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Vol. 01 - Nº 02 - 2020

Um filme de verão: entrevista com Jô Serfaty

Jô Serfaty é cineasta e roteirista, Mestre em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, com a defesa da dissertação “Periferias em movimento; notas sobre as margens no cinema contemporâneo”. Começou no cinema trabalhando na  montagem do filme Brasília 18% de Nelson Pereira dos Santos. Desde então, dirigiu e roteirizou cinco curtas -metragens: Confete (2012) e A Ilha do farol(2017), compartilhando a direção com Mariana Kaufman; Peixe(2013) com Diogo Oliveira; Sobre a mesa(2015) e co-direção do curta Imóvel (2016) de Isaac Pipano. Os curtas se lançaram no desafio de experimentar linguagens híbridas, mesclando o documentário e ficção.

Seu primeiro longa-metragem, Um filme de verão, estreou na Mostra Tiradentese recebeu o prêmio Helena Ignez 2019 para a montadora Cristina, oferecido pelo Júri da Crítica a um destaque feminino da Mostra. Ganhou seis menções honrosas no festival de Brasília (2019), Doclisboa (2019), Festival internacional de Mar del Plata na Argentina(2019), Janela Internacional de Cinema (Recife, 2019). O filme foi/será exibido em trinta festivais pelo mundo entre 2019 e 2020.

Seus trabalhos já estiveram no Lincoln Center (NY), Gotemberg Film festival (Suécia), Documenta-Madrid (ESP), Edimburgo Film festival (Escócia), entre outros. Também atuou em projetos de cinema e educação na rede pública e hoje é professora de direção da Academia Internacional de Cinema (AIC). Foi uma das programadoras responsáveis por realizar a primeira mostra da cineasta Claire Denis e Jia Zhang-ke no Brasil, que contou com a presença de ambos.

Atualmente, Jô Serfaty desenvolve o roteiro de uma série de ficção científica, “Sistema Solar”, a quatro mãos pela sua produtora Fagulha Filmes. E, junto com Isaac Pipano, escreve “SELVA”, o roteiro de seu novo filme de longa-metragem.

Photo by Manoela Campos

Jô, sua carreira como cineasta já vem acontecendo há alguns anos, você já realizou, entre roteiro e direção, cinco curtas e agora está no caminho para distribuição de Um Filme de Verão, seu primeiro longa-metragem. A pergunta pode parecer genérica, mas acho que tem cada vez mais sentido em tempos onde a cultura tem sido tão maltratada nesse país: por que o Cinema?

Eu acredito agora, mais do que nunca, que o cinema e a arte têm o poder de nos orientar na direção de uma lógica de produção de vida, nos projetar em relação ao futuro e construir sentidos e imaginários para além daquilo que se manifesta na realidade concreta. Pode parecer contraditório, mas eu acredito que diante de um projeto de violência real e simbólica, sustentada por um projeto negacionista da ciência, da arte e da cultura é muito importante pensar como o cinema pode abrigar não só ideias e revindicações, mas também fazer com que as pessoas criem o mundo que desejam e imaginam.

