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Vol. 03 – Nº 06 – 2022

O estilo Jane Campion

Filmes devem ficar na sua memória. E muitas vezes ficam por um aspecto específico ou outro, o que ainda é bom, mas a melhor sensação é quando ele gruda na sua mente pela sua totalidade, pelo que te faz sentir, pensar, refletir, etc. Os filmes que marcaram a história conseguiram reproduzir esse efeito nos espectadores de modo perene, prolongado. Desde que eu o assisti em 2021, Ataque dos Cães, de Jane Campion, entrou na minha mente dessa maneira.

Meu primeiro contato com os trabalhos da diretora neozelandesa foi com a série Top of the Lake, em 2013. Um trabalho que, junto com Bom Trabalho de Claire Dennis, me fez conhecer um outro tipo de narrativa para além dos filmes mega populares que minha versão mais jovem gostava de ver. Top of the Lake foi, para mim, uma introdução ao estilo que viria a ser trabalhado em Ataque dos Cães. Depois de assistir ao filme, senti vontade de rever a série e engatar em sua segunda temporada, China Girl, e tive o que me proporcionou, ainda, uma nova experiência.

Existe uma fatia da crítica que classifica Ataque dos Cães como “filme de arte” no vício de tentar justificar seu ritmo lento, seu tipo de roteiro elipsado e sua direção profunda. Parece que só assim, sob essa etiqueta, podem falar bem do filme. Primeiramente, a expressão “filme de arte” pode soar completamente imbecil quando serve apenas para diminuir ou condicionar a arte cinematográfica em determinada linha de produção, determinada grife. Ora, os domínios do cinema, que o fazem ser entendido como uma arte, deveriam bastar para qualquer tipo de filme. Me parece que falta a esse tipo de crítico uma mínima bagagem menos generalista e superficial, mais aprofundada, a fim de fugir da pretensão de classificar um filme dentro de uma vertente que ele mesmo criou em sua cabeça. Basta carregar sua bagagem minimamente e verá que não há nada de “difícil” em Ataque dos Cães. O que existe é um trabalho de roteiro, encenação, direção – e de todos os outros aspectos – muito bem elaborado e planejado nos mínimos detalhes.

Ataque dos Cães começa quando Phil, um fazendeiro durão, trava uma guerra de ameaças contra Rose, a nova esposa do irmão, George, e seu filho adolescente chamado Peter. Há, em todo o filme, uma forte influência do cinema clássico e até do auge do cinema mudo. A história será contada para quem foi fisgado e está dedicado a ela. Todas as entrelinhas são apresentadas na primeira metade e, em seguida, são desenvolvidas lenta e detalhadamente, até cada uma delas chegar ao seu objetivo dramático final, umas com mais força narrativa do que outras. A questão do antraz, a relação dos irmãos e suas lembranças de seu antigo mentor, a sexualidade de Phil, as intenções de Peter, esses desenvolvimentos poderiam até ser feitos de modo seguro dentro do roteiro: apresentar personagens, vagar de uma cena a outra e ir crescendo, fazendo disso o próprio andamento do filme. Mas não é essa a intenção ou o estilo de Jane Campion. Nessa narrativa, seu objetivo principal não é nos entregar respostas, mas nos guiar através das dúvidas.

O que significa Peter procurar animais mortos pela região? Qual a real intenção de Phil ao se aproximar de Peter mesmo após atormentar o menino? Onde o alcoolismo de Rose a levará? Ela vai fazer algo contra Phil, que parece ameaçá-la silenciosamente vinte e quatro horas por dia? Como Jane Campion faz isso?

Para mim, é como se ela soubesse de toda a história e conduzisse seu roteiro através de cada ato que dê conta das relações dos personagens. Em alguns casos, ela consegue alcançar e desenvolver bem; mas, em outros, as personagens parecem correr mais que a escrita da autora e se distanciam, como se tivessem vida própria. É difícil descrever isso com precisão teórica.

E então, Campion mostra o que vem depois. Elipse e, sem seguida, lá está o personagem, ou lá estão as relações que definem esses personagens depois de seu desenvolvimento ter atingido um novo patamar. No caso de Ataque dos Cães, a principal marca dessa estratégia é a impossível amizade entre Phil e Peter.

Quando o garoto chega na fazenda com seu estilo afeminado e seu corpo magrelo, ele logo vira alvo das provações de Phil e de seus subordinados. A aproximação acontece após Peter descobrir um pequeno segredo de Phil. O cowboy depois não o confronta mais, não o ameaça, mas é mostrado sempre buscando uma aproximação e se surpreendendo com o espírito corajoso do menino. Phil encontra em Peter o que perdeu com o irmão George. Um tipo de companheirismo e amizade que cresce a partir do que cada um mostra ao outro e de como essas coisas se traduzem em respeito.

Foi ótimo rever Top of the Lake e perceber esse tipo de artifício sendo usado também em uma outra história, anterior e mais longa. Um estilo que reforça aquilo que realmente te faz lembrar de um filme: o sentimento, o pensamento, a reflexão. É esse mesmo estilo faz de Ataque dos Cães uma obra que traça, desde a primeira voz que ouvimos, a de Peter, suas intenções, mas que também nos diz “calma, espere, a resposta virá na hora certa, enquanto isso deixa eu te mostrar isso aqui…”.

Por fim, um apelo: talvez não seja um bom caminho validar um filme pela sua lentidão ou ritmo diferenciado, dê uma chance e tente senti-lo. Se a coisa realmente não “bater”, é vida que segue. Mas, se bater, é quase certo que a experiência será maravilhosa. Filmes são, também, como as melhores coisas da vida. Só se tornam as melhores se dermos chance a elas.

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Aftersun, de Charlotte Wells

É complicado filmar memórias. Dentro do universo cinematográfico, em mais de cem anos de cinema, artifícios de tudo quanto é jeito já foram pensados e realizados por diretoras e diretores para materializar em tela o que é uma memória. E falo de memória como algo que os personagens se recordam, uma lembrança que está ligada às suas motivações, sentimentos, ações. Pois, em uma história, uma memória não deve ser exposta de modo gratuito. Seja com o mais simples e poderoso recurso do flashback convencional, como usado em Lost (TV, 2004-2010); passando pelos planejadíssimos flashbacks de Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) ou Bom Trabalho (Claire Denis, 1999); nas misturas de passado, presente e futuro de A Chegada (Denis Villeneuve, 2016); ou no recurso do falso found footage como em Lake Mungo (Joel Anderson, 2008).

Pois em 2022 surge uma obra capaz de trazer novas discussões sobre este recurso narrativo. Aftersun é o primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells e conta sobre Sophie, uma mulher que remexeu em gravações de uma antiga câmera digital para encontrar filmagens dela com seu pai, Calum, durante férias que aconteceram 20 anos antes. Mas o filme não se demora no que seria o “atual”, nas cenas de Sophie adulta. Aliás, para entender que ela está revendo as imagens há apenas um plano, bem no comecinho do filme. Estamos vendo imagens de uma das gravações e, de repente, percebemos o reflexo de Sophie na tela da TV, se levantando. Essa cena, aliada aos efeitos imagéticos e sonoros de manuseio de uma câmera digital, são gatilhos mais que suficientes para sacar que, a partir de agora, vamos entrar nos fios de memória muito particulares da protagonista.

Alternando entre cenas que são as gravações e cenas filmadas a modo convencional, rapidamente dá para entender porque Sophie está buscando rever essas memórias. Há um tipo muito especial de relação dela com seu pai. Apesar da típica história do pai que não mora com seus filhos, Calum se mostra alguém ressentido e nem um pouco orgulhoso dessa distância, o que faz com que cada momento passado com Sophie se multiplique por modo de seu carinho, de sua atenção e de sua cumplicidade. E Sophie, como é uma criança, não pensa muito nisso, ela apenas vive os momentos. E é quase palpável a influência de Calum sobre Sophie. A menina parece emular, a seu próprio modo, os jeitos e os pensamentos do pai, ao mesmo tempo que confronta alguns e estabelece novos e originais. A Sophie escrita por Charlotte Wells é uma persona em desenvolvimento, construindo sua própria personalidade.

A conexão entre pai e filha nos parece tão forte que, vinte anos depois, Sophie parece se lembrar minuto a minuto daquelas férias. Não há aqui uma dúvida do que era o relacionamento dos dois, há certezas. As dúvidas ficam para os momentos que ela, quando criança, não consegue ver, nos problemas pessoais e psicológicos que Calum aparenta ter. E, quando conseguimos ter algum vislumbre dessas dúvidas, é quando Sophie apenas imagina o que aconteceu. Mesmo no momento de maior rompimento entre os dois, o dia seguinte mostra que provavelmente não foi a primeira vez que eles se separaram assim e que Sophie já entende boa parte do que deve fazer. Ainda assim, há as desculpas, os arrependimentos. Se o roteiro costura essas memórias, Paul Mescal e Frankie Corio, os atores protagonistas, as materializam. É um trabalho sensível e muito apurado dos dois. A melancolia se mistura com a felicidade em Aftersun a partir de suas atuações.

