Nem me mexer da cintura pra baixo Ninguém na multidão vem me ajudar? Que sede da porra, eu preciso respirar! Em seguida ele solta essa frase: Cadê meu irmão?
Pode não parecer nada, mas para mim isso é um toque de mestre. Isso atesta todo o discurso. A vida lhe puxou até esses acontecimentos, ele teve poucas opções de escolha. E, mesmo nas piores turbulências, o seu desejo de sair desse mundo se resume a essa pergunta.
Cadê meu irmão?
Já chorei com essa música algumas vezes. Hoje em dia, sempre que preciso lembrar como uma história deve ser escrita, faço duas coisas: vou ver filmes antigos e/ou escuto Tô Ouvindo Alguém Me Chamar.
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Além de entrar em questões de vestibulares pelo país afora, os Racionais MC’s deveriam entrar nos currículos de cinema. Há outros exemplos dentro da discografia dos caras. Há outros exemplos mesmo dentro dessas músicas que apresentei. Trechos e mais trechos que podem contribuir com toda teoria de roteiro cinematográfico que existe. Há filmes clássicos, filmes modernos, planos sequências, flashbacks, sonhos, fantasia… cinema!
Dois mil e vinte e um foi um ano complicado, principalmente de conteúdo. Passamos um ano inteiro com vários adiamentos de diversas formas, as indústrias todas pararam para repensar ou retrabalhar obras pós-Covid. O que pensar? Inserir a pandemia na narrativa das obras audiovisuais ou não? Tivemos exemplos de ambos, mas o resultado é difícil de descrever, o que resultou em um 2021 muito confuso.
Nesse contexto gostaria de comentar um pouco sobre as experiencias audiovisuais que se sobressaíram nessa confusão. Por algum motivo, a safra de cinema foi excelente, principalmente nos melodramas: Obras como Ataque dos Cães de Jane Campion e Madres Paralelas de Pedro Almodovar chegaram em um destaque incrível, mas no quesito cinema, pra mim, a melhor obra de 2021 foi:
O Último Duelo, de Ridley Scott
Ridley Scott trabalha muito. Um homem de 84 anos que filma duas megaproduções juntas nessa energia é admirável. Ele filmou The Last Duel e, na sequência, The House of Gucci. Ainda não tive o prazer de ver o segundo, mas The Last Duel é uma das suas melhores obras. Imagine Gladiador, mas com uma atenção melhor ao roteiro e na direção. É complicado discutir mais sobre o filme sem entrar nos tais “spoilers”, mas The Last Duel é a obra máxima de Ridley Scott: conseguimos ver todas as interações de uma direção madura no decorrer do filme, que ainda atiça atuações incríveis de atores que muita gente imagina que não tem mais nada a oferecer, como Matt Damon e Ben Affleck. Infelizmente vai passar em branco nas premiações pois flopou nas bilheterias e foi eclipsado por House of Gucci, mas se você tiver a oportunidade de assistir, não perca tempo.
Pensando em obras eclipsadas, penso agora no meu curta favorito do ano:
Magnético, Cassemiro Vitorino e Ilka Goldschmidt
O documentário de Cassemiro Vitorino e Ilka Goldschmidt, quando começa, passa a impressão de ser um mockumentary (documentário falso), sobre uma cidade que sofre de incidentes de agroglifos (marcações nas fazendas, semelhantes ao que rolava no filme Sinais), em cidades do interior de Santa Catarina. Quando você percebe que os relatos são reais e que as pessoas daquelas pequenas cidades estão compartilhando seu novo folclore, o filme cresce imensamente. Pessoas simples compartilhando histórias e a direção sabendo exatamente a linha do que é sério e do que seria considerado como galhofa, caso fosse uma mão mais pesada da direção, faz para mim um dos melhores documentários do ano. Pensar e viabilizar esse storytelling sem pesar no tema de ufologia, que é alvo fácil de chacota em qualquer contexto, não é para qualquer um.
Ainda pensando no contexto espacial, ao meu ver, um dos melhores jogos desse ano foi:
Metroid Dread
Dread, que por algum motivo bizarro nos faz pensar primeiro no corte de cabelo, significa medo ou temor. Metroid é uma franquia que trabalha muito a solidão: em quase todas as instâncias, a protagonista (Samus Aran) é jogada em um planeta desolado, somente com inimigos focados em barrar seu progresso. Nessa jornada solitária, Metroid Dread é o 5º jogo da série e encerra sua cronologia de forma magistral, onde o principal destaque são os EMMIs, que são seres robóticos que te perseguem e te matam em um hit só, diretamente inspirados no filme Alien, onde o xenomorfo é uma força imparável; além disso, o game tem uma das melhores batalhas de chefes do ano.