Apesar disso, seria ingênuo dizer que o cinema pensado desta forma diminuiria esta condição abissal que nos põe entre um dos países mais desiguais do mundo em termos sociais, raciais e de gênero; não, não diminui, mas produz outras sensibilidades que nos permitem escapar de um modelo binário, racializado e branco-heteronormativo. São filmes, falas, corpos que convocam outras cosmovisões, sejam estas queer, afrofuturistas, ameríndias, libertando certas formas de representação/figuração do confinamento de cativeiros estéticos¹ (CINTIA GUEDES) e da lógica da transparência aprisionadora. Só que este processo não pode ser feito sobre o domínio de quem sempre deteve o poder de produção das narrativas, imaginar não pode ser apenas privilégio de uma classe social e racial. Este problema está estampado para nós, o que me faz pensar que estamos passando por um momento pedagógico. Um momento que requer um outro estado de escuta, observação e uma prática vinculada a engajamento ético. Um engajamento que me põe a reconhecer meus privilégios, entender, por exemplo, o lugar que ocupo como mulher branca de classe média e universitária na sociedade brasileira. Este reconhecimento me leva a ter uma maior consciência diretamente na produção de imagens que estou compondo, na minha mediação com o mundo, nas relações de poder imbricadas na construção das imagens. Este momento pedagógico é um processo de profundo aprendizado, acho que ainda estamos entendendo a como lidar com esses efeitos. De alguma forma, com o cinema, tenho aprendido que não temos como dar ré e precisamos produzir rotas de fuga para explodir os cativeiros deste mundo patriarcal e neocolonial. E, quando me refiro ao cinema, não falo só da produção dos filmes, mas dos espaços de formação, dos debates, pesquisas e congressos, escolas populares de cinema, como a Escola recém-criada por Lincoln Péricles no Capão Redondo. Neste sentido mais amplo, o cinema pode ser um instrumento desestabilizador deste status quo, criando outras condições de possibilidades para emergir espaços de escuta, sensibilidades e sonhos esmagados, histórias apagadas, alianças imprevisíveis, que antes não se comporiam se não fosse através do cinema.

Boa parte dos seus curtas são parcerias com outros realizadores, o que exige que o projeto em si tenha mais importância que as pequenas vaidades de um autor, por exemplo. Acredito que realizar e assinar um filme em parceria com alguém pode ser uma grande experiência de linguagem se essas duas pessoas têm a obra como foco principal, mais até que suas próprias idéias e conceitos de cinema. Esse aspecto da produção cinematográfica tem sido muito corriqueiro no cinema brasileiro contemporâneo e tem dado resultados interessantes que vão de As Boas Maneiras, da Juliana Rojas e do Marco Dutra ao famosíssimo Bacurau, do Juliano Dornelles e do Kleber Mendonça Filho. Como esse aspecto de produção colaborou na construção da sua linguagem, da sua própria voz enquanto realizadora?

Eu acho que o cinema insiste demais nesta política de autoria. Na verdade, é uma forma de individualizar a obra que foi realizada coletivamente. Desde o meu primeiro curta Confete, realizado com a Mariana Kaufman, não acredito que deixei de ser autora, porque compartilhamos a direção do filme. Nessa parceria, encorajamo-nos a arriscar ainda mais nas escolhas estéticas do filme. Como era o meu primeiro curta, talvez sozinha teria recuado em algumas escolhas. Essa ideia de que o diretor está dominado de certezas quando chega no set é uma falácia e, se isso existe, é ruim para todo restante da equipe que age subalternizada no processo de filmagem. Meus processos requerem uma troca, uma negociação, uma partilha, para mim este é o tesão do cinema: saber escutar os que compartilham o processo do filme comigo. Esta metodologia me deixa menos autora? Eu não acho. Para mim, revela o caráter coletivo do Cinema e acaba por não invisibilizar as vozes e os desejos da equipe que está trabalhando para o filme. Essa dimensão coletiva se deu de forma mais radical ainda em Um filme de verão. O roteiro é uma criação coletiva já desde o princípio do projeto. Logo, entendemos que esse coletivismo não se daria apenas no roteiro, por isto, antes criamos um projeto chamado Diário de Férias (comento com mais detalhes abaixo). O caráter colaborativo reverbera no processo e ressoa na forma do filme, se estruturando como um mosaico ou uma bricolagem. Acredito que esse filme não poderia ser concebido de forma diferente. De modo geral, como você bem citou, grandes cineastas como Kleber Mendonça Filho e Juliana Rojas têm encontrado na parceria uma forma de misturar linguagens e tornar nosso próprio processo menos previsível. Isto se dá porque eles não sentem nenhuma ameaça a ideia de autoria, entendem o cinema como um modo de partilha de mundos, de construção de amizade, um espaço para produzir pontes e conexões que renovam nosso olhar para o mundo. Neste sentido, essas alianças só fazem bem para o cinema, o caráter de se desviar deste estatuto moderno do autor, solitário e ego-destrutivo, e afirmar mais o seu caráter coletivo e convidativo. Talvez este deslocamento implique o autor, a autora ou a equipe a reconhecerem suas falhas menos do que suas certezas.

