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Interview: Adrian Țofei

Romanian actor and director, Adrian Țofei wrote, directed and starred in the controversial horror foundfootage “Be my cat: A film for Anne”, whose plot revolves around a filmmaker that wants to direct a film starring Anne Hathaway that, after a long preparation, will perform role-playing simulations with local substitutes of the Hollywood star, in order to show her his direction abilities.

We, from Reimagem, had a good time with Țofei, talking about cinema, his career and future projects.

Be My Cat: A Film for Anne

RR: Metalanguage, inside arts in general, is a way to explore possibilities of renewal, updating or reconstruction of its own language. In your creative process, what is the metalanguage’s importance?

AȚ: Great question – do you know that I never really had a deep discussion with myself to find the roots of my love for meta? I think it has to do with educating audiences in an indirect way, without being preachy. I always loved to expose my creative process, to teach and inspire people about the art of filmmaking and acting, to make them engaged in a way beyond them being just audiences. I think I see them as potential future filmmakers or actors. Filmmaking or acting is not thought in schools or high schools as a compulsory subject like math or physics. So, when someone has talent in filmmaking or acting – how can they become aware of that talent? Movies show you the final product, they don’t show you the creative process. Except for meta films. They can show the process of their own making and on top of entertaining audiences, can also inspire them to venture into a creative path in life and get in touch with their potential talents.

RR: If we sum up the synopsis of Be My Cat: A Film for Anne, your first feature film, we could say that it is a pseudo-documentary that aims to propose the making of another film, starring Anne Hathaway. It is a film that exists and is registered in those images, but which reflects the desire to make another film that only exists in the protagonist’s imagination. How do movies, generally speaking, influence your way of seeing, thinking and producing cinema?

AȚ: Honestly there are so so so many ways that movies and acting performances influenced me that I literally can’t synthesize this in a couple of phrases. I’d have to write a novel, haha. I used to have a list of top 250 films that impressed and influenced me the most on my website, and was planning to detail the way every film influenced me, but when I realised that work would take forever, I deleted everything and just kept 100 films in the list without any explanation, haha. I went though in details back in 2012 in my Found Footage Manifesto.

RR: Since the release of Be My Cat, has Anne Hathaway given some kind of response to your movie?

AȚ: No, no sign from Anne Hathaway yet. My guess is that she at least heard about the movie, or maybe even watched the trailer, but that’s just a guess. Who knows. I used to dream that she’d be asked about Be My Cat by some late night show host, but that never happened. And herself saying something by her own initiative – I don’t see that happening anytime soon. I am sure at some point I’ll learn one way or another her opinion about the film, but that might not be public – just learning via word of mouth from industry people.

RR: In your “Found Footage Manifesto”, you also address the issue of realism, but in a more self-conscious way due to the explicit presence of the camera. In your opinion, what is the relationship between found footage and the idea of realism in cinema?

: Found footage and the Dogme 95 movement came as close as possible to the ultimate cinematic realism in terms or fictional narrative. I’d say found footage even more than Dogme 95 because in Dogme 95 you can still ask yourself: how come I see everything I see? obviously someone filmed everything and that someone is not part of the reality depicted in the film, therefore what I see is staged, is not real. Found footage removes even this last element that reminds audiences that what they see is not real by justifying the existence of the camera and the person filming within the reality depicted in the film. 

We Put the World to Sleep

RR: What can you already tell us about your next movie?

: We shot We Put the World to Sleep over a period of 5 years in over 12 cities, villages and remote locations in Romania, Turkey and Ukraine. My filmmaking method usually consists of working for months (years in this case) on an alternative psychological reality for the actors including myself, partially living in character, so that when we start improvising, I mainly need to record the unfolding events and to make sure the improvisation goes in the right direction. There is usually no detailed script, only plot points. I shoot tens of hours of footage guerrilla style (about 200 hours for We Put the World to Sleep), and then I watch the footage like a documentary filmmaker would and I create the details of the story in post-production during the editing process. But I think this time I might have went too far. If Be My Cat was 50% planned and 50% improvised, We Put the World to Sleep was only 25% planned and 75% improvised. I pushed to extremes the limits of improvisational filmmaking. Sometimes it worked, other times it didn’t. One thing is sure though, it’s going to be damn crazy!

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PORTUGUESE VERSION HERE

(Translated by Letícia Santos de Oliveira)

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Entrevista: Adrian Țofei

[ENGLISH VERSION HERE]

Ator e diretor, o romeno Adrian Țofei roteirizou, dirigiu e protagonizou o polêmico foundfootage de horror Be my cat: A film for Anne, cujo enredo gira em torno de um cineasta que deseja realizar um filme estrelado por Anne Hathaway e que, para tanto, realizará simulações de encenação com as atrizes locais no lugar da estrela hollywoodiana, a fim de mostrar a ela suas capacidades enquanto diretor.