O filme propõe a inversão do que é presente e passado em um filme. O passado é, em grande parte das histórias, um fator subordinado ao presente, mesmo que sua importância seja tão grande quanto os fatos que decorrem no tempo presente do filme. Já em Aftersun, o presente é que é acessório do passado. Pois essas memórias de Sophie se tornam elemento fílmico palpável, são gravações que se tornam a vida, que retornam a ser gravações, e voltam novamente a vida, ligando-se à Sophie vinte anos mais velhas, uma Sophie que tem saudades, remorsos e felicidades ao rever suas férias com o pai. A memória escrita e filmada por Charlotte Wells é mais do que um longo filme em flashback. Ela é o desejo da protagonista, sua vontade de viver e reviver.

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Críticas

A gente dá um jeito

Marte Um, de Gabriel Martins

Chorei duas vezes vendo Marte Um. A primeira quando Eunice, filha mais velha de Wellington e Tércia, se despede do pai, que não está aceitando muito bem sua partida de casa. Essa cena me fez mergulhar em minhas próprias memórias, também do exato momento em que tive que me despedir da minha família antes de sair do interior para migrar para a capital. Família pobre, igual a de Marte Um. É a máxima que todos já sabemos: o cinema, a arte, é um espelho da vida. E dentro disso, o filme nada de braçada.

A história gira em torno de uma família que vive na periferia de Contagem (MG), todos buscando algo que parece inalcançável, desejos representados pelo sonho do filho mais novo, o Deivim, que quer ser astrofísico e participar da missão Marte Um, que vai levar humanos para colonizar Marte. 

Por que todos esses sonhos parecem tão inalcançáveis? Não é a falta do querer de cada um. Durante suas jornadas, nós vemos os grandes esforços, os choros, as tentativas e as frustrações. Essas pessoas vivem na adversidade em 100% do tempo e precisam estar atentas a todo momento. O único que se permite divagar um pouco é Deivim. Lógico, ainda é uma criança. E até isso parecem lhe querer tirar. Logo o próprio pai, que na sua busca de deixar a família em uma situação financeira confortável, enxerga no menino um futuro jogador de futebol, dos grandes, ao ponto de pressioná-lo a sair de um caminho que até ele desconhece.

São sonhos inalcançável pois são pobres. Isso é a sobrevivência. No meio da correria e da busca por dinheiro, podemos esquecer de olhar mais atentamente para os sentimentos e para os desejos.  

A segunda vez que chorei vendo Marte Um é quando o pai ouve um sonho impossível de se realizar do filho. Ele olha para o céu, pensa um pouco e diz “Ah, isso aí a gente dá um jeito”. Mesmo dentro de nossos métodos de sobrevivência do cotidiano, no fim a gente nunca esquece completamente do outro que está ao lado. Quantas vezes eu já não ouvi isso de minha mãe, de meu pai, dos meus avós. “A gente dá um jeito”. E a gente dá mesmo. O que não significa conseguir, mas entender que nosso maior trunfo é não deixar a quem se ama na mão. Uma hora a gente percebe isso, assim como Wellington percebeu.

Marte Um é a representação da nossa verdadeira essência. Da minha e da de muitos brasileiros. É sobre tentar e não conseguir. Sobre não conseguir, mas entender. Sobre entender e seguir em frente. E sobre seguir em frente com o mesmo sonho de antes. 

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Vol. 02 - Nº 04 - 2021

Racionais MC’s e o Roteiro Cinematográfico

Felizmente, descobri os Racionais MC’s bem cedo na vida. Negro Drama. Isso na adolescência, um menino da roça, cidade pequena, zero conhecimento de mundo ou de seus problemas mais cruciais. Então, a música batia mais pelo ritmo e pela raiva cantada do que pelo que estava sendo dito. Mas batia, ainda assim. 

Uma faculdade de cinema depois, ouço Racionais todos os dias. Me tornei um ouvinte assíduo nos últimos três anos, agora sim pelo que se dizia nas letras, pela forma com que se dizia, e pelo ritmo, pelas histórias…

Sou um roteirista aspirante, de alguma forma estudioso do roteiro cinematográfico e de suas teorias. Talvez por isso tenha percebido outra coisa em relação às músicas do grupo: algumas delas são puro cinema, roteiros perfeitos de tramas bem elaboradas e bem contadas. Se o roteiro de cinema é um modo de (d)escrever ações e imagens e saber selecionar tanto as partes tensas quanto amenas de uma vida para construir uma trama, então os Racionais, além de músicos, são cineastas.

Por isso apresento esta lista. Vou escrever, brevemente, sobre cinco músicas dos Racionais MC’s que deveriam ser usadas como estudo de roteiro cinematográfico. 

Então, vamos lá:

5 – Eu Sou 157

No livro “Sobrevivendo no Inferno”, que junta as letras do álbum de mesmo nome dos Racionais, há um prefácio escrito por Acauam Silverio de Oliveira onde o autor analisa toda a obra do grupo e pontua as mudanças de estilo com o passar do tempo. A parte mais interessante para mim é quando Acauam mostra que, nas primeiras músicas, o discurso falava dos problemas da favela com uma visão soberba, colocando as soluções diante dos olhos dos moradores das comunidades e julgando o fato de que eles não as viam. A partir de Sobrevivendo no Inferno isso muda. Toda a problemática agora é tratada de forma respeitosa, mesmo com as coisas mais violentas. A intenção não é mostrar para o restante da sociedade a vivência da favela, isso a MPB tentou fazer. O que os Racionais queriam e ainda querem é olhar para dentro e fortalecer a própria favela. Por isso, a mudança de postura.

Dentro disso se encontra Eu Sou 157, do álbum Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Aqui, Mano Brown conta um pouco da cabeça de um rapaz que já está completamente enraizado no crime. Na segunda estrofe, é apresentada uma situação que mostra essas raízes, em que o personagem é abordado por um outro homem querendo se enturmar, falando gíria, falando de drog…. Ele analisa essa pessoa, fala dos seus modos, de como chegou ali, e no fim descobre que era um policial sob disfarce. Sua experiência possibilitou esse reconhecimento e essa fuga. 

A música segue contando seus pensamentos internos até que surge um trabalho a fazer, um assalto planejado. Mas o crime dá errado, alguém os caguetou e um moleque morre. Então, vem a estrofe: 

O neguinho vinha vindo, do que vinha rindo?
O pesadelo do sistema não tem medo da morte
Dobrou o joelho e caiu como um homem
Na giratória, abraçado com o malote
Eu falei, porra! Eu não te falei?! Não ia dar!
Pra mãe dele, quem que vai falar, quando nóis chegar?
Um filho pra criar, imagina a notícia
Lamentável, vamo aí, vai chover de polícia

Em seguida, a música faz uma digressão. Por alguns segundos o beat para, ouvimos o som de uma televisão e de uma mulher chorando em desespero. É a mãe do menino morto. No meio da ação, Brown faz uma vírgula para contar brevemente sobre outra linha narrativa. E só precisa de um choro para isso.

Depois, outra estrofe, seguida do refrão:

A vida é sofrida, mas não vou chorar
Viver de quê? Eu vou me humilhar?
É tudo uma questão de conhecer o lugar
Quanto tem, quanto vem e a minha parte, quanto dá porque…

Hoje eu sou ladrão, artigo 157
As cachorra me ama, os playboy se derrete
Hoje eu sou ladrão, artigo 157
A polícia bola um plano, sou herói dos pivete

Foi triste, foi sofrido, mas essa é a vida dessa personagem. Agora, e o dinheiro? É o fim perfeito.

4 – Capítulo 4, Versículo 3

A terceira faixa de Sobrevivendo no Inferno é uma das maiores canções da história da música brasileira. Ela abre exatamente com o discurso que citei acima. Não adianta falar da criminalidade, da pobreza e da fome como se a solução fosse fácil. Ela não é. E se há um lugar por onde começar a encontrá-la, esse lugar não está fora da favela, não está em Brasília. Está dentro da própria comunidade. Esse trecho famoso fala exatamente sobre isso: 

Colou dois mano, um acenou pra mim
De jaco de cetim, de tênis, calça jeans
Ei, Brown, sai fora, nem vai, nem cola
Não vale a pena dar ideia nesse tipo aí
Ontem à noite eu vi na beira do asfalto
Tragando a morte, soprando a vida pro alto
Ó os cara, só o pó, pele e osso
No fundo do poço, mó flagrante no bolso
Veja bem, ninguém é mais que ninguém
Veja bem, veja bem, e eles são nossos irmãos também
Mas de cocaína e crack, uísque e conhaque
Os mano morre rapidinho, sem lugar de destaque
Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma?
Nem dá, nunca te dei porra nenhuma

Por isso, Capítulo 4, Versículo 3 funciona como essa grande reflexão, intercalando diálogos internos com histórias pontuais. Funciona como Magnólia, do Paul Thomas Anderson, ou Amores Brutos, do Alejandro González Iñarritu. 

Em seguida, segue a história de vários anos de um personagem que foi do céu ao inferno. 