Cena de Um filme de verão

O curta A Ilha do Farol, dirigido por você e pela Mariana Kaufman, soa muito como um tratado arqueológico onde a imagem, ou melhor, a ausência dela, constitui também a perda de uma memória. É como se aquela linguagem que o filme afirma ter se perdido com a tal ilha se tornasse um grande mistério cujas marcas, agora, só se revelam como souvenires marcados pelo tempo em nós. Já Um Filme de Verão parece querer responder a isso de alguma forma, porque a linguagem pulsante e viva desses jovens protagonistas (e a imagem que se faz dela) parece sempre apontar para algum futuro, como se, desde já, esses corpos jovens e vívidos projetassem e guardassem, no filme, aquela linguagem que se perdera em A Ilha do Farol. Como é, pra você, enquanto realizadora, essa relação entre Cinema e Memória?

Esta pergunta é muito boa. Nunca associei desta forma os dois filmes, mas faz muito sentido. O curta a Ilha do farol, dirigido junto com a Mariana Kaufman, propõe uma viagem anti-aventura, ou seja, não se estrutura como um arco de derrota e superação, como se via nas histórias de exploração e desbravamento das terras indígenas no Brasil. O filme procura evocar a chegada dos invasores portugueses vindos de caravelas ao adentrar o Mar pela Baía de Guanabara, habitada no sec XVI por Tamóios e Tupinambás. Mar por onde também atravessou o tráfico do Atlântico de navios negreiros no sec XVIII. A proposta do filme foi recontar lapsos dessas histórias, reimaginando fatos esquecidos e ocultados por uma certa história oficial da cidade do Rio de Janeiro.

O fio condutor dessa narrativa é uma família interracial que se lança em barco para ir rumo a Ilha do Farol, a uma promessa utópica, ao futuro. O filme brinca com as temporalidades: o presente dá espaço para a família à deriva, o passado são histórias fabuladas escritas nas cartelas e o futuro aparece na imagem da ilha que não se alcança. A junção destes tempos deflagra um filme sobre o fracasso de uma viagem, sobre a fraude do passado que impossibilita o tempo correr para o futuro.

Neste sentido, a memória não é uma gaveta que se abre, onde o passado encontra-se sistemático e organizado. A memória é cíclica, é como um mar difratário, não se segue linear. Me lembra a definição de Edóuard Glissant sobre o mar refratário do Caribe: “O mar do Caribe, um mar que se diferencia do mediterrâneo por ser um mar aberto, um mar que difrata, ao passo que o Mediterrâneo é um mar que concentra. Não é apenas um mar de trânsito e passagem, mas um mar de ‘encontros e implicações’”. Essa ideia está de alguma forma no curta A ilha do Farol, pois a memória no filme não se articula linearmente, é como o mar difratário. Surge através das cartelas recontadas do passado e fabulando o presente no fluxo dessa viagem, onde não se chega a lugar nenhum.

Um filme de verão se instaura no presente. A matéria do filme é o cotidiano e a manifestação do imaginário. O filme extrai das vivências e das relações afetivas sua poética. Mas, ainda que seja o presente, não é o presentismo, uma condição que os impede de se mover para outras possibilidades. Nos interessava construir um espaço de produção de desejo, ativando as potências vitais dos autores-personagens e, nesse caminho, não os encerrar em molduras prévias e modelos de representações fixas, mas produzir imagens que enunciassem algum movimento. Como rastros que escapam à captura, respeitando, assim, o direito a opacidade (GLISSANT), o direito de não ver e nem revelar tudo da pessoa filmada, desviando-se de um olhar colonizador, classificatório e hierarquizante que tende a criar molduras totalizantes e limitadoras. Nessa direção, eu acredito que a memória não se manifesta como um passado encapsulado e fechado, mas são fragmentos e rasuras. Fragmentos, por exemplo, encarnados no corpo de Caio, quando canta os cânticos da umbanda, atualizados na performance cênica. Na presença da avó no terreiro, uma constelação de imagens: rastros que encontram pousos no presente.

