Querida Natara,
Escrevo este post ainda com o gosto do teu filme nos olhos: tremor nas pálpebras e resquícios de lágrima. É um sentimento doce.
Já te agradeci pessoalmente por escolher contar uma história de amor nestes dias tão feios, mas talvez devesse lhe dizer algo mais… ou talvez não. Talvez o filme, como um corpo dotado de sua própria alma, é o único que tenha algo realmente válido a ser dito. Às vezes penso que a crítica não tem nada a colaborar com determinada obra, mas sou um aquariano teimoso.
Quando tua voz, quente, empresta ao filme mais uma camada de memória, a tua memória, inventada ou não, meu peito estufa apavorado. As cartas de Lúcia e Oswaldo, por si só, já tinham feito seu papel: eu já estava desconcertado, gravemente sem jeito, incomodado por olhar tão intimamente para a alma impressa naquelas imagens. Sua voz (e o misterioso amor a quem ela se direciona) poderia soar como um palimpsesto, mas escapa da armadilha e me surpreende: revela-se cúmplice daquela história de amor.
Essa voz, tua e do próprio filme, você chamou de pacto – com Lúcia e suas cartas de amor, com as imagens e as memórias que elas evocam em si mesmas.
Imagem e memória habitando a tela em coexistência. Poesia.
Gosto de como o filme foge do saudosismo e prefere a saudade. Vibro quando corta da senhora saudosa de romantismo para a imagem dos carteiros, devidamente uniformizados sob um sol legitimamente carioca. Trabalhar cansa.
Fiquei com a ideia fixa de que aquelas cartas, celulose e tinta, eram o próprio cinema (tela e movimento). Letras são corpos que bailaram no papel e deixaram, ali, um rastro, uma imagem. O que esses corpos-letras traçaram em sua caligrafia dançada, é rastro, espírito – memória?
Tenho para mim que teu filme, que quer contar uma história de amor, encontrada uma feira tal qual uma antiguidade, constrói também sua declaração apaixonada: pelas cidades e sua arquitetura, pelas pessoas e suas histórias, saudades, destinos; pelas próprias imagens que carregam (e que carregam, em si, um mundo de significados possíveis). Carta que vira filme, que volta a ser carta, missiva de amor, monumento.
Não tem sido fácil acordar brasileiro e sei que, para você, o caminho nunca foi simples ou descomplicado. Decidir seguir o rastro de uma história de amor e transformar essa busca em filme é, como disse um personagem do teu filme, um ato de fé. Outra vez: obrigado.
Que outras histórias de amor te achem e, como os ventos de agosto, baguncem teus cabelos – e tuas ideias.
Espero que esta te encontre e que estejas bem.
Pesquisador, roteirista e crítico de cinema. Dirigiu os curtas documentais "Nós" (2016) e "Minhas Mães" (2018). Colaborou como co-curador do Festival de Cinema de Vitória (2016 e 2017) É um dos idealizadores dos podcasts "Reimagem" e "Terrorias da Conspiração" e realizador das webseries "S[C]INÉDOQUE" e a ainda inédita "Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Capixaba" (em produção).