Țofei conversou com a Reimagem sobre cinema, sua carreira e sobre futuros projetos.*

Be My Cat: A Film for Anne

RR: A metalinguagem, nas artes de um modo geral, é uma maneira de se debruçar sobre si mesma para explorar possibilidades de renovação, atualização ou reconstrução de sua própria linguagem. O que significa, pra você, esse gesto de pensar o cinema como uma linguagem que, depois de 125 anos, ainda é capaz de se renovar e se reconfigurar?

AȚ: Ótima pergunta – você sabe que eu nunca tive uma discussão profunda comigo mesmo para encontrar as raízes do meu amor por metalinguagem? Acho que tem a ver com educar o público de forma indireta, sem ser tedioso. Sempre adorei expor meu processo criativo, ensinar e inspirar as pessoas sobre a arte de fazer cinema e atuar, para torná-las engajadas de uma maneira que vai além de categorizá-las apenas como público. Acho que os vejo como potenciais futuros cineastas e atores. A produção de filmes, ou a atuação, não é considerada uma disciplina obrigatória nas escolas ou colégios, como matemática ou física. Então, quando alguém tem talento para fazer filmes ou atuar, como podem tomar consciência desse talento? Os filmes mostram o produto final, não mostram o processo criativo. Exceto para meta filmes, que podem mostrar o processo de sua própria feitura e, além de entreter o público, também podem inspirá-los a se aventurar em um caminho criativo na vida e entrar em contato com seus potenciais talentos.

RR: Se resumíssemos a sinopse de Be My Cat: A Film for Anne, seu primeiro longa-metragem, poderíamos dizer que se trata de um falso documentário cujo objetivo principal é propor a realização de um outro filme, a ser estrelado pela Anne Hathaway. É um filme que existe e está registrado, materializado naquelas imagens, mas que espelha o desejo de realizar um outro filme, que só existe no imaginário do protagonista. Há uma certa sofisticação nessa construção narrativa que nos leva a pensar nessa obsessão não só pela atriz, no caso do seu filme, mas também pelo cinema como parte de um imaginário coletivo. Como os filmes, falando de um modo global e generalizado, influenciam o seu modo de ver, pensar e produzir cinema?

AȚ: Honestamente, existem tantas maneiras pelas quais filmes e atuações me influenciaram que eu literalmente não consigo sintetizar isso em algumas frases. Eu teria que escrever um romance (risos). Costumava ter uma lista dos 250 filmes que mais me impressionaram e influenciaram no meu site, e planejava detalhar como cada filme me influenciava, mas quando percebi que o trabalho demoraria uma eternidade, apaguei tudo e apenas mantive 100 filmes na lista sem nenhuma explicação. Me aprofundo melhor em detalhes no meu Manifesto Found Footage**, de 2012.

RR: Afinal, em algum momento desde o lançamento de Be My Cat, a Anne Hathaway deu algum tipo de resposta ao teu filme (risos)?

AȚ: Não, nenhum sinal de Anne Hathaway ainda. Meu palpite é que ela deve ao menos ter ouvido falar do filme, ou até assistido ao trailer. Quem sabe? Eu costumava sonhar que ela seria questionada sobre Be My Cat por algum apresentador de programa do horário nobre, mas isso nunca aconteceu. Ou ela mesma dizendo algo por iniciativa própria – não vejo isso acontecendo tão cedo. Tenho certeza de que em algum momento vou saber, de uma forma ou de outra, a opinião dela sobre o filme, mas isso pode não ser público – apenas através do boca a boca do pessoal da indústria.

RR: Você, em seu “Manifesto Found Footage”, também aborda a questão do realismo, mas de uma maneira mais autoconsciente pela presença proposital e explícita da câmera. Na sua opinião, qual é a relação entre o found footage e a ideia de realismo no cinema?

: As filmagens encontradas e o movimento Dogma 95 chegaram o mais perto possível do realismo cinematográfico, em termos de narrativa ficcional. Eu diria que encontrou imagens ainda além do Dogma 95, porque ali ainda podemos nos perguntar: como é que eu vejo tudo o que vejo? Obviamente quem filmou não faz parte da realidade retratada no filme, pois o que eu vejo é encenado, não é real. Os found footages removem até mesmo este último elemento que lembra o público de que o que vê não é real, justificando a existência da câmera e da pessoa filmando dentro da realidade do filme.

We Put the World to Sleep

RR: O que você já pode nos contar sobre o próximo projeto?