Em poucas linhas, os Racionais falam da vitória e da desgraça, falam de todos os problemas que esse personagem passou ao mesmo tempo em que também falam de questões “menores”. E isso é roteiro, saber fazer perceber, às vezes, que o que vemos de um personagem também pode ser algo que já se deu anteriormente, ou que vai se repetir no futuro. O que diz muito sobre tal personagem. O pulo do gato, no entanto, é saber contar isso sem soar artificial:

Você vai terminar tipo o outro mano lá
Que era um preto tipo A, ninguém tava numa
Mó estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma, é
Um jeito humilde de ser, no trampo e no rolê
Curtia um Funk, jogava uma bola
Buscava a preta dele no portão da escola
Exemplo pra nós, mó moral, mó Ibope
Mas começou a colar com os branquinho do shopping (aí já era)
Ih, mano, outra vida, outro pique
Só mina de elite, balada, vários drinques
Puta de boutique, toda aquela porra
Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra
Faz uns nove anos
Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano
Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto
Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto
O cara cheira mal, as tias sentem medo
Muito loco de sei lá o quê, logo cedo
Agora não oferece mais perigo
Viciado, doente, fudido, inofensivo

3 – Jesus Chorou

Talvez eu vá longe demais agora, mas a introdução de Jesus Chorou, também do Nada Como Dia Após o Outro Dia me lembra a introdução de Persona, do Ingmar Bergman. Persona é um dos maiores filmes de todos os tempos e sua primeira sequência, da primeira vez em que se vê, parece completamente deslocada do resto do filme. Ela mostra diversas imagens de arquivo até chegar no quarto onde uma criança dorme. Essa criança acorda e vê, numa tela, talvez a mesma tela em que as imagens de arquivo estavam passando, o rosto da personagem de Liv Ulmann, Elisabet. Há algumas teorias sobre essa introdução de Bergman, a principal delas é que essa criança é uma representação do filho de Elisabet, que (ela mesma é quem conta) ela não foi capaz de criar.

A primeira estrofe de Jesus Chorou é uma reflexão sobre a angústia, e faz isso ao falar sobre a lágrima:

O que é, o que é?
Clara e salgada,
Cabe em um olho e pesa uma tonelada
Tem sabor de mar,
Pode ser discreta
Inquilina da dor,
Morada predileta
Na calada ela vem,
Refém da vingança,
Irmã do desespero,
Rival da esperança
Pode ser causada por vermes e mundanas
E o espinho da flor,
Cruel que você ama
Amante do drama,
Vem pra minha cama,
Por querer, sem me perguntar me fez sofrer
E eu que me julguei forte,
E eu que me senti,
Serei um fraco quando outras delas vir
Se o barato é louco e o processo é lento,
No momento,
Deixa eu caminhar contra o vento
Do que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?
O vento não, ele é suave, mas é frio e implacável
(E quente) Borrou a letra triste do poeta
(Só) Correu no rosto pardo do profeta
Verme sai da reta,
A lágrima de um homem vai cair,
Esse é o seu BO pra eternidade
Diz que homem não chora,
Tá bom, falou,
Não vai pra grupo irmão aí,
Jesus chorou!

Eu entendo Jesus Chorou como uma das músicas mais pessoais de Mano Brown, e também vejo nela uma ligação com o momento que os Racionais viviam, o da fama absoluta. 

Depois dessa introdução, a música segue contando de um personagem que é acordado por uma ligação. Um amigo lhe conta de um encontro que teve ontem com um cara que começou a falar que esse personagem era uma pessoa mesquinha e que não se importava com os seus (seus manos da favela), depois que ficou bem de vida. Ela funciona como um longo diálogo interno, o personagem não está psicologicamente bem de saúde. A música não conta uma história completa como as outras que já apresentei, mas gosto como ela apresenta angústias, medos e pensamentos do personagem. Como neste trecho: 

Vermelho e azul, “Hotel”, pisca só no,
Cinza escuro do céu
Chuva cai lá fora e aumenta o ritmo,
Sozinho eu sou agora o meu inimigo íntimo
Lembranças más vem, pensamentos bons vai,
Me ajude, sozinho penso merda pra caralho
Gente que acredito, gosto e admiro,
Brigava por justiça e paz levou tiro:
Malcom X, Ghandi, Lennon, Marvin Gaye,
Che Guevara, 2Pac, Bob Marley e
O evangélico Martin Luther King
Lembrei de um truta meu falar assim:
“Não joga pérolas aos porcos irmão,
Joga lavagem eles prefere assim,
‘Cê tem de usar piolhagem!”

Então, o personagem foge um pouco da situação que lhe tirou da zona de conforto e conta sobre outra coisa que lhe tira o sono. Expõe que pode estar pensando em coisas muito ruins, como o suicídio. 

Jesus Chorou é uma aula de como mostrar problemas internos de uma personagem de várias formas diferentes, sendo que elas estão interligadas. E isso traz o sentimento e a veracidade, coisas essenciais para um roteiro ser triunfante na hora de contar sua história.

2 – Diário de um Detento

Essa é clássica e fácil de colocar numa lista como esta. Aliás, Diário de um Detento já é filme. Carandiru, de Héctor Babenco, é uma adaptação do livro de Dráusio Varella, mas também está intrinsecamente ligado à música dos Racionais.

Escrita por Mano Brown junto de um detento que sobreviveu ao massacre do Carandiru, Jocenir, a história da música se passa em 3 dias. Um antes do massacre, o massacre em si e o dia seguinte a ele. É um roteiro clássico. Há a apresentação dos vários elementos que constituem a história já no primeiro ato:

[…]
Na muralha, em pé, mais um cidadão José
Servindo o Estado, um PM bom
Passa fome, metido a Charles Bronson
Ele sabe o que eu desejo
Sabe o que eu penso
O dia ‘tá chuvoso o clima ‘tá tenso
Vários tentaram fugir, eu também quero
Mas de um a cem, a minha chance é zero
[…]
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá
Tanto faz, os dias são iguais
Acendo um cigarro, e vejo o dia passar
Mato o tempo pra ele não me matar
Homem é homem, mulher é mulher
Estuprador é diferente, né?
Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés
E sangra até morrer na rua 10
Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto, eis um novo detento

Temos a virada do primeiro para o segundo ato (antes de um grande momento de reflexão sobre o que é ser um presidiário):

[…]
Amanheceu com sol, dois de outubro
Tudo funcionando, limpeza, jumbo
De madrugada eu senti um calafrio
Não era do vento, não era do frio
Acertos de conta tem quase todo dia
Tem outra logo mais, eu sabia
Lealdade é o que todo preso tenta
Conseguir a paz, de forma violenta
Se um salafrário sacanear alguém
Leva ponto na cara igual Frankestein
Fumaça na janela, tem fogo na cela
Fudeu, foi além, se pã, tem refém
Na maioria, se deixou envolver
Por uns cinco ou seis que não têm nada a perder
Dois ladrões considerados passaram a discutir
Mas não imaginavam o que estaria por vir

O segundo ato, no caso, é todo o massacre. Para então chegar ao ato final, aqui descrito em 4 versos:

[…]
Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de Outubro, diário de um detento

Se eu fosse professor de roteiro (algo que tenho desejo, confesso), proporia o seguinte exercício aos alunos: “tente escrever três dias de um personagem, vamos ver em quantas páginas você faz isso. Esses dias precisam ter conflitos, ideias, e a premissa precisa estar presente”.

Óbvio, um roteiro não tem a duração de uma música, mas é inegável a habilidade dos Racionais MC’s em falar muito com poucas palavras e tudo ainda fazer sentido. 

1 – Tô Ouvindo Alguém Me Chamar

Essa, para mim, é a melhor música do grupo e a maior e melhor canção da música brasileira. Ainda não ouvi nada que tivesse a complexidade narrativa de Tô Ouvindo Alguém Me Chamar. Ela valeria um texto só, e eu ainda devo algum dia esboçar algo assim. 

A música conta sobre dois amigos de vida e de crime. O principal é quem narra, o outro é o Guina, um ladrão conhecido, violento, temido. Ela vai e vem no tempo, faz digressões psicológicas no meio de cenas importantíssimas, que contam mais sobre os personagens, reforçam características ou justificam ações. Tudo isso em 8 minutos de música.

