Categorias
Vol. 03 - Nº 05 - 2022

O corpo e o som: relação e interação na contemporaneidade

2001: Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968)

As relações entre corpo e som perpassam muitas vertentes: biológica, comportamental, filosófica, acústica, psíquica, e muitas outras. Os estudos que correlacionam corpo e som tem seu ponto de partida na gestação, onde começamos a perceber o outro – a mãe – através de como ela ressoa. O mundo nos aparece, antes de tudo, pelo som, que é a primeira forma e, talvez, a mais transversal pela qual temos acesso ao mundo no qual vivemos.

Pesquisas que dizem respeito ao som sempre foram relacionadas ao sentido da visão, como encontramos em ensaios e pesquisas científicas de um passado recente, onde som e audição não se dissociam da visão, tratados como um só sistema. Por ser abstrato e, por vezes, denso em sua própria existência, é que muitos fatores sobre o entendimento do som passaram despercebidos durante tanto tempo.

A associação que o senso comum ocidental faz a respeito de que, para compreender o som, é preciso saber ler e escrever em notação tradicional, partituras e estruturação harmônica musical, limita muito o acervo e acesso ao conceito tão abrangente do que de fato compõe o som. Resumir som apenas ao fazer musical nos traz a impressão de que som é pura e simplesmente organização de alturas em um espaço limitado de tempo.

Um dos equívocos mais latentes entre pesquisadores do som e, especificamente, música, é a análise de conceitos outrora considerados musicais e sonoros, que na verdade pouco tem de documentação sonora – o que faz com que a falta de tato para este tipo de pesquisa tenha muitos pontos sem nós. Exemplo disso são análises de letras de música ou de contextos socioculturais e históricos que levam em consideração não o som ou sua manifestação e manipulação, mas sim os detalhes que complementam a execução musical e sonora em si. Analisa-se muito mais o contexto externo do que o som propriamente dito.

A distinção de áreas de interesse nas pesquisas também é caminho denso, já que somos expostos ao som desde antes do nascimento, e os determinantes que separam as áreas de estudo confundem-se ou misturam-se de diversas maneiras. Antropologia, estética, artes, literatura, história… O som passa por diversos contextos e essa associação influencia diretamente o produto final da pesquisa.

Outras vertentes de pesquisa em som relevantes nas últimas décadas são as interações e desenvolvimento de interfaces sonoras para além da utilização do som em formato musical e de entretenimento, como a ecologia acústica (soundscape ecology), que visa compreender os sons em sua forma natural, ou seja, a ambiência sonora em seu contexto de origem, seja geológico ou antropogênico. Em resumo, estuda o que as paisagens sonoras entregam e como influenciam nossa existência enquanto indivíduos biológicos e sociais. 

Onde estamos nós enquanto sujeitos que produzem, vivem e absorvem o som? Quais interpretações podemos construir de nosso papel no processo de assimilação desse fenômeno? 

Identidade psíquica do corpo enquanto sujeito sonoro

O corpo é, antes de mais nada, nossa maneira primária de ter contato com nós mesmos enquanto indivíduos, com outros indivíduos e com o meio que nos cerca: é através do corpo que conhecemos outros corpos e a relação entre eles e o mundo que os cerca. É no corpo que se encontram as regras, valores e normas da sociedade no qual este se desenvolve.

Para as artes da performance e, ainda, mais a fundo na questão sociológica, o corpo representa o que somos e nos identifica enquanto seres sociais: gênero, etnia, sexualidade, traços culturais que são adquiridos de acordo com o desenvolvimento de cada um em seu próprio contexto… Além disso, é alvo de redescobertas em relação a nossas capacidades cognitivas e o ambiente ao nosso redor, o que estimula a criação de novas perspectivas e ambientes que são aproveitados não só pelo deleite artístico em si, mas que também dá a luz a reflexões políticas, discussões sobre a existência humana do ponto de vista natural (biológico) e também influencia no desenvolvimento de novas tecnologias em vários âmbitos, como o da inteligência artificial e engenharia genética.

Durante o período clássico da arte, o corpo era interpretado e representado como algo perfeito, referência ao celestial. O maior exemplo disso é a ideologia grega, onde os corpos refletiam os ideais da religião vigente na sociedade da época. As esculturas mostram os objetivos perfeitos da sacralidade que o corpo significava naquele momento. A partir das vanguardas dos anos 1920’s, a centralidade do corpo sofre impactos relevantes, onde passa a ser ele o foco da obra, com indagações que perpassam toda a pluralidade de sua existência e transfiguração enquanto integrante ativo e subjetivo da sociedade, da natureza e de sua própria constituição: o corpo agora é organismo vivo e protagonista de si mesmo.