: Filmamos We Put the World to Sleep*** durante um período de 5 anos, em mais de 12 cidades, vilas e locais remotos na Romênia, Turquia e Ucrânia. Meu método de fazer filmes geralmente consiste em trabalhar por meses (anos neste caso) em uma realidade psicológica alternativa para os atores, incluindo a mim mesmo, vivendo parcialmente no personagem, de modo que quando improvisação começa, minha responsabilidade principal seja registrar os acontecimentos que se desenrolam, e ter a certeza de que a improvisação vai na direção certa. Normalmente não há um roteiro detalhado, apenas pontos de virada. Eu tiro dezenas de horas de filmagens no estilo guerrilha (cerca de 200 horas para We Put the World to Sleep), e então eu assisto as filmagens como um documentarista faria, e então crio os detalhes da história na pós-produção, durante o processo de edição. Mas acho que desta vez posso ter ido longe demais. Se Be My Cat foi 50% planejado e 50% improvisado, We Put the World to Sleep foi apenas 25% planejado. Eu levei ao extremo os limites da produção cinematográfica improvisada. Por vezes funcionou, por vezes não. Uma coisa é certa: vai ser uma loucura!

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* Nota do editor: Apesar das possíveis discordâncias, nosso interesse será sempre publicar todas as respostas dos entrevistados, mas aqui, nesta entrevista, precisamos retirar uma questão por motivos de que algo deve ter escapado no gesto da comunicação entre nós e Adrian, tendo em vista nossas diferenças tanto de idioma quanto das realidades cinematográficas e culturais dentro das quais se vive e se produz, ele lá e nós aqui (tratava-se de uma questão um tanto quanto política relacionada ao cinema brasileiro de terror, que no fim das contas nos pareceu incompreendida e, portanto, não respondida).

**https://adriantofei.com/writings/the-found-footage-manifesto/

***https://weputtheworldtosleep.com/

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Seção Painel Vol. 01 - Nº 02 - 2020

Us, final fight scene: a semiotic analysis of sound design

Final fight scene: Adelaide is trapped with her doppelgänger – Red – in the hideous laboratory where all the other copies were hiding and living their bizarre lives. Red holds the protagonist in handcuffs and here we have the final confrontation, which is intertwined with childhood memories of Adelaide, while dancing Ballet, and of her evil version following her movements in an animalistic and desperate way.

The fight occurs at an abandoned laboratory, in a kind of imitation of what would be a classroom; on the blackboard we can see a drawing of what would be the only reference from the outside that Red has. In the background, we hear a song that refers to dance movements, at the same time that Adelaide fights for her life – in a desperate way – while her clone has light movements, subtly escaping her attacks. It gives us a sensation that they are making the dance of the dead.

Then, the music that takes place in the background is composed of pizzicatos from a  violin and bass notes from cellos, in a way that reminds us of a string orchestra. In addition to this reference to Ballet, one thing intrigues us here: while the figure who should have grotesque movements is subtle and silent, Adelaide – in her desperation for life – brings us a behavior very consistent with our antagonist, grunting and acting like an animal fleeing from a predator.

The confrontation’s sound design consists of dragged chairs, chains and blows, these grunts refer to the fact that something is out of context in this fight, and that the sounds emitted by Adelaide are not natural.

Red finally hits Adelaide with scissors and, then, disappears; the background music becomes heavier. Adelaide continues to walk through the laboratory until she enters a dormitory. At this point, the music becomes just tense, almost like silent noises. The sound design of Adelaide’s memories are now more evident, just like the blows that Adelaide throws in the air. The music here is present only when the childhood Adelaide appears dancing, until the shadow of her evil copy appears and we hear tense violin effects again. At this moment, Red’s final attack takes place, while Adelaide turns quickly and hits her in the chest, ending the confrontation and screaming like an animal. The music stops, we hear the scissors falling on the floor just like Adelaide’s doppelgänger. 

The woman in red sits down, and here we have the sound of blood starting to come out of her mouth, and a mocking whistle that, for some reason – that we will only discover in the next scene, makes Adelaide angry, what makes her finish killing the enemy by hanging her with the handcuffs’ chains that are holding her arms. Adelaide is screaming like an animal again, we hear the sound of breaking  bones… Then she starts some kind of winning-evil laugh, stands up and goes after her kids that are hiding somewhere at that weird place.

What draws our attention in this film are the mannerisms of the protagonists’ doppelgängers, that are extremely striking and measured, with animalistic and cartoonish grunts and noises. In the analyzed scene, the antagonist completely loses these characteristics, and the one who assumes it is the protagonist. The perception that something does not fit is not only due to the characters’ body expression (which could be explained by the tension of the fight that is happening), but by the sounds emitted by them, which are interspersed with the memories of a child who grew up in the middle of ballet performances – and then a song that refers to that context – and noises, screams and grunts that refer to the mannerisms of the antagonists, assumed here by the alleged victim of the confrontation.