Essa juventude que Um Filme de Verão consegue capturar tão bem também é muito cheia de identidade e personalidade, o que faz com que a imagem que se constrói dela dentro do filme contextualize muito bem essa inquietude do corpo jovem nesse mundo que jamais consegue acompanhar ou entender o turbilhão de coisas que acontece em um corpo adolescente. Dito isso, como foi o processo de pesquisa e aproximação com esses jovens e como eles contribuíram diretamente para a construção de Um Filme de Verão?

Antes de encontrar o recorte de Um filme de verão, conheci os personagens do filme numa escola pública em Rio das Pedras, favela localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quando fui professora de cinema no projeto “Imagens em Movimento” durante um ano letivo. Ao voltar do intervalo das férias de julho, propus aos alunos uma tarefa que consistia em narrar as vivências das férias. Os alunos contaram pouco, reclamando da falta do que fazer durante esse tempo. Ocupavam os dias com os serviços domésticos para ajudar as famílias em casa e navegando pela internet. Raras eram as vezes em que saíram do bairro, pois o bilhete único, fornecido pelo Estado para o acesso ao transporte público não funcionava neste período de recesso, apenas durante as aulas; logo, não conseguiam se locomover pela cidade justamente quando tinham tempo livre para fazê-lo. O bairro é a segunda maior favela do Rio de Janeiro em termos de população por metro quadrado. Também é o berço da milícia, onde funciona o “escritório do crime”. A milícia opera com um regime autoritário e coercitivo que rege e submete 130 mil moradores às suas práticas de poder. Como Junior, um dos personagens do filme, relatou: “Eles ganham dinheiro com o nosso medo”. Diante desse contexto, surgiu o desejo de propor um projeto durante as férias, e daí saiu o “Diário de Férias”, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural. Durante dois meses do verão de 2015/16, sob um calor de 40 a 45 graus, instalamo-nos em um espaço/sala próximo à associação de moradores. O projeto consistia em criar um espaço laboratorial com práticas transdisciplinares para abrigar as experiências sensíveis e estéticas destes quatro adolescentes durante dois meses de férias. Procuramos instaurar territórios relacionais em que as subjetividades pudessem encontrar brechas para sua materialidade, algumas artísticas, outras existenciais. O Diário de Férias foi uma metodologia inventada para abrir espaço para acolher a sensibilidade dos jovens que participaram do projeto. Nesse projeto, eles experimentaram desde práticas de performance até a criação de textos poéticos. Foi uma experiência de imersão criativa. Assim surgiu a vontade de fazer um filme junto com eles, mas convidando-os a fazer parte do processo de criação desse projeto. Do Diário até a filmagem de Um filme de verão passaram-se dois anos. Durante esse tempo entregamos a câmera para eles, mas só quem realmente se filmou foi o Junior, nos apresentando um material incrível que parecia com imagens dos vídeos-performance de diretores experimentais americanos, tipo Bruce Nauman e Samuel Beckett. Nos chamou muita atenção essa composição do Junior, o que nos surpreendeu e nos instigou a criar um roteiro a partir do material produzido.  Nesse período, também passei a frequentar a escola CAIC, onde o Caio me convidara para assistir e filmar os shows de talento e as apresentações de poesia e performance. Então, o roteiro foi nutrido do contato com a produção criativa dos quatro adolescentes. Diante de um mundo de imagens e possibilidades, convidei o Isaac Pipano e Ricardo Flogliatto para elaborarem comigo o roteiro. Ricardo já havia trabalhado no Diário de Férias. Eles trabalharam não só no roteiro prévio da filmagem, mas também colaborando com a tessitura da montagem. Durante a filmagem, o roteiro foi moldado às opiniões e sugestões dos personagens, que contribuíram trazendo ideias e improvisando com diálogos durante a encenação e também com sugestões e palpites no processo da montagem. 