Impossível não citar também, agora em questão de série:
Chucky (Don Mancini)
O boneco não para! Em sua obsessão de destruir a maior quantidade de vidas possível, agora o vemos atuando em um pequeno subúrbio americano: sua cidade natal. Retornando depois de um arco narrativo de 7 filmes, Chucky agora chega em uma nova linguagem, a de tele-série. Em seus últimos capítulos, as produções cinematográficas se encaminhavam para uma finalização épica que acabou deixando muita coisa em aberto. Transformada em uma narrativa serializada, entretanto, houve espaço para um desenvolvimento maior e mais intrigante do boneco assassino mais famoso do mundo, além da inclusão de novos personagens que só enriqueceram o lore da série, isso sem deixar de mencionar especificamente os novos protagonistas, adolescentes LGBTQIA+, o que espelha uma persona do seu criador, Don Mancini, que vê na identificação algo muito importante para o entretenimento atual. Trazendo personagens queridos de volta (se tem algo que vende bem agora é essa nostalgia), mas dividindo bem o espaço com os novos elementos, Chucky foi uma grata surpresa, principalmente por vir de um canal que tem a fama de exibir produções de baixa qualidade.
A PLURALIDADE DE 2021
Diversas obras poderiam ser mencionadas nessa lista, como a experiência virtual KID A MNSEIA do Radiohead, que comemora os 20 anos de seus álbuns icônicos em uma exploração audiovisual única dentro dos videogames. Também o esforço de Taylor Swift de regravar e relançar seus álbuns roubados, principalmente o álbum Red , repensando a narrativa do álbum e seus singles e lançando o curta água-com-açúcar de All Too Well.
No cinema, o fantástico não para: obras como Titane (Julia Ducournau) e The Night House (David Bruckner) refletem a dor e a confusão do que foi 2021 para a grande maioria das pessoas.
Se 2022 for tão confuso quanto, que seja nessa qualidade.
Esta seleção surge em meio às safras de 2020 e 2021 (dois anos que para mim foram um único), com obras marcantes, que circularam pelos festivais online durante a pandemia e atingiram públicos bem mais amplos do que as salas exibidoras dos festivais – um momento ímpar na difusão do curta-metragem brasileiro, e que espero ter sido capaz de proporcionar trocas e questionamentos que gerem frutos interessantes no decorrer desta década.
Temos aqui vinte modos distintos de se compreender e conhecer o Brasil contemporâneo e suas tensões, a partir dos instigantes discursos, estéticas e éticas trazidos pelxs novxs sujeitxs que têm reinventado o audiovisual brasileiro em anos recentes. Nesse conjunto, o curta-metragem traça uma radiografia do momento presente, ao mesmo tempo que aponta possíveis caminhos a serem trilhados, entre necessários fins de mundos (acontecendo e por acontecer) e urgentes fundações de outros, desta vez pautados por uma constelação de imagens mais focadas em libertar do que em reiterar os sempre mesmos traumas e silenciamentos coloniais que ainda abundam no “sagrado” cânone do cinema brasileiro.
República (Grace Passô, 2020)
A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro, 2020)
A cambonagem e o incêndio inevitável (Castiel Vitorino Brasileiro e Roger Ghil, 2021)
Perifericu (Vita Pereira, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Nay Mendl, 2020)
Uma paciência selvagem me trouxe até aqui (Érica Sarmet, 2021)
Inabitável (Enock Carvalho e Matheus Farias, 2020)
Inabitáveis (Anderson Bardot, 2020)
Egum (Yuri Costa, 2020)
Sem título # 7 – Rara (Carlos Adriano, 2021)
Nascente (Safira Moreira, 2020)
Morde e Assopra (Stanley Albino, 2021)
Usina – Desejo Contra a Indústria do Medo (Amanda Seraphico, Clarissa Ribeiro e Lorran Dias, 2021)
Per Capita (Lia Letícia, 2021)
Ser feliz no vão (Lucas H. Rossi dos Santos, 2020)
Abjetas 288 (Júlia da Costa e Renata Mourão, 2020)
Puxadinho (Fredone, 2020)
Menarca (Lillah Halla, 2020)
Sideral (Carlos Segundo, 2021)
4 Bilhões de Infinitos (Marco Antônio Pereira, 2020)
A gente acaba aqui (Everlane Moraes, 2021)
BONUS TRACKS
Dois longa-metragens fundamentais:
Nuhu yãgmu yõg hãm: essa terra é nossa! (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero, 2020)
Yãmĩyhex, as mulheres-espírito (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, 2019)
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