O Guina, como falei, é apontado como alguém a se ter medo:

[…]
Todo ponta firme, foi professor no crime
Também mó sangue frio, não dava boi pra ninguém
[…]
O Guina não tinha dó:
Se reagir, Bum!, vira pó
[…]
Eu tava bem de perto e acertei uns seis
O Guina foi e deu mais três

Logo depois desse último trecho, Brown entra com a história do Guina, começando da sua infância, passando pela adolescência e chegando na vida adulta. Ele conta de possíveis ações que o fizeram ficar assim. E ainda fala um pouco do destino de todos da favela, de como a vida acaba sendo muito cruel mesmo com quem consegue expressar suas potências:

[…]
Lembro que um dia o Guina me falou
Que não sabia bem o que era amor
Falava quando era criança
Uma mistura de ódio, frustração e dor
De como era humilhante ir pra escola
Usando a roupa dada de esmola
De ter um pai inútil, digno de dó
Mais um bêbado, filho da puta e só
Sempre a mesma merda, todo dia igual
Sem feliz aniversário, Páscoa ou Natal
Longe dos cadernos, bem depois
A primeira mulher e o 22
Prestou vestibular no assalto do busão
Numa agência bancária se formou ladrão
Não, não se sente mais inferior
Aí neguinho, agora eu tenho o meu valor
Guina, eu tinha mó admiração, ó
Considerava mais do que meu próprio irmão, ó
Ele tinha um certo dom pra comandar
Tipo, linha de frente em qualquer lugar
Tipo, condição de ocupar um cargo bom e tal
Talvez em uma multinacional
É foda…
Pensando bem que desperdício
Aqui na área acontece muito disso
Inteligência e personalidade
Mofando atrás da porra de uma grade
A outra digressão é composta de apenas uma linha. 

O personagem principal fala muito de sua família, de como saiu de casa e, principalmente, da relação com seu irmão, um cara que não foi para o crime, que conseguiu estudar e formar uma família. Sentimos muita angústia do personagem ao contar essa histórias, até porque a música, no fim, é sobre seu desejo de viver tranquilamente. Por isso, em um momento, ele reflete sobre os crimes que cometeu e sonha com a própria morte:

[…]
Agora é tarde, eu já não podia mais
Parar com tudo, nem tentar voltar atrás
Mas no fundo, mano, eu sabia
Que essa porra ia zoar a minha vida um dia
Me olhei no espelho e não reconheci
Estava enlouquecendo, não podia mais dormir
Preciso ir até o fim
Será que Deus ainda olha pra mim?
Eu sonho toda madrugada
Com criança chorando e alguém dando risada
Não confiava nem na minha própria sombra
Mas segurava a minha onda
Sonhei que uma mulher me falou, eu não sei o lugar
Que um conhecido meu (quem?) ia me matar
Precisava acalmar a adrenalina
Precisava parar com a cocaína
Não to sentindo meu braço
Nem me mexer da cintura pra baixo
Ninguém na multidão vem me ajudar?
Que sede da porra, eu preciso respirar!
Em seguida ele solta essa frase:
Cadê meu irmão?

Pode não parecer nada, mas para mim isso é um toque de mestre. Isso atesta todo o discurso. A vida lhe puxou até esses acontecimentos, ele teve poucas opções de escolha. E, mesmo nas piores turbulências, o seu desejo de sair desse mundo se resume a essa pergunta. 

Cadê meu irmão? 

Já chorei com essa música algumas vezes. Hoje em dia, sempre que preciso lembrar como uma história deve ser escrita, faço duas coisas: vou ver filmes antigos e/ou escuto Tô Ouvindo Alguém Me Chamar.

Além de entrar em questões de vestibulares pelo país afora, os Racionais MC’s deveriam entrar nos currículos de cinema. Há outros exemplos dentro da discografia dos caras. Há outros exemplos mesmo dentro dessas músicas que apresentei. Trechos e mais trechos que podem contribuir com toda teoria de roteiro cinematográfico que existe. Há filmes clássicos, filmes modernos, planos sequências, flashbacks, sonhos, fantasia… cinema!

Viva os Racionais.

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Vol. 02 - Nº 03 - 2021

O Caso Evandro

O podcast Projeto Humanos: O Caso Evandro foi, provavelmente, a obra que mais me cativou e engajou desde 2018. Ouvinte de podcasts desde 2011, por anos ouvi um mesmo programa, alternando vez ou outra, sem a mesma frequência que tinha com o primeiro podcast que conheci. Esse veículo de comunicação sonora começou bastante calmo no Brasil, antes de sua monstruosa ascensão que se deu a partir do mesmo ano em que conheci O Caso Evandro. Antes disso, lá fora (principalmente nos Estados Unidos), o universo dos podcasts já havia evoluído e se difundido bastante. O modelo clássico de conversas entre amigos sobre algum tema específico desdobrou-se em muitos outros gêneros. 

O mais famoso deles talvez seja o true crime, estilo onde o apresentador conta histórias relacionadas a crimes reais, às vezes entrevistando pessoas envolvidas e especialistas nos casos em questão, usando também arquivos midiáticos sobre o assunto. O principal expoente do gênero true crime dentro dos podcasts é o Serial Podcast (2014). Escrito, produzido e apresentado por Sarah Koenig, Serial representou o grande boom do cenário nos EUA, alcançando uma audiência extraordinária e ganhando status de sucesso internacional. Com uma média de espectadores de uma série de TV, o programa conta a história do assassinato de Hae Min Lee, garota filha de imigrantes coreanos. Seu ex namorado, o muçulmano Adnan Seyd, foi preso acusado de tê-la matado. Baseado no testemunho de um amigo de Adnan, o rapaz é sentenciado à prisão perpétua. Anos depois, a história chega até Sarah, que já produzia um outro podcast de sucesso (This American Life), e resolve investigar e narrar o caso em um novo programa, o Serial

Evandro, uma criança de 6 anos, desapareceu na cidade litorânea de Guaratuba, no Paraná. Seu corpo foi encontrado dias depois já quase irreconhecível com as mãos e os pés amputados, o coração e outros órgãos arrancados. A Polícia Civil foi acionada e passou alguns meses sem resolver o caso. Diógenes Caetano, primo de Evandro e conhecido opositor do então prefeito Aldo Abbage, começou a realizar suas próprias investigações e a criticar mais duramente a ação da Polícia Civil e da família Abbage. Além disso, Diógenes acreditava que a esposa de Aldo, Celina Abbage, havia sido responsável pela separação de sua família ao ter um caso com seu pai. A seção de inteligência da Polícia Militar, entrou no caso, e prendeu cinco homens a partir de um depoimento de Diógenes – entre eles Oswaldo Marcineiro, um pai de santo da cidade. Os homens foram acusados de raptar e matar a criança em um ritual de magia negra, a mando da primeira dama e de sua filha Beatriz Abbage. As duas também foram presas. Os sete acusados confessam, nasce toda uma comoção popular contra eles e contra a família Abbage e, junto a isso, um ódio violento contra a religião de matriz africana da qual Oswaldo fazia parte. Um verdadeiro escândalo, que se tornaria ainda pior a partir do momento em que os acusados começaram a alegar que foram torturados para que assumissem os crimes.

https://www.projetohumanos.com.br/temporada/o-caso-evandro/

Ivan Mizanzuk criou primeiro o Projeto Humanos, um programa no formato storytelling – diferente do tradicional “papo entre amigos”, que ainda é o principal estilo de podcasts no Brasil. O Caso Evandro é a quarta temporada do Projetos Humanos, primeira em que o jornalista decidiu embarcar em um caso criminal. Ivan viveu o medo do desaparecimento de crianças na década de 1990, no Paraná, e conheceu de perto o caso das “Bruxas de Guaratuba”.

A ideia de Ivan era contar a história do caso, ou seja, ir desde o rapto até os julgamentos, expondo as contradições, os absurdos e a desleal cobertura midiática. Assim como Serial, O Caso Evandro foi um sucesso, e logo desembarcou em outras mídias. Além de virar livro, escrito pelo próprio Ivan, o podcast se transformou em série de TV, distribuído pelo serviço de streaming Globoplay, com direção de Michele Chevrand e Aly Muritiba, este último sendo um dos mais promissores cineastas brasileiros dos últimos anos, ao lado de Gabriela Amaral Almeida, na minha opinião.

Quando anunciada, a série documental televisiva d’O Caso Evandro logo foi alvo da pergunta dos fãs: que partes e aspectos do podcast estariam presentes em tela? Como adaptar uma história tão complicada e comprida? O que ela traria de novo? 

O primeiro impacto para quem ouviu os 36 episódios do podcast e depois assistiu a série é o de ver os rostos daqueles personagens que haviam apenas escutado. Por mais que o próprio Ivan disponibilizasse uma enciclopédia no site do Projetos Humanos com fotos de todos, vê-los falando na série é diferente. Essa materialização serve ao próprio argumento da série, que depois de apresentar o crime, os acusadores e os acusados, logo encaminha-se para a sua principal linha narrativa: a de que os acusados só confessaram por terem sido torturados pela polícia. É preciso transitar na história para entender isso, o que também significa dar alguns spoilers.

Dentro do podcast, Ivan conseguiu, de uma fonte anônima, as fitas originais das confissões. Fitas que, na época da investigação e do julgamento, “sumiram” dos autos do processo, e não foram transcritas em sua totalidade. Essas fitas, tocadas quase na íntegra, comprovam a tortura por meio de vozes de dor, cansaço e desespero, pedidos de socorro, comandos de afogamento e ameaças de “continuar a nossa seção caso você não fale o que queremos”. Na série, ao ver o vídeo de outra confissão feita com Beatriz Abbage, é possível distinguir nela alguém completamente exaurida. O mesmo com Davi dos Santos Soares, e é possível perceber um tampão em sua orelha, suja de sangue – o que comprova uma de suas descrições de tortura. Davi conta que lhe colocaram deitado, encostaram o cano de uma pistola bem do lado de seu ouvido e atiraram no chão, o que teria provocado o sangramento.  