Acho que é importante dizer que, ao longo desse processo, percebemos que não estávamos só interessados nas vidas, mas no que elas criavam para viver. Esse certamente é um elemento que conecta o filme a essa vitalidade que você menciona. Não era, portanto, a condição de falta e escassez daquele espaço periférico – elementos já tão codificados na produção de imagens sobre esses territórios – que nos interessava, mas sim essa dimensão criativa, fabulativa. Essa dimensão atravessava e atravessa os corpos desses jovens, apesar de não estar dada previamente, já que muitas vezes era preciso convocá-la. Por isso acho tão importante sempre mencionar o Diário de férias como espaço de criação e troca que orientou a nossa perspectiva no sentido de afirmar e produzir esta dimensão inventiva desses personagens.

Acredito que o documentário brasileiro tem buscado se aproximar mais (e melhor) da juventude, principalmente da juventude negra e periférica, em suas mazelas, lutas e vitórias. Acho que alguns bons filmes têm conseguido realizar essa aproximação: desde o Últimas Conversas do Coutinho, que me parece ser um passo largo e importante nesse trajeto, passando pelo tema direto do genocídio da juventude negra em Auto de Resistência (Natasha Neri e Lula Carvalho), até filmes mais despojados como o Espero tua (Re)volta?, da Eliza Capai, que se utiliza da imagem de corpos jovens e periféricos para revisitar, com muito vigor, episódios importantes da nossa história política recente. Como Um Filme de Verão contribui com esse processo de aproximação e onde ele se choca com isso? E, ainda, como ele de fato se posiciona nessa discussão?

Acredito que o interesse por retratar essa geração vem também de uma maior participação social dessa juventude periférica na universidade durante os anos do governo do PT e da inclusão digital, que abriram muitas frestas para os jovens vislumbrarem outras possibilidades de vida para além de seu território social. Quando Coutinho propôs realizar o longa Últimas Conversas, a juventude periférica e negra estava entrando nas universidades e se inserindo nos debates políticos. Essa juventude se tornou um ator político, não mais espectadora da história. O cinema passou a se interessar por ouvi-las, porque tornaram-se a prova viva das transformações sociais pelas quais o país estava passando naquele momento, e também por serem diretamente afetados pela violência do Estado, morrendo pelas armas da polícia nas favelas, alvejando o futuro de uma geração inteira; genocídio este que se intensificou com a legitimação dos governos de extrema-direita. Então, acredito que os filmes sobre a juventude – principalmente periféricas – perceberam que esses jovens são corpo-travessia, pois trazem à tona os desejos do presente e as aspirações do futuro. Se eles morrem pelas armas do Estado, o Brasil está matando o direito ao futuro de um país. A pergunta que surge para nós realizadores é: como tratar desse universo tão complexo, que se transmuta a todo momento? Como captar a vitalidade insurgente dessa geração a altura de seus anseios e vivências?

Focando mais nos filmes que você cita, [é] curioso colocar essa pergunta, porque recentemente participei com o Isaac Pipano de um debate virtual sobre o filme [Um filme de verão] com os alunos e professores da UNIFEOB de Fortaleza. Na ocasião, uma professora de Sociologia da Arte, Danielle Cruz, fez uma observação muito boa ao contrapôr Um filme de verão ao Últimas conversas. Ela disse algo que achei interessante: Um filme de verão produz um espaço de intimidade e performance, o que o distingue da abordagem do Coutinho, que se utiliza dos dispositivos de entrevistas e conversas com as pessoas filmadas. Embora saibamos que, para Coutinho, pouco importava se as falas dos personagens continham verdades ou mentiras, mas como eles falavam sobre suas vidas. Nesse sentido, a performance também se torna um elemento importante para construção do discurso.

O que Danielle notou é uma aposta no artifício no jogo cênico em Um filme de verão, a construção de um mundo artificioso e performático para outras camadas e imaginários dessa juventude, bem como a encenação dentro dos espaços domésticos, criando pouco a pouco uma relação de intimidade e proximidade com os personagens. Diferente dos filmes de Coutinho, onde a palavra, o discurso e a voz têm maior centralidade na construção do filme, em um Um filme de verão acreditávamos que o discurso não era suficiente para materializar as subjetividades desses personagens em processo constante de transmutação de si perante o mundo.