The doubt about this hunt begins to be exposed through this sound passage, where the characters change positions. Then, the real connection between antagonist and protagonist is revealed through the explanation of what happens in Adelaide’s childhood, and what had, in fact, caused the traumas that we see at the beginning of the narrative.

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Seção Painel Vol. 01 - Nº 02 - 2020

ANÁLISE FÍLMICA: Narrativa sonora na cena final do filme “Nós”, de Jordan Peele

[Este texto pode conter spoilers do filme Nós, de Jordan Peele]

Cena final, plot, desfecho da trama: Adelaide [protagonista] está presa com Red, sua cópia, no laboratório secreto onde todas os outros clones foram criados e eram mantidos, a viver o bizarro reflexo da vida da superfície. A versão em vermelho, maligna e sedenta por vingança, agarra a protagonista e prende-a em algemas: está posto o confronto decisivo da trama, que é alternado com memórias da infância de Adelaide em suas apresentações de balé, e sua cópia a seguir seus passos no subsolo da sociedade, de maneira animalesca e primitiva, como uma força que ia contra sua vontade e a obrigava a se mover de acordo com o que a superfície ditava. A cópia é o contraste do que estava posto como normal em comportamentos cotidianos da vida superficial.

O confronto físico entre as personagens ocorre numa espécie de sala de aula localizada no laboratório, e notamos na lousa um desenho que remete à única referência da superfície que a cópia de Adelaide tinha. No fundo, ouve-se uma música que se refere a movimentos de dança, o que contrasta com a luta desesperada de Adelaide por sua vida em meio à briga, enquanto o clone possui movimentos sutis, quase que leves, que seguem a canção enquanto escapa dos golpes da protagonista. Este contraste traz a sensação de que as personagens estão em um transe ritual, uma dança da morte, onde quem perde não se move mais, não dança. A seguir, a música toma um caráter diferente, com pizzicatos de violino e notas graves de violoncelo, a construir uma espécie de orquestra de cordas. Em adição a referência do balé, uma coisa nos chama a atenção aqui: enquanto a figura que deveria ser a antítese da normalidade – a cópia bizarra da humana da superfície – possui movimentos leves e calculados, a protagonista, que nos é apresentada como vítima desde o início da trama, nos traz um comportamento bastante contrastante com a antagonista, grunhindo e com movimentos impulsivos, bestiais e extremamente violentos.

O sound design possui os efeitos sonoros esperados para a cena in loco, com cadeiras sendo arrastadas, correntes e golpes, mas aqui os grunhidos emitidos pela protagonista nos fazem perceber que algo está fora de contexto, e que suas reações sonoras não são naturais. Quando Red atinge Adelaide com tesouras e foge, a ambiência sonora do fundo e a trilha sonora adquirem tensões mais evidentes. A protagonista continua a caminhar pelas instalações abandonadas no subsolo e se depara com um dormitório.

Nessa altura, a música de outrora converte-se em tensões sonoras, quase como ruídos abafados. O desenho de som das memórias de uma Adelaide ainda pequena se torna mais evidente, assim como os golpes que joga no ar. Aqui a música permanece apenas nos cortes da infância, onde Adelaide aparece a dançar, até que a sombra da antagonista surge e os violinos começam a soar tensões novamente. Neste momento, o golpe final de Red se dá, ao passo em que Adelaide prontamente a atinge no peito, finalizando a batalha-dança, vencendo ao sair com vida do confronto.

A trilha sonora para, ouvimos apenas as tesouras a cair no chão, assim como a antagonista. A mulher em vermelho cai sentada, ouvimos o sangue que começa a jorrar de sua boca, um pequeno assobio que – só entenderemos na próxima cena – atiça ainda mais a fúria de Adelaide, que acaba por enforcar sua cópia enquanto grita e grunhe, e ouvimos os ossos quebrando. Então a protagonista nos lança uma inesperada gargalhada que soa quase que maléfica, em comemoração a sua vitória; ela se levanta e vai a procura de seus filhos que estão escondidos em algum ponto daquele lugar estranho.

O que nos chama atenção neste filme são os maneirismos atribuídos aos antagonistas, cópias dos protagonistas da trama, que são bastante peculiares, animalescos e bizarros, assim como as figuras que os emitem. Na cena em questão, a antagonista perde completamente esses maneirismos, ao passo que quem os assume é a suposta vítima, protagonista.