Com essa materialidade das falas e do discurso, O Caso Evandro resolve uma das perguntas: como adaptar essa história? Procurando a principal linha narrativa e seguindo-a diretamente. 

Felizmente, ser direto aqui não significa ser raso. A série não apresenta só a possibilidade de entrevista com os personagens que já falavam no podcast, mas também permitiu que outros agentes entrassem. Davi é um deles, Airton Bardelli (outro acusado), o promotor de justiça Paulo Markowicz, o advogado das Abbage, Antônio Figueiredo Bastos, entre outros. Esses dois últimos, aliás, ajudam a entender o poder de adaptação da série. Eles constroem o caminho narrativo: Markowicz é o “acusador” das Abbage, ele acredita, a partir das provas e dos autos, que mãe e filha são sim culpadas. Figueiredo Bastos, obviamente, pensa o contrário. Defendeu a tese da tortura desde o julgamento de 1998, e chegou a conseguir inocentá-las no mesmo juri (a tese comprada pelo júri era a de que o corpo encontrado não era o de Evandro). No meio dos dois, há o próprio Ivan Mizanzuk, primeiramente como o criador do podcast, e depois com participação mais evidente como um especialista, uma pessoa que passou anos lendo todas as milhares de páginas do processo, ouvindo os julgamentos, entrevistando pessoas. Se Markowicz ou Figueiredo Bastos contam sobre suas teses, se os acusados defendem-se de incongruências em seus álibis, se jornalistas contam o que viram e ouviram na época, é Ivan quem aparece didaticamente para explicar a origem e a natureza daqueles discursos, no que eles são contraditórios, em que aspectos fazem sentido, porque a defesa os utiliza ou não e como a acusação os manipula como prova. 

Ao redor desses três caminhos, estão os verdadeiros protagonistas. A escolha dos sete acusados provavelmente não foi a toa: envolvia política, religião e sociedade. Os espectros envolvidos construíram figuras complexas, com trajetórias verdadeiramente épicas, no sentido cinematográfico da palavra. Celina e Beatriz Abbage, ligadas ao prefeito de Guaratuba, que por sua vez tinha ligação com Aníbal Khoury, principal político paranaense da época; Beatriz, criada em família católica, se tornou espírita e era simpática a religiões de matrizes africanas, o que proporcionou sua amizade com Oswaldo Marcineiro. Sua mãe tinha uma suposta e estranha ligação com Diógenes Caetano, que a acusava de ter tido um caso com seu pai, coisa que Celina obviamente nega. Dos acusados, Oswaldo é quem mais conhecia as Abbage, sofreu muitos preconceitos por ser pai de santo e acabou envolvido na trama. Vicente de Paula era amigo de Oswaldo, também pai de santo, mas nem em Guaratuba morava, ficava na casa de Marcineiro quando ia à cidade; ele foi buscado em Curitiba para servir como suspeito e, depois, julgado culpado: Vicente morreu na cadeia. Davi era artesão e também próximo de Oswaldo. Airton Bardelli era funcionário do prefeito Aldo Abbage. E, por último, Sérgio Cristofolini, que simplesmente alugava seu imóvel para que Oswaldo morasse.

Essa teia complicada é muito bem amarrada entre entrevistas, grafismos, narrações e reconstituições. Esse último aspecto deixa clara a influência do programa “Linha Direta” na direção de Aly Muritiba e Michele Chevrand. Essas cenas são tão bem filmadas e encenadas que nos fazem imaginar uma série ficcional dessa história. 

A série também parece encontrar um ritmo ideal em seus oito episódios, sendo o último um extra que conta a história de Leandro Bossi, outra criança desaparecida em Guaratuba, na mesma época. É lógico que, se a intenção era ser direto e cortar alguns detalhes irrelevantes ao discurso, a temporada não precisava se estender muito mais. O que também causa um ponto negativo: durante os episódios, algumas falas e muitas cenas reconstituídas são repetidas, o que pode primeiro parecer coerente, já que algumas coisas precisam ser reforçadas, mas em dado momento, percebe-se que essa repetição pode ter sido resultado da falta de material filmado, ou talvez uma escolha equivocada. 

Vale destacar, ainda, a trilha musical vinda diretamente do podcast, composta por Felipe Ayres e reimaginada para a série. As músicas transitam entre o estranho, o medonho, o melancólico e o bizarro da história. Elas completam as cenas, assim como deve ser uma boa trilha dentro de um produto audiovisual. Elas contam a história junto aos demais elementos. 

Quando achamos que chegou ao fim, no sétimo episódio, onde as fitas encontradas por Ivan são colocadas para que os personagens possam ouvi-las (inclusive Marcowiz, que de primeira reluta, mas acaba aceitando que, de alguma forma, houve tortura. Percebemos, ainda, uma lacuna: a linha narrativa das crianças desaparecidas em Guaratuba, que antes são inevitavelmente encobertas, volta à tona. O oitavo episódio trata de contar sobre Leandro Bossi e sua família. Voltamos, então, aos muitos sumiços que ocorreram no Paraná na década de 1990: Leandro Bossi sumira tal qual Evandro, e na mesma época. Mas por ser de família pobre,  não houve burburinho em torno de seu caso. 

Em meio ao desespero de um pai ludibriado pela angústia e ansioso para encontrar seu filho, um garoto aparece e diz ser Leandro, causando, à época, comoção nacional. Tudo isso se alia à inconsequente omissão das polícias militar e civil. Aqui, os diretores constroem seu episódio mais melancólico. Os depoimentos de João Bossi são emocionantes e a cena final, na qual o homem caminha pelo quintal de sua casa e nos mostra um terreno que reservou para o filho ainda desaparecido, como um símbolo de esperança mesmo depois de tantos anos, é poderoso. “E que Deus abençoe a sua volta”, diz o homem. João Bossi morreu em 30 de abril de 2021.

O Caso Evandro não é só um ótimo podcast, mas também uma excelente série de TV. É um grande e promissor passo para o gênero true crime dentro do mainstream da televisão brasileira, algo que poderia facilmente ser veiculado em canais abertos e que deveria mesmo ir, pois não fala só de uma história extraordinária e muito rica, mas também de um assombramento que ainda ronda o Brasil, de metodologias e comportamentos herdados da ditadura militar que, infelizmente, ainda encontram vias para se manter vivos. 

Aly Muritiba e Michele Chevrand são ótimos entrevistadores. Mesmo que uma montagem consiga ocultar intervenções, é possível perceber quando personagens de um documentário são interrompidos por pequenas perguntas que serviram como gancho para seguirem contando sua história. Um método recorrente no documentário brasileiro, daqueles que melhor conduzem entrevistas. As muitas informações foram profundamente estudadas e moldadas para a narrativa e pecam, como já dito, pela repetição, mas a teia complicada d’O Caso Evandro é muito bem filmada.

Espero ansiosamente por mais trabalhos de Ivan Mizanzuk, como fez no podcast, seguindo sua seriedade, ética jornalística e habilidade no storytelling. Espero também que a série possibilite outros produtos de mesmo nível, tanto na narrativa e estética quanto na importância de contar histórias que emanam emoções e significados por todos os lados.

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Críticas

O Homem Invisível (Leigh Whannel, 2020)

Com o lançamento de “A Múmia” em 2017, a Universal Studios pretendia criar o que chamou de Dark Universe, um universo cinematográfico nos moldes dos filmes de super-heróis da Marvel, mas usando suas franquias de horror. Um catálogo com clássicos como “Drácula”, “Frankenstein”, “O Lobisomem” entre outros. Já haviam alguns filmes agendados e atores escolhidos para viver os personagens. Mas “A Múmia” se mostrou um fracasso de crítica e bilheteria, fazendo com que a Universal interrompesse seus planos. Algum tempo depois, o estúdio resolveu reformular os planos para seu universo cinematográfico e fez nascer “O Homem Invisível”, em 2020, dirigido por Leigh Whanell.

Sendo um remake de outro clássico, o filme faz parte da nova estratégia da Universal de espalhar as suas propriedades por produtoras independentes para que ideias originais sejam agregadas à histórias já conhecidas em filmes de horror de baixo orçamento. Desse modo, a história de “O Homem Invisível” foi cair dentro da Blumhouse, provavelmente a produtora de filmes de terror mais popular da atualidade, responsável por “Corra!” (2017), “A visita” (2015) e “Uma noite de crime” (2013), etc. Leigh Whannel ficou responsável por argumento e roteiro, com uma visão atualizada para a história clássica.

Depois de planejar os mínimos detalhes, Cecília Cass foge da casa de seu abusivo e rico marido, Adrian Griffin. Mesmo longe dele, entretanto, Cecília sofrerá com crises de ansiedade e pânico. Alguns dias depois, Adrian se suicida, mas ela suspeita que sua morte foi uma armação e desconfia que, de algum modo, Adrian ainda a persegue, sem que ninguém consiga vê-lo.