Crimes do Futuro (David Cronenberg, 2022)

Outra mudança notável é a descentralização do corpo que representa o artista que o cria; o corpo agora passa a ser alvo de indagações sociais, culturais, políticas e existenciais que ultrapassam a individualidade de quem o cria.

A performance também traz o corpo em sua existência híbrida, seja no teatro, na dança, nas interações das pessoas com o meio em que vivem e com a tecnologia; em artes audiovisuais como a videoarte, que surgiu na década de 1960 como antítese das artes comerciais e suas relações com novas perspectivas de existência. A partir dos anos 1920 ‘s, a relação entre arte e tecnologia cresce e se ressignifica com uma velocidade imensa.

Corpo e arte sonora

Em arte sonora, a relação  entre arte e tecnologia se deu, de certa forma, pela evolução dos campos de conhecimento do desenvolvimento acústico e psicoacústico do som e o aumento no leque de possibilidades da produção e manipulação sonora através de meios eletrônicos. A partir disso, surgiram vários dispositivos que nos permitiram a gravação e geração de sons sem a exigência de maior aporte contextual e histórico para fazê-lo: eram pura e simplesmente sons. Essa mudança nos trouxe um espectro que viabilizou inúmeros novos modos de percepção e recepção sonora. 

Se agora podemos registrar o som, podemos substituir e modificar a performance, rever o significado de reprodução mecânica do som (e da música), assim como o que de fato remete à performance sonora em si e o conceito de escuta, que outrora estava intrinsecamente conectado ao ato da performance. O que antes era possível apenas em aglomerações e espaços públicos, onde ocorriam os concertos e apresentações, agora é viável através dos meios eletrônicos de reprodução sonora em espaços domésticos, o que nos traz uma nova categoria de escuta: a escuta individualizada. Além disso, os modos de escuta tornam-se parte do processo criativo da obra – não resumindo-se apenas a performance, e o espectador passa a ser parte crítica e crucial da obra, pois agora a recepção sonora é parte do processo cultural da arte sonora. 

Sound of Violence (Alex Noyer, 2021)

A tecnologia aqui atua na modificação e criação de novos processos de percepção do som, onde agora o contexto histórico e cultural não é mais definidor, e a reprodução sonora é o centro da recepção do som. Não precisamos mais justificar – por meio de performance e cenário – o fazer sonoro, já que podemos executar e manipular o som através de meios eletrônicos em qualquer lugar que possibilite acesso aos recursos necessários. O som agora passa a ser matéria prima, sem que conceitos musicais sejam considerados e sequer cogitados ao pensar a obra. Para o artista, a manipulação dos meios eletrônicos e do som é suficiente para que se pense arte, o que ultrapassa o conceito do século anterior (XIX) e nos traz uma dimensão além para os processos de escuta e absorção sonora.

Audição

Audição é um sentimento que nos mergulha no mundo, enquanto a visão nos remove dele.” (David Novak, 2015)

Nosso cérebro percebe e associa os sons ao redor, e os compreende para entender o ambiente em que estamos: é assim que se dá o processo de percepção auditiva em humanos. Esse processo ocorre desde antes de nascermos – a partir do terceiro mês de gestação, quando as vibrações externas passam pelo fluido intrauterino, estabelecendo ali a conexão sensorial entre o feto e o mundo exterior. É nesse momento que a memória auditiva começa a se formar.

Produção, propagação e percepção do som envolvem conceitos físicos, biológicos, artísticos e psíquicos relacionados às faculdades humanas, além de princípios físicos naturais como vibração, frequência, período, velocidade, comprimento de onda, energia, pressão, ressonância, etc.

Quando nos deparamos com novas posturas de escuta, contextualizadas no fazer sonoro contemporâneo, temos em evidência duas questões importantes: a primeira delas é a ressignificação da contemplação da obra de arte sonora, que passa a não depender mais da performance in loco e do performer, e colocamos um novo elemento no processo de execução: a eletricidade.