A percepção de que algo não se encaixa na expressão corporal das personagens durante a briga nos faz entender que uma assume o lugar da outra (o que poderia ser explicado pela tensão na luta que está posta, e no descontrole causado por tal situação), mas quando ouvimos – intercalado com as cenas de dança da criança que cresceu em meio a apresentações de balé – uma música que introduz o contexto para o receptor da mensagem, e ruídos, gritos, grunhidos que nos remetem aos trejeitos da antagonista que são assumidos pela protagonista no confronto, nos trás um desfecho completamente inesperado.

A dúvida sobre essa caçada é trazida e revelada através das passagens sonoras empregadas na cena. É a narrativa sonora que entrega a mudança de papel entre as personagens e então nos revela como, quando e onde se dá a conexão entre antagonista e protagonista, bem como a verdadeira identidade de ambas, além da causa originária dos conflitos da trama.

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Espaço prolongado da experiência cinematográfica

A relação entre filme e espectador

Eu abro o sentimento de tal forma que o mundo pode penetrar meus sentidos, meus músculos, minha consciência. A temporalidade da paisagem transforma minha temporalidade… O espaço do ar livre se torna meu espaço… Eu me sinto inspirado, “inspirado” como se fosse do vento e das árvores… As fronteiras entre o interior e o exterior tornam-se porosas…

Jennifer Barker

No dia 8 de setembro de 2018 uma notícia de jornal contou sobre uma mulher que passou mal durante uma sessão de cinema. Na noite do dia anterior, uma mulher de cerca de 50 anos, cujo nome não foi divulgado, passou mal no cinema do Shopping Boulevard, em Vila Velha (ES), quando assistia ao filme de terror A freira (The nun, 2018), de Corin Hardy, na sessão de 20 horas de uma sexta-feira.

A notícia explica que a mulher vomitou na sala de cinema já na metade do filme e foi socorrida pela equipe de saúde do shopping, sendo levada ao hospital. A sessão foi interrompida, o local passou por uma limpeza e o filme continuou para os espectadores que permaneceram na sala. Pessoas que estavam no local contaram ao jornal que pensaram que a mulher havia sofrido um infarto por causa do filme. Já a assessoria do shopping afirmou que a mulher relatou que estava sentindo um mal-estar no estômago desde o almoço.

Esse episódio, ilustra bem como a experiência de assistir a um filme pode mexer com o corpo do espectador de maneira intensa. Como o corpo do espectador se relaciona com o filme. Muitos têm histórias de cenas em que choraram, se assustaram, que sentiram frio, calor, tontura. Isso prova como assistimos ao filme não apenas com os olhos, mas com o corpo todo, sendo difícil desassociá-lo.

Se a mulher que vomitou assistindo a A freira já estava se sentindo mal antes da sessão ou não, o que mais desperta interesse é que o ponto máximo e final do mal estar, o ato de vomitar e expulsar o que a incomodava por dentro, foi ativado durante uma sessão de cinema.

Esse envolvimento entre espectador e filme acontece atravessa todos os órgãos do corpo, e reflete muitas vezes sobre nossa expressão corporal. Juntamo-nos ao filme, entramos em consonância com ele muito por movimentos de câmera que emulam movimentos corporais do espectador.

Jennifer Barker vê o cinema como uma experiência íntima, que atravessa todos os órgãos do corpo do espectador e do filme – visto que ela admite o filme como também possuidor de um corpo. Há aqui uma relação muscular mútua entre dois corpos, que mesmo diferentes, podem experimentar movimentos semelhantes; a teórica afirma que o espectador consegue habitar um espaço intercambiável entre o próprio corpo e o corpo do filme. Uma experiência possível não apenas pelas emoções, mas também através de movimento e fisicalidade, como defende Barker em The Tactile Eye – Touch and the Cinematic Experience.

Mesmo que nossos corpos tenham sido construídos de maneira diferente que o corpo do filme, podemos sentir em nossos músculos seus movimentos porque de alguma maneira já realizamos movimentos semelhantes. Assistindo ao filme, podemos sentir nossos músculos, ombros, por exemplo. Em filmes de ação, podemos acelerar o ritmo da respiração, em busca de fôlego, para acompanhar os movimentos expressos na tela – mesmo que ainda estejamos sentados.

A musculatura da experiência cinematográfica é também definida por funções de expressão e percepção, algo pelo qual experimentamos o mundo. Se, por um lado, o corpo do filme reflete estilos do comportamento corporal humano, por outro, o espectador também emula o comportamento muscular do filme.