A história agora deixará de lado a frustração de um homem que torna-se invisível e não consegue reverter essa condição, para ficar ao lado de uma mulher que foge do companheiro abusivo, que preferirá assumir a invisibilidade para se manter perseguindo e oprimindo a protagonista após ser rejeitado por ela. Uma completa atualização temática, levando em consideração o ano em que estamos e a importância de colocar em pauta temas como abuso físico/psicológico, violência doméstica e a suposta “paranóia” feminina. Uma atualização que não serve só ao discurso, mas também ao que o filme se propõe como gênero e roteiro: uma clássica história de suspense.

Suspense clássico pois “O Homem Invisível” se encaixa perfeitamente em duas “regras” dos filmes de um mestre do gênero, o britânico Alfred Hitchcock. Primeiro: “mostre, não conte” (uma ideia que pode ser entendida como essencial para qualquer produto cinematográfico). Um exemplo disso é que nós não vemos os primeiros abusos sofridos por Cecília, e tampouco é preciso, já que vemos as marcas disso nas ações da mulher (sua fuga planejada), no seu psicológico (a ansiedade causada só de pensar em sair de casa) e em suas expressões faciais e corporais. Segundo, o modo como Hitchcock entendia o suspense, como a tensão gerada entre as ações da protagonista e do vilão, ambas vistas por nós, sem saber qual será o final delas uma vez que se opõem.

Logo no começo do segundo ato, revela-se que Adrian, de alguma forma, está realmente invisível e perseguindo Cecília. Se, por um lado, essa revelação põe fim à discussão do público se Cecília está ou não vendo coisas, por outro, é um elemento poderosíssimo de suspense, pois sabemos que ele está em todo lugar sem que possamos vê-lo. O plano do homem invisível é desacreditá-la e fazê-la passar por alguém instável e violenta como vingança por ter terminado o relacionamento. 

A partir disso, o roteiro irá propor duas viradas (sendo a segunda completamente inesperada) que oxigenam a narrativa e estabelecem novas camadas ao psicológico de Cecília. Um grande furo que acontece pouco antes da primeira virada poderia comprometer toda a história não fosse a habilidade de Whannel na condução de seu roteiro. Sua câmera segue as ações de Cecília a média distância, como se antecipasse o modus operandi do narrador a partir do segundo ato. Um corte específico faz essa transição quando Cecília presenteia James e sua filha Sidney, que a deixaram morar em sua casa para se esconder de Adrian. O plano muda da sala para o fundo do corredor, uma transição imagética e sonora que não representa só uma dinâmica de enquadramento, mas marca a inauguração de um ponto de vista que confirma a presença do homem invisível no quadro, silencioso, observando Cecília. Foi apenas com um corte, algo simples, mas extremamente eficiente e apurado.

Com isso, os enquadramentos se dividem entre o narrador ao lado de Cecília e de dentro do ponto de vista de Adrian. Movimentos que pensamos ser apenas panorâmicas ou tracking shots comuns são, na verdade, o olhar de Adrian, invisível, acompanhando sua ex-companheira. Aí o suspense, a tensão. Sonoramente, o filme faz um eficiente trabalho nos sons diegéticos (que fazem parte da narrativa), acompanhando essas mudanças de enquadramento e distância, entre o que é ouvido por Cecília e o que é escutado por Adrian. Já a trilha musical encontra um lugar comum de filmes de horror, acentuando momentos de tensão e sustos. Seu melhor uso é quando não está presente, respeitando os momentos de silêncio que a narrativa pede. 

A intérprete de Cecília, a mundialmente conhecida Elisabeth Moss, praticamente carrega o filme ao lado de outras atuações que estão ligadas no piloto automático não pela qualidade dos atores, mas pelo roteiro que não lhe dá muitas oportunidades. Moss mostra em seu rosto, no modo de falar e nas expressões corporais, de maneira eficiente, a imagem de alguém que está muito machucada, física e mentalmente, com os abusos do ex. E desse mesmo modo ela transmite bem a mudança entre alguém assustada com a possibilidade de estar sendo assombrada por um fantasma opressor para uma pessoa decidida a provar que está certa.

Se a Universal Studios queria recomeçar o seu Dark Universe depois de um fracasso de bilheteria, ela pode ter encontrado a solução em “O Homem Invisível”: apostar em produções de baixo orçamento entregando-as nas mãos de pessoas talentosas que possam acrescentar originalidade à histórias já tão conhecidas. E, para além disso, criar bons filmes. “O Homem Invisível” é um eficiente suspense hitchockiano em sua essência narrativa e no modo como os personagens são apresentados. As poucas deficiências ou furos de roteiro são barrados pela tensão bem construída pelo diretor Leigh Whannel e pela ótima atuação de Elisabeth Moss. 

“O Homem Invisível” acaba se tornando um importante meio de discussão para os temas que aborda, fundamentando-os sobre um ótimo e clássico suspense, um tipo de filme que faz falta aos cinemas dos dias de hoje em todos os aspectos.

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Vol. 01 - Nº 02 - 2020

O Aspirante

Em seu livro sobre roteiro, Flávio de Campos define seis pontos de vista onde um narrador pode se posicionar; entende-se como narrador, em uma narrativa fílmica, o modo como a câmera e os demais aparatos cinematográficos se posicionam e como captam e moldam a trama.

O narrador, em se tratando do personagem principal, é um recurso que, materializado numa forma de perceber a estória, narra apenas o que o personagem percebe, da forma como ele percebe, e no momento que ele percebe. Assim, esse narrador-personagem não tem poder de antecipar o que vai acontecer, nem de seguir outros fios da trama; portanto, o filme estará condicionado a seguir o fluxo desse protagonista-narrador.

A narrativa em O Cremador (1968), de Juraj Herz, segue o personagem Kopfrkingl, homem de família tradicional (casado, dois filhos), dono de um crematório na Tchecoslováquia durante o período pré Segunda Guerra Mundial –  um típico “cidadão de bem”, poderíamos dizer? –, que sonha em se tornar parte da alta classe da sociedade, almeja ser reconhecido como figura importante, como eram considerados os homem cultos da época. Há pinturas espalhadas por toda sua casa, mesmo que ele não faça ideia de seu real significado.

Ainda no contexto da narrativa, os ideais de Hitler estão em ascensão e sua influência se espalha cada vez mais pelos países vizinhos da Alemanha, e a alta classe – tão desejada por Kopfrkingl – agora começa a se atrair por esses princípios.

O cremador atua como um grande monólogo do protagonista que busca sua própria ascensão, e é assim que o filme se dá desde o primeiro minuto até seu desfecho: as convicções do narrador-personagem traspassam as imagens. Kopfrkingl raramente para de falar, há poucos momentos de silêncio, o que atenua o aspecto eloquente e ganancioso do protagonista, que demonstra necessidade por atenção e se utiliza de seus pequenos poderes e influência para tal. Pequenos poderes porque os personagens secundários com quem o protagonista mais se impõe são os mais próximos – que fazem parte de sua família, ainda que clientes e funcionários do crematório também seja vítimas de seu ego.

A duração e disposição dos planos são conduzidos pelo monólogo e pensamentos de Kopfrkingl; podemos perceber uma ritmização das imagens e do sentido que há dentro do quadro, que está intrinsecamente ligada às falas do cremador, como no momento em que ele chega em casa com novos quadros, bonitos e imponentes, e decide, em conjunto com sua esposa e filha, onde poderá pendurá-los. Junto com o diálogo, há alguns jump-cuts onde vemos Kopfrkingl e sua família em diversas partes da casa, a decidir em qual local os quadros deverão ficar. É isso o que, aqui, podemos chamar de narrador-protagonista.

Não há antecipações, não encontram-se recortes de vida de outros personagens a não ser aquilo que está dentro da cabeça do cremador-narrador-protagonista. Assim, o filme revela-se uma constante linha de raciocínio de uma mente gananciosa que nos mostra um olhar sobre o iminente perigo ditatorial a partir de alguém que está inserido no movimento, e de sua lógica; alguém que pensa e age de acordo com os princípios de um governo fascista.

Há poucos segmentos em que o narrador não está atrelado a Kopfrkingl, e esses acontecem quando o protagonista se encontra com os funcionários do Partido Nazista, que querem que ele também faça parte de seu grupo. Esses personagens são responsáveis pelas maiores mudanças na mentalidade do cremador e, portanto, dentro da própria narrativa. Nesses momentos, a narração assume uma posição paralela ao protagonista. Ou seja, saímos do espiral das inabaláveis convicções da cabeça do protagonista e conseguimos, pela primeira vez, perceber algum espanto diante das falas de figuras mais poderosas que ele. Depois, quando voltamos a mente do personagem, entendemos sua perspectiva daquela conversa.

Esse sistema empregado pelo diretor transforma o filme em uma narrativa pesada e sufocante. Respiramos apenas quando o cremador também o faz, o que é escasso. Junto a isso, há a atmosfera gótica de uma fotografia sombria, ambientes fantasmagóricos e primeiríssimos planos que distorcem rostos e os transformam em o que pode ser comparado a gárgulas.