A tecnologia mediou e reconstruiu a distância entre emissor e receptor de mensagens e obras sonoras, o que tornou possível o rompimento entre a origem e a emissão sonora (esquizofonia). O que hoje nos parece obsoleto foi, na época, crucial para um ponto muito importante na história das comunicações, transmissão e recepção de mensagens (aqui, temos mensagem como algo a ser comunicado, o que engloba também o conceito de obra de arte, visto que arte é também mensagem a ser comunicada), ao ampliar o contato e alcance da escuta, o que transformou, e muito, nosso conceito de ambiência sonora.

Com a alteração na maneira de manipular e perceber o som através da eletricidade – amplificação – a noção de escuta foi modificada, ampliada e inserida em novos aspectos, o que alterou padrões de execução sonora de várias maneiras, como por exemplo na possibilidade de lidar com sons antes inaudíveis, na mudança nos padrões estéticos da voz cantada e no surgimento de novas modalidades de interpretações de obras sonoras e musicais que fizeram parte de outros contextos históricos e culturais. Agora, além de releituras, aqui podemos refazer uma mesma obra através de diversos parâmetros sonoros diferentes.

O Som do Silêncio (Darius Marder, 2019)

Graças a essas mudanças, começamos a conviver com dinâmicas sonoras antes inimagináveis até mesmo do ponto de vista acústico. O meio não é mais empecilho para a execução sonora, e o limite criativo se expandiu de forma exponencial. A escuta passa a ser individual, imersiva. Compreendemos a mensagem enviada, mas o contato com o emissor se torna dispensável: sequer sabemos onde ele está, porque agora o conceito de som independe de sua origem, e pode ser ressignificado de maneiras infinitas.

Isso afeta, por consequência inevitável, a produção cinematográfica, onde as representações outrora impossíveis de serem inseridas numa narrativa tornam-se palpáveis, e muitos sons eletrônicos começam a fazer parte do fazer musical, como efeitos de reverberação e eletrificação de instrumentos. A complexidade das nuances sonoras que passam a ser incorporadas à nossa percepção começa a construir infinitos novos caminhos. Aqui, podemos retomar o conceito de esquizofonia, que pode ser considerado uma ferramenta poderosa para trabalhar sound design em cinema e na arte contemporânea, porque é na distância entre o som e sua fonte emissora (natural) que surgem sentidos não premeditados atribuídos à linguagem artística. Isso garantiu o aporte necessário para a mescla de elementos outrora desconectados (como por exemplo som emitido por baleias ser associado ao som de grilos para a criação de objetos sonoros híbridos em narrativas sonoras).

A função da arte aqui possui muitas variações que antes não faziam parte do espectro: sua função comunicativa expande-se para ambientes mais complexos que independem de contexto cultural vigente, e desvinculam-se de padrões estéticos ou éticos adquiridos. Agora, a arte passa a investir ainda mais na pluralidade da existência humana, unindo, de certa forma, padrões composicionais e de manipulação mistos, tornando o leque de matéria prima dos criadores muito mais extenso.

Os debates entre emissão, recepção e assimilação da obra de arte sonora passam a ser infinitamente mais complexos que antes, o que acaba por tornar essa simbiose ainda mais interessante para todas as partes do processo: esse embate faz parte do aproveitamento e deleite de uma obra de arte e, de alguma forma, faz com que o interlocutor atribua diversos sentidos, de diversas maneiras.

O conceito de corpo em arte contemporânea e, especificamente, como centro e centralizador da obra de arte, do significado de arte sonora desde antes de seu acontecimento e da criação da relação entre arte e tecnologia nos trazem infinitas reflexões. Conhecemos o potencial subjetivo e protagonista de nossa própria existência, e sua influência na existência de outros, que materializa e potencializa as experimentações e transfigurações artísticas e naturais pelas quais as várias sociedades estiveram e estão sujeitas no decorrer da história de sua formação e transformação simbiótica.

Os artistas contemporâneos, a partir dos anos 1920’s, visavam o corpo através de sua infinita capacidade de expressão, sua materialidade palpável e subjetiva e, ainda, pelo desenvolvimento das técnicas pós revolução industrial – com a evolução da tecnologia – que fez parte de diversos âmbitos do cotidiano. Arte e tecnologia sempre estiveram relacionadas, quer seja através das artes visuais, performáticas ou sonoras, quer seja em outras manifestações da existência humana, guiando os conceitos e comportamentos de escuta e construindo a história do som como matéria-prima pura, e dissociando a consciência da audição dos outros sentidos.

Musicista formada pela UFES e uma das idealizadoras do podcast "Terrorias da Conspiração", atua como sound designer, arte educadora e é especializada em Arte e Tecnologia e Produção Musical.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.