A empatia que sentimos com o corpo do filme nos permite habitar esses dois lugares ao mesmo tempo, ainda que não deixemos nossos corpos em momento algum.Como espectadores, nossa posição nunca é passiva porque podemos ocasionalmente sentir que estamos realizando aqueles movimentos, podendo, inclusive, sentir também suas possíveis consequências.Nós nos comportamos com ajuda de pernas, braços, músculos, enquanto os filmes tem movimentos de câmera, normas de edição. Nós e os filmes nos comportamos de acordo com as possibilidades que nossos corpos nos oferecem, em uma experiência de aplicação de forças.

Barker divide essa perspectiva com Vivian Sobchack, uma vez que ambas defendem que a visão não é realizada de maneira isolada, mas sim relacionada aos outros sentidos. Para ambas as pesquisadoras, assistir a um filme implica em uma experiência de encontro de corpos e “a imagem em movimento torna-se sensorial e sensivelmente manifestada como a expressão da experiência pela experiência”, diz Sobchack em seu livro The Address of the Eye – A Phenomenology of Film Experience.

A visão é um exercício que se encontra em uma dupla manifestação, pelo espectador e pelo filme também. Sobchack cita a fotografia como exemplo de algo que não possui comportamento, apenas espera estática que a experimentamos. O corpo do filme, no entanto, constitui seu próprio ser e seus próprios modos de comportamento. O filme age e desenvolve uma dimensão mais profunda e tridimensional no plano da tela.

Sobchack chama o que se vê na tela de “percepção expressa de um anônimo”, uma vez que percebemos uma projeção expressiva outra – ao mesmo tempo em que estimulamos nossa experiência de percepção. Esse jogo de percepção e expressão coloca filme e espectador em uma relação praticamente horizontal, onde ambos exercem papéis importantes em uma comunicação que envolve um processo de “ser-no-mundo e na reversibilidade viva da percepção e expressão exercida pelo corpo-vivido”, defende. O filme e seu olhar “anônimo” conjuga seu sentido a partir de sua manifestação em si.

A percepção anônima do filme por vezes aplica sobre a imagem o olhar próximo de investigação que a desfigura como objeto e a revela como um percurso de formas e cores intrincadas e desorientadoras. Aqui a percepção muda de nuance e parece ansiar um contato mais íntimo com a imagem. As imagens muito próximas aparecem sem um significado imediato e o espectador começa a caminhar o olho sobre ela, investigando e descobrindo, entrando em um labirinto de formas e sensações. Os planos, os movimentos de câmera, a textura sonora seriam atalhos para entender esse “modo selvagem e penetrante” do qual discorre Sobchack. Assistimos ao filme plano por plano, experienciando cada imagem individualmente, caminhando pelos corredores do labirinto de uma pedagogia cinemática que se comunica e nos envolve por vias pré-reflexivas.

Os modos de visão dos dois corpos acabam resultando no que Sobchack e Shaviro se preocupam, que seria a “identificação carnal”, denotando o movimento corpóreo entre filme e espectador que se apresentam antes de uma interpretação racional do filme. Uma vez que o espectador é afetado pelas imagens, desperta nele, por exemplo, arquivos somáticos que lhe permite imaginar como poderiam ser sentidas as sensações que as imagens emanam.

O filme, no entanto, pode conceber seus próprios arquivos somático, baseado em repetições narrativas e estéticas. A imagem de um objeto, pessoa ou paisagem pode adquirir ao longo do filme significados completamento díspares, mesmo mostrados nos mesmos ângulos. Na verdade, é essa repetição que colabora com a mudança de perspectiva possível sobre eles. O que no início do filme estimula sensações prazerosas, no seu fim pode incitar seu oposto máximo.

Sobchack defende que o cinema proporciona uma extensão da existência encarnada do espectador, que na experiência cinematográfica, mais que comunicar pelas histórias, diálogos, os significados dos filmes são experimentados no corpo. A percepção de mundo se torna mútua. O espectador começa a entender cortes como vírgulas ou pontos finais de cenas, uma cor como uma sensação, um ruído como sentimento, ele pode fluir no movimento da câmera. As linguagens de ambas as visões estão afinadas uma a outra de modo que o espaço intercambiável parece tender a diminuir. O filme passa a se comportar como uma presença no mundo que vai tomando forma com o movimento de sua projeção, como “uma presença que pode então ser dita como tendo um passado, um presente e um futuro”, ela diz. O filme seria um sujeito, de fato, com configurações intencionais e capacidade de expansão do plano liso de sua tela. Há aqui uma consciência intencional e relacional em movimento.

O estudo fenomenológico de Sobchack destaca o caráter interativo do modo de assistir a um filme, em um exemplo de envolvimento do eu com o mundo, da abertura das percepções do eu para com o mundo. O que temos é uma relação de visões com consciência, porque além de ver o mundo, ambos os corpos veem o mundo com seus próprios aparatos de percepção. Tanto o filme como o espectador reconhecem a visão como uma atividade de contato mediada com o mundo, como uma consciência da experiência vivida. São corpos conscientes de sua carne e de sua habilidade de visão.