Já o longa de Eliza Capai, Espero sua revolta, é um filme importantíssimo por ter a boa pretensão de contar a história do Brasil no momento onde as escolas estavam sendo tomadas pelas ocupações dos secundaristas, afetadas pelo golpe contra a presidente Dilma Roussef. Era o início da derrotada do Brasil pela direita, mas quem narra essa derrota são os jovens diretamente prejudicados pela guinada conservadora no Brasil. Me emocionei muito quando vi o filme, por mostrar os jovens tomando o rumo da história, mesmo que, melancolicamente, saibamos que a história não tomou o rumo deles.

Nesse ponto, Um filme de verão não tem a luta como centralidade. Posso dizer que se aproxima do Últimas Conversas do Coutinho ao se interessar em como esses jovens dão sentido a suas vidas, seja por meio da música, da religião, da amizade, do imaginário. Ambos se atém mais as singularidades das pessoas filmadas e o modo como encontram para performar e narrar suas singularidades. Nessa direção, acredito que Um filme de verão se concentra mais em uma esfera micropolítica, no sentido de extrair do cotidiano e da intimidade a sua poética; o Espero sua revolta procura trazer à tona essa juventude em enfretamento direto com o Estado, disputando um projeto de poder. Acho que são filmes bem complementares, que ajudam a perceber a juventude no Brasil mobilizada por um desejo de futuro, escapando do retrato já tão sobre-codificado dos jovens negros das favelas colocados na moldura da subalternidade, da criminalidade, subjugadas ao determinismo do território periférico onde habitam.

Um filme de verão

Além de tratar sobre o ser jovem, negro/a e periférico/a no Brasil atual, também há uma aproximação com as vivências dentro da escola pública enquanto um espaço diverso de formação e resistência. Podemos citar, novamente, o Espero a tua (Re)volta (Eliza Capai, 2019) e o Eleições (Alice Riff, 2018) como filmes recentes cuja narrativa perpassa tais relações e adentra a essas instituições tão primordiais, ainda que com muitas dificuldades para a educação brasileira. Um Filme de Verão traz justamente a aproximação dos jovens com esse lugar, através principalmente dos laços de amizade, e logo o distanciamento a partir das férias de verão. Neste sentido, como foi o processo de escrita do projeto e roteiro com tal temática?  E, posteriormente, como transcorreu durante a gravação?

Eu conheci Caio, Karol, Ronaldo e Junior através da escola, atuando como professora de cinema, e quis começar o filme nesse espaço e assumir esse elo. De cara, percebi através do Caio, principalmente, a Escola para além da sala de aula, acontecendo nos espaços extra-classe: os encontros no pátio, o almoço no refeitório, os shows de talentos, saraus de poesia e festas juninas, etc. Era ali que conseguiam se encontrar para expressar com mais espontaneidade suas criatividades e as inquietações. Então, começamos a rodar o filme na escola CAIC, Rio das Pedras, e no Andre Malraux, no Leblon. Logo no início entendemos, eu, Pedro Pipano (fotógrafo) e o Guilherme Farkas (som), que era preciso começar a filmar com uma certa distância, para que se acostumassem com a nossa presença estranha. Aos poucos, eles foram nos convidando a entrar nos espaços e a câmera também foi se aproximando dos rostos. Neste espaço da escola, tentamos não controlar muito a filmagem, diferente do momento posterior das férias, onde havia um roteiro com propostas de encenação. Na escola, a proposta era registrar de forma mais documental o espaço e filmá-los mais como um corpo coletivo do que singular. Para nós, era importante enquadrá-los em grupos, nunca individualmente, pois a escola representava um espaço coletivo. Contudo, a escola como instituição não era o foco do filme, mas apenas um tijolo sólido para edificar um espaço grupal e agregador que depois daria espaço a outro tempo – mais ralentado – das férias, diferente do filme da Alice, Eleições, onde a escola é o recorte central, eixo que liga todos os personagens. Eleições estrutura muito bem o microcosmo da escola, reverberando as questões macropolíticas do Brasil. Tanto o filme da Eliza Capai quanto o Eleições são filmes germinados no contexto das ocupações das escolas públicas e, nessa perspectiva, tornam visíveis esse espaço como um campo de disputas políticas e estéticas dessa juventude. Um Filme de verão também foi poroso a esse contexto político emergente, o que logo se vê no prólogo, onde os estudantes estão festejando a vitória do grêmio, uma conquista de representação política que veio por causa das ocupações. No entanto, Um filme de verão sai da escola, pois o que nos interessava era tornar visível a escola como esse lugar coletivo, pulsante e efervescente, para se aproximar dos processos subjetivos que ocorriam durante férias, sufocadas quando dentro da escola.