Junto a loucura que é a mente do protagonista, temos uma figura que se apresenta durante todo o filme: uma mulher trajada com um vestido preto, cabelos longos e escuros, pele pálida e expressão inquebrantável, que sempre se aproxima de Kopfrkingl. A identidade dessa mulher fica para a interpretação do espectador, mas o filme nos dará sugestões para a suposição de teorias.

O cremador é uma viagem pela mente de um personagem que representa todo um país que está acometido pela paranoia da maior ameaça que sua sociedade já viveu, com medo de uma sombra macabra que se aproxima devagar e sorrateira. É também um exercício narrativo que trabalha noções de autoritarismo a partir de seu ponto de vista – egocêntrico e cruel, que se agiganta gradualmente até assumir um estado (irreversível) de psicopatia.

O mais notável em O cremador, portanto, pode estar na percepção de que as convicções e aspirações de Kopfrkingl provavelmente não se concretizariam de acordo com suas expectativas, apesar de suas investidas, por ele estar abaixo na hierarquia do projeto de poder vigente; e no entendimento de que esse, provavelmente, seria a terrível representação da mente de um aspirante a ditador.


O filme não está presente em muitos catálogos de streaming, mas há uma cópia disponível no YouTube com legendas em Português.

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Vol. 01 - Nº 01 - 2020

Entre Hong Kong e Heptapods

Amor à Flor da Pele (Wong Kar Wai)

Hong Kong, 1962. Uma mulher visita um apartamento a fim de conseguir um quarto para viver com o marido. Em seguida, um homem sobe ao mesmo apartamento, passa pela mulher e pergunta, também, se há um quarto para ele viver com a esposa. A senhoria diz que não, mas que, talvez, na porta seguinte, seus vizinhos tenham um quarto vazio. O homem vai até a porta indicada e aperta a campainha. Corta. Até aqui, estávamos condicionados a planos fechados e internamente abarrotados, às vezes emoldurados, dando pouco espaço visível para que os personagens se movimentassem. A cena seguinte é uma montagem paralela das duas mudanças, do homem e da mulher. Continuamos confinados. No plano em que trabalhadores carregam um móvel por um corredor, conseguimos distinguir quatro ou cinco personagens, mas o espaço pequeno e a banda sonora nos fazem acreditar que há muito mais pessoas tentando ajudar. Essas são as cenas iniciais de Amor à flor da pele (2000) de Wong Kar Wai. E isso que aqui, de certa forma, comentei é a mise-en-scène, ou, como chamarei neste texto, a encenação.

A história da encenação nasce junto com a história do cinema. A habilidade de pôr em cena começa com o primeiro plano de todo filme já feito. Quando uma posição de câmera é escolhida, começa o processo de encenar. Se a estratégia continuará, já é outra história. Mas o que podemos ter certeza é que mesmo o filme mais comercial, o mais picotado e mastigado, começa com um plano que foi escolhido pelo diretor ou diretora a fim de nos preparar para algo.

Encenar, para o teórico e crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. é “a arte de colocar os corpos em relação ao espaço e de evidenciar a presença do homem no mundo ao registrá-lo em meio à sua vida”. Oliveira Jr. escreveu um belo livro sobre encenação. Ele faz uma cartografia dos teóricos que a estudaram, apontando suas principais ideias e confabulando ele próprio a respeito do tema. Me interessa especialmente a última parte dessa citação: “registrá-lo em meio à sua vida”. Pois todo filme é sobre a relação de um personagem com o espaço e sobre sua presença no mundo. O mais complicado de uma realização cinematográfica é conseguir filmar a vida de um ou mais personagens. Filmar essa vida é, em curso e em resultado, a encenação.

Em termos mais concretos, encenar é: escolher uma posição de câmera e se ela terá movimento, posicionar os elementos cenográficos em relação aos personagens, dirigir a direção de fotografia a iluminar as cenas em favor do cenário e da subjetividade do diretor(a) e dos personagens, dirigir os técnicos de som a captar aquilo que será mais importante para a cena e para o filme, dirigir os atores a seu modo de interpretar em relação a totalidade do filme; tudo isso para, à priori, controlar o ritmo interno da cena, pensando no ritmo de todo o filme que se formará no processo de montagem.

Eu diria que, além da vida, o ritmo seria outro resultado a se alcançar com a encenação. O ritmo interno de uma cena específica, se estiver em consonância com o das demais, constrói não só a sua própria força, mas também a força de todo o filme. Esse ritmo seria a velocidade com que as coisas acontecem? Até certo ponto sim, mas é mais que isso. Ele é o controle das emoções dos personagens durante a cena. Controle dos gestos e dos olhares. Do andar. Do psicológico. Etc.

Assim se estabeleceu a encenação durante a história do cinema. O filme mudo evoluiu sua linguagem até alcançar perfeição com Aurora (1927), primeira produção hollywoodiana de Murnau. No início do cinema falado é lançado M, o vampiro de Dusseldorf (1931) de Fritz Lang, onde já era possível observar as mais eficientes estratégias de encenação usadas em um filme de suspense assustadoramente atual.

M, O Vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang)

Os anos passam e os estudos acerca da encenação se profundam. Na França, um grupo liderado por Michel Mourlet radicaliza o entendimento de mise-en-scène, propondo limites mais diretos, endurecendo o que poderia se dizer ser um bom filme. Estes eram os mac-mahonianos, críticos e cineastas que frequentavam o cinema Mac-Mahon, em Paris. No saguão do cinema estavam os retratos dos quatro cineastas que eles consideravam serem os únicos a honrar a arte da encenação: Raoul Walsh, Otto Preminger, Joseph Losey e Fritz Lang. Eles diziam que tudo está na mise-en-scène. Mourlet vai defini-la como “uma força, uma tensão, que é condicionada pelo quadro e pela lente da câmera”.

Ao fim dos anos 1980 e o início dos 1990 o cinema passava por uma crise identitária relacionada a um assunto que à primeira vista não estaria diretamente relacionada com a encenação: o realismo. Após passar por uma fase de glória nos anos pós Segunda Guerra Mundial, o realismo foi condicionado ao maneirismo e ao pós-modernismo cinematográfico. A essência se perdeu. O realismo só voltaria ao centro da discussão com cineastas como Tsai Ming-Liang, Claire Dennis, Jia Zhangke, Béla Tarr, Gus Van Sant, entre outros, que nos anos 1990 realizariam filmes que incitariam a pergunta: estaria a encenação desaparecendo?

Mas essa questão não deveria ser considerada em uma perspectiva pessimista ou negativa, pois mesmo com a proposta fílmica desses novos realismos estando distante do que se entendia como encenação, a significância e o sentimento da cena apareceriam de outra forma, seja pelo viés contemplativo (Sátántangó, Plataforma, Vive L’amour) ou pelo sensório (Chocolate, Elefante, Rosetta). Nessas estratégias, a vida não é expressamente dirigida em cena, mas sim espelhada. Para tanto, os longos planos de lentes abertas serviriam para transformar o que entendíamos como ritmo e propor uma nova forma de sentir o filme.

Mas, assim sendo, se não há ritmo, haverá encenação? O problema é que alguns desses filmes se baseiam em significados espaçados demais, apostando num entendimento quase acadêmico de todo e qualquer espectador. Isso também resultaria numa noção de desaparecimento da encenação como antes conhecida.

Outra discussão acerca dessa morte da encenação está também no constante crescimento da produção de filmes hollywoodianos, de enormes blockbusters. David Bordwell vai questionar a desnecessária objetividade da planificação de alguns desses filmes em seu livro Figuras Traçadas na Luz, ao analisar uma cena de diálogo de Jerry Maguire (1996). Ali, são filmados os seguintes tipos de planos para a cena: close em cada um dos personagens, plano conjunto da conversa, planos detalhes de cada um dos personagens. Esse sistema objetivo, de acordo com Bordwell, acabaria com a possibilidade de imprimir significado à cena, como se bastasse apenas contar uma história o mais rápido possível, sem sentimentos e sensações, ao espectador.

Mas ainda há quem tente, mesmo com todas as reutilizações e reimaginações da mise-en-scène, utilizá-la de maneira subjetiva e sincera em meio essas duas vertentes. Abbas Kiarostami e seu Gosto de Cereja (1997) trazem ao cinema contemplativo um desdobramento: um filme cujo ritmo é pautado pela pulsação subjetiva do personagem principal. Em uma planificação simples e eficiente, permanecemos em grande parte das sequências condicionados a um jogo de planos e contra-planos de diálogos, estratégia que encontrará lastro no estado emocional do Sr. Badii, o protagonista, um homem que procura alguém para lhe assistir em seu suicídio. Ora, como traduzir isso em filme? Não há uma redenção em jogo, não há uma história de superação. O que Kiarostami filma, aqui, é uma busca que parte da convicção de que não há nada mais a se fazer neste mundo. Quando um trabalhador questiona Badii de sua decisão suicida e tenta convencê-lo do contrário, Badii responde que aquele homem pode até entender sua dor, mas jamais será capaz de senti-la. De igual modo, nós nunca conseguiremos senti-la. É por isso, provavelmente, que o filme nos confina ao carro de Badii, aos diálogos que ele traça com homens que irão ajudá-lo ou não, e a sua busca por dar fim a si mesmo. Mas mesmo sem uma remissão, ao final, Kiarostami ainda nos deixará com uma dúvida.