Isso leva a crer que se filme e espectador possuem consciência e intenção e correspondem a métodos técnicos. Sobchack coloca ambos os corpos em paralelo, sendo que o filme seria para a tecnologia cinematográfica o que a percepção e a expressão humana representam para a fisiologia do corpo humano.

A atividade perceptiva do filme permite sua expressão no mundo (outro termo da autora), o modo como o filme forma seu olhar sobre o mundo já está diretamente relacionado como ele funda seu mundo próprio, como ele se apresenta como ser. Seu corpo, seu discurso, sua consciência intencional e material atuam na sua concepção. No encontro com o corpo do espectador, o filme inscreve sua “conduta corporal pré-reflexiva e reflexiva diante de si”, segundo ela, o que prova sua autonomia enquanto ser e sua presença enquanto corpo consciente.

O espectador absorve a percepção expressa do filme na sua própria, bem como o contrário também ocorre – é esse envolvimento que estrutura a reversibilidade da experiência cinematográfica. O que se tem são dois corpos vivos com suas próprias materialidades, seus projetos intencionais pessoais e suas capacidades expressivas exclusivas. Por isso, o contato entre ambos dificilmente não seria outro senão material, no qual um envolve o outro em uma experiência que excede o mundo dos dois.

ANOTAÇÕES SOBRE TRAJETÓRIAS DOS CORPOS

Na parte final da minha pesquisa realizei grupos focais em que colocava pessoas para assistir a filmes e depois conversávamos sobre suas impressões sobre cenas específicas. Queria poder ver e provar com uma experiência própria como os espectadores percebem sensorialmente e se relacionam com os filmes. Em geral, os autores da teoria sensória do cinema falam muito de suas percepções sobre os filmes. Isso nos leva a ver a figura do espectador como fundamental para um pensamento sobre a relação sensória no cinema e também como não única, já que as respostas pré-reflexivas podem mudar de acordo com o esquema sensório de cada um.

Em uma das sessões, cinco participantes, jovens de 20 e poucos anos, assistiram a O abismo prateado. O filme de 2011 é do brasileiro Karim Aïnouz. Baseado na música Olhos nos olhos, de Chico Buarque, a história acompanha Violeta, uma mulher que divide os dias entre trabalhar como dentista e cuidar da família no Rio de Janeiro. De repente, seu marido Djalma deixa uma mensagem dizendo que vai embora de volta para Porto Alegre, abandonando-a.

Durante a sessão, algumas cenas suscitaram reações motoras dos corpos dos participantes. Fiquei no fundo da sala atento aos movimentos e vi Naira e Jéssica se mexendo, como se ajeitando no assento ou demonstrando um leve incômodo, durante a cena de sexo entre Violeta e Djalma. Quando Violeta espera em uma sala no ambiente da construção, Jean boceja vendo a personagem parada e inquieta. As cenas no consultório odontológico de Violeta foram as que mais agitaram a superfície dos corpos, com cabeças dando impulsos para trás, buscando se afastarem da tela.

Um sentimento forte que Naira teve por todo o filme foi uma angústia pelo não direito de resposta de Violeta ao abandono do marido. Para ela, Violeta buscava um ponto final. “Ela tinha que ter isso para sentir que realmente terminou”. Naira também percebeu um ambiente urbano onde tudo se movimentava, mas a personagem estava parada. “Ela parecia isolada no meio de tudo”.

Um sentimento de desorientação também foi percebido por Jean, mas além da personagem, ele mesmo se via desorientado na narrativa. Quando Violeta fala pela primeira vez que foi abandonada, ela está no meio da construção e sua fala é abafada pelos ruídos das máquinas. Jean não ouviu; só teve certeza do abandono quando a personagem ouve o recado deixado na caixa postal – nesse momento, já se passaram 40 minutos do filme. Isso me remeteu a Sobchack que diz que, mesmo munidos de um sistema de orientação formado, sendo os objetos sensoriais que somos, estamos jogados no mundo material do filme e fazemos parte dele, nos rearranjando em seu próprio esquema sensorial.

Um segundo passo dessa desorientação seria as sensações inspiradaspelo contato com as imagens e o estado emocional da personagem. A cena da dançade Violeta na boate foi para Jéssica como uma explosão. “Vi um cansaço, ela se movimentada muito rápido, uma sensação de suor. Acho que ela queria tirar a tensão da mente e cansar o corpo”, comenta. Os sons dessa cena, bem como os movimentos do corpo de Violeta remeteram a Liliane uma atividade intensa, como um exercício militar. “É pra descontar toda raiva”, sugere Naira. “Ajudar a colocar tudo para fora”, completa Heloisa.

A maneira como o corpo se expressa chamou a atenção de todos os participantes. Todos viam ali um corpo em atividade física intensa, como se seus limites da pele estivessem sendo testados. Jéssica lembra da cena dela malhando, Heloisa lembra de como ela se machuca, mas parece que isso não a impede de nada, o que Naira diz achar o mesmo. Os participantes concordam que o estado emocional influencia no estado do corpo, e o filme reflete isso com planos turbulentos, com uma câmera trepidante. “Ela está sentindo duas dores; ela não consegue parar de pensar no abandono”, diz Liliane. Correndo, caindo, se machucando, a trajetória de Violeta é a trajetória de seu corpo.

Sugeri que os participantes elencassem cenas que promoviam o que seria um encontro dos corpos. Na cena em que Violeta e Djalma se beijam divididos pelo vidro do box do banheiro, eles discutiram sobre se haveria toque ou não, se aquilo era um encontro ou não. “Eles beijam o vidro, mas não se tocam”, argumenta Jéssica. “Para ela aquilo foi poético, para ele não, só indicava uma distância entre eles”, afirmou Heloisa.

Quando Violeta vai ao canteiro de obras, os ruídos incomodam demais Heloisa. “Era barulho demais, me incomodava”, lembra. “A voz dela fica abafada no meio de tanto barulho”, diz Jéssica. “Eu não conseguia ouvir nada direito, só os barulhos da construção”, Naira concorda. Acompanhar a percepção da personagem fizeram os participantes sentir o que ela estaria sentindo nas situações filmada. “A câmera tremia demais, e a vida dela só vai caindo durante o filme”, argumenta Liliane. Nas cenas do consultório de Violeta, a inquietação reverberou em todos. “Eu sentia uma agonia, uma perturbação na minha cabeça”, lembra Naira. “Ao mesmo tempo eu estava mais preocupada em ela receber a mensagem de Djalma”, Heloisa complementa.

Ouvindo essas impressões percebo que mundo do filme age sobre os espectadoresos transformando, elesagem sobre o mundo do filme experimentando como se tivessem as mesmas configurações dele. Lembrei quando Barker fala sobre o cinema ser uma metáfora tecnológica sobre o corpo, desenhando suas formas a partir da configuração do corpo humano e as expressa na forma cinematográfica.

Barker diz também que a atividade háptica do filme pode descer às profundidades dos corpos, em uma relação de conexão e possessão mútuas com o espectador. Quando Violeta conhece a pequena menina no banheiro de um quiosque na praia, ela a ensina a travar a vontade de chorar. Ela enche o peito de ar e solta forte, ao que a menina a imita. Em seguida, elas repetem. Heloisa disse que nesse momento ela se sentia imitando a inspiração e expiração das personagens, como se fizesse junto com elas.

Como os movimentos dos filmes são propriedades táteis, os corpos dos filmes também reverberam uma hapticidade no corpo do espectador, já que estão muito próximos da maneira de funcionamentos dos corpos espectadores. Naira diz que os movimentos das imagens de um ambiente urbano turbulento chacoalharam sua percepção, como se não pudesse acompanhar aquela velocidade.

Em momentos como esse, Barker afirma que é impossível dizer o que é o filme o que é o espectador, “o que pinta e o que é pintado”.

Os participantes muitas vezes comentavam cenas do filme de Karimacompanhas de memórias de suas vidas. Heloisa disse que já se sentiu como Violeta. “Entendo o que é pirar depois de uma notícia inesperada como essa, o que é perder o chão e não saber o que fazer. Ela casou muito jovem, com 22 anos”.

Todos participantes viram no mar uma figura importante. “O filme começa e termina na praia”, aponta Heloisa. “O marido dela deve ter tido alguma revelação ou algo do tipo quando vai à praia”, Jean supõe. “No fim, ela aparece no mesmo lugar que o marido dela, aquela mesma praia”, sugere Liliane. A figura do mar, sua relação com os participantes, a maneira como ele se manifesta, tudo isso conjuga sensações e desperta memórias nos participantes. O mar exerce sobre os participantes sensações fortes, trazem à tona memórias que eles guardam; levanta a questão de uma relação próxima com o mar que, embora seja indiferente ao filme, é despertada por ele. O poder da imagem consegue os levar a situações e lugares de seus passados, muito vivos no esquema sensório de cada um.Parecido com o que Heloisa diz: “A gente que mora no litoral às vezes recorre ao mar. Só sentar na areia da praia e aproveitar o silêncio”.