Gosto de Cereja (Abbas Kiarostami)

Há um ritmo em Gosto de Cereja que o diferencia dos demais exemplares dos novos realismos, pois ele aposta no personagem e traça cada plano pensando nele, por e através dele. Essa é sua estratégia mais eficiente.

Claire Dennis aposta no sensorial para construir Bom Trabalho (1999), se utiliza do espaçamento da história e dos significados de maneira a deixar símbolos que sempre nos lembrem o que está acontecendo: aqui, temos uma história de hierarquia, ciúmes e repreensão. Um capitão da Legião Estrangeira tenta proteger um soldado prodígio de um sargento nocivo. Dennis investe os sete minutos iniciais jogando com o fluxo de sentimentos das cenas antes de fazer o enredo andar de fato, e quebra a expectativa de um filme sobre militares quando inicia com uma cena empolgante e dançante numa boate em Djibouti. Isso se revelará essencial, pois já nos apresenta como se dará a encenação durante todo o filme. Temos uma planificação que exalta os corpos filmados dos soldados, conflitos narrativos que encontram seus maiores embates em olhares trocados, um heroísmo não espetacularizado e uma disputa entre capitão e sargento que às vezes é simbolizada por uma partida de xadrez ou de sinuca. Dennis filma a repreensão de sentimentos dos personagens; amizade, homoafetividade, religiosidade. Por encher a história com esses símbolos, o filme não perde o ritmo proposto pela diretora e, portanto, não perde encenação.

Há muitos filmes que podem ser considerados parecidos com Bom Trabalho, mas a diferença é que, aqui, a diretora não está satisfeita em espelhar a vida, filmando planos longos e abertos que emulam o cotidiano. Ao tentar fazer isso, muitos realizadores apenas conseguem filmar o insuportável, o que poderá ser (ou não) bem recebido em alguns festivais ou circuitos fechados. Claire Dennis, no entanto, dirige sua subjetividade e a subjetividade de seus personagens.

Bom Trabalho (Claire Denis)

Alguns realizadores darão atenção especial à aspectos técnicos específicos de uma produção. O som, por exemplo, sempre fez parte da encenação. Há construção de encenações ontológicas cujo sucesso dependeu essencialmente do desenho sonoro. Em Daunbailó (Jim Jarmusch, 1986), numa das partes da fuga do personagem de Roberto Benigni, o personagem se encontra sozinho, abandonado pelos seus companheiros; no minuto seguinte, a câmera permanece em Begnini, amedrontado, enquanto ouvimos a floresta, o rio, os cachorros latindo, os policiais se aproximando, até passos mais intensos serem ouvidos e seus companheiros retornarem para ajudá-lo. No conhecidíssimo Vá e Veja (Elem, Klimov, 1985), por pelo menos meia hora a trilha sonora é prejudicada por uma bomba que cai próximo ao protagonista, e ouvimos durante todo esse tempo um som distorcido e irregular, que vai retornando ao normal aos poucos, com um zunido constante.

Pode soar clichê falar que a obra da cineasta argentina Lucrecia Martel é pautada por construções sonoras muito planejadas, mas não há como escapar de referenciá-la quando a encenação é movida e tão fortificada por um único elemento. Em A Mulher Sem Cabeça, lentes fechadas colam a protagonista Vero aos locais por onde ela transita, tornando-a indissociável da história que a persegue. Em um momento de distração ao volante, Vero bate com seu carro em alguma coisa. Na batida, ela machuca sua cabeça, mas ignora o que atropelou e vai embora. No momento da batida, começara a ocorrer uma mudança na subjetividade sonora da personagem, causada tanto pelo trauma físico, quanto pelo psicológico. Será que ela matou alguém? A dúvida é mostrada pelo silêncio e pela passividade de Vero, pelos inúmeros planos em que ela está de costas, pelos sons que hora estão longe, hora estão perto,às vezes distorcidos, às vezes com um zunido baixo e constante. Essas estratégias fazem pulsar o psicológico de Vero, fazem pulsar a sua vida durante o período em que o filme se passa.

A Mulher sem Cabeça (Lucrecia Martel)

Dennis Villeneuve, diretor atualmente nas graças do mercado de Hollywood, após impulsionar sua carreira com Incêndios, em 2010, demonstrou aos executivos americanos que poderia dirigir filmes de grande orçamento com eficiência. Fez em sequência Os Suspeitos (2013) e A Chegada (2016).

Expressar suas idéias em produções de grande orçamento do mercado americano não é algo fácil, muito menos fazer de um filme que chega quase pronto em suas mãos um filme verdadeiramente seu. Há relatos de produtores e executivos que ficam 24 horas por dia no pé de um diretor para que determinado filme não saia dos caminhos pré-determinados pelo estúdio.

Em seu livro Esculpir o Tempo, Andrei Tarkovsky diz que aquele diretor ou diretora que faz um filme comercial para só depois fazer o seu filme pessoal, na verdade, nunca vai fazer o filme pessoal. Levando isso em conta, fazer A Chegada deve ter sido um feito e tanto para Villeneuve. Nele, a encenação é emocional e fisicamente interligada ao enredo, indissociavelmente. Resumindo, algumas naves alienígenas pousam na Terra em diversos pontos do planeta e o governo americano chama a linguista Louise Banks e o cientista Ian Donnely para ajudá-los a estabelecer contato com os seres que chamaram de heptapods. Quando consegue desvendar e compreender a linguagem desses seres, Louise explica que o modo de escrita daqueles aliens é circular, eles não escrevem uma sentença de modo gradual, mas de uma única vez; é como se tentássemos escrever uma frase com as duas mãos, movendo-as simultaneamente, já sabendo exatamente o que escrever, do início ao fim, e o tamanho da frase. Mais tarde, entendemos que este tipo de linguagem também está ligada ao modo como os heptapods conhecem e percebem o tempo: eles não vivem sua vida um dia após o outro, mas toda ela de uma vez, sentindo tudo que sentirão durante toda sua extensão, sabendo o que acontecerá em todos os momentos dela.

Desde o começo desse A Chegada, Louise sonha com uma vida em que ela tem uma filha, uma filha morreu de câncer. Inicialmente, entendemos que esse é o passado da personagem. Mas quando Louise começa a se aprofundar na linguagem alienígena, seu companheiro Ian pergunta: “Você está sonhando na linguagem deles?”. Sim, logo saberemos: ela está sonhando com o futuro.

A Chegada (Dennis Villeneuve)

Villeneuve transforma esse conceito no princípio da encenação de seu filme. Desconfiamos desde o início que Louise é uma personagem carregada pelo trauma de perder uma filha, percebemos a solidão e a soturnidade que ela carrega consigo e como isso afeta os ambientes e as ações que nos são mostradas. De início, a chegada das naves espaciais não é espetacularizada, acompanhamos Louise caminhar pelas notícias e suas reações como se fossem apenas mais um dia comum em sua vida. Quando Louise é chamada pelo governo e adentra a um novo mundo, Villeneuve nos mostra a personagem desfilando, reagindo aos poucos as novas informações. Deixamos de estar ao seu lado para estar ao lado da situação. O que nos mantém presos ao subjetivo de Louise são as constantes visões de sua filha. Estamos vivendo o círculo de sua vida sem saber. Assim como ela, que sonha na linguagem dos alienígenas a medida que a compreende, nós também absorvemos a encenação ao mesmo tempo em que aprendemos a escrita/linguagem dos heptapods pelos olhos de Louise, principalmente porque Villeneuve filma a partir do que cada cena pede, a partir do que cada situação exige da câmera e do som – como na sequência do primeiro contato com a nave, onde muitas coisas são filmadas com lentes abertas que distorcem a imagem, tornando tudo ora maior, ora esquisito, estranho, enquanto o som passa de uma trilha musical soturna ao silêncio perigoso para potencializar a experiência da sensação de adentrar um lugar, um mundo, completamente desconhecido.

Nenhum estilo é melhor que o outro. Propostas são diferentes e cabem a diferentes públicos. Há quem acredite na morte da mise-en-scène, no fim da encenação, mas talvez seja, ainda, necessário questionar essa sentença. Afinal, mesmo quando filmes parecem desprovidos de tantas estratégias de encenação, não é exatamente ela que nos faz lembrar, sutilmente ou não, que estamos diante da vida em movimento de uma personagem?

Se morrer a encenação, como voltaremos a sonhar, vez ou outra, nessa linguagem que, apesar de tão distinta da que utilizamos no dia-a-dia, nos permite experimentar mistérios (do mundo, da vida e do tempo)?