O roteiro de Um filme de verão foi escrito por Isaac Pipano e Ricardo Flogliato, compartilhado e colaborado por Caio Neves, Karollayne Rabech, Junior Souza e Ronaldo Lessa. O processo de criação de roteiro aconteceu da seguinte forma: após o  Diário de férias – dois anos depois – criamos uma escaleta; apresentamos essa escatela para os personagens no laboratório de encenação orientado pelo Ricardo. Trazíamos as cenas escritas e moldávamos aos improvisos dos personagens. Não partimos de algo já dado, de um modelo de representação emoldurado, mas a ideia era se deixar contaminar pela forma como os quatro imaginavam suas vidas, abrindo espaço para que a sensibilidade deles e disto tivessem um lugar para existir dentro do cinema. Como os jovens não tinham uma relação direta com a violência, para nós era importante não ir por esse caminho. Dessa forma, criamos um roteiro onde cada personagem não tinha um perfil psicológico, mas era com uma linha de força, aberta e fechada ao mesmo tempo. Para cada um deles, desenhamos uma trajetória, onde o personagem saia de um lugar e chegava em outro ao longo da narrativa. Eu gosto de pensar o roteiro deste filme como uma prática de tecelagem, onde a soma dos acontecimentos vai moldando um tapete-quadro, com múltiplos pontos de partida e chegada. Como se os personagens fossem linhas de forças que ora se cruzam, ora desviam, ora se entrelaçam, oram dão um nó, ora produzem uma nova forma, linhas que afetam e são afetadas, pelo mundo e a volta. Nesse sentido, tem a ver com o que a cineasta e pesquisadora vietnamita Trinh T. Min-ha escreve sobre o seu processo: “Em vez de falar meramente de produção de imagens ou de significados, pode-se abordar a fabricação de imagens como uma rede de correntes subterrâneas e contracorrentes: uma manifestação de forças”. Essas forças as quais Trinh se refere não encerram o fluxo das pessoas filmadas, mas são forças que vibram de formas distintas na aliança com outras pessoas, grupos, objetos e escolas, diferenciando-se ao longo do filme.

Não sei se fui muito conceitual mas, na prática, trabalhamos neste caminho. Ocorreram mudanças nas linhas de força da filmagem, como por exemplo a trajetória do Caio. Ele estava em vias de se tornar um pai de santo na Umbanda, mas resolveu, durante um final de semana, migrar para a igreja evangélica. Não havia como não inserir essa transformação no filme. Assim, a tessitura do roteiro era porosa aos acontecimentos, aberta às situações que ocorriam na vida dos personagens, o que nos demandava uma constante negociação. Em uma destas negociações percebemos que o filme precisava convocar uma dimensão mais performática, capaz de convidá-los a experimentar outras alteridades, como foi o caso do clipe de K-pop com a Karol e a cena da mata com o Caio. Tais cenas só foram possíveis quando entrou o financiamento da Ancine, um ano depois da primeira filmagem. Já tínhamos um corte do filme e ficou claro que precisávamos investir na materialização dos imaginários, ou seja, na encenação de performances, para entrelaçar e preencher essa tessitura com outras linhas de força. Só assim o traçado da tapeçaria do filme nos pareceu a altura das vidas filmadas.

Como foi a recepção do filme pelo público nos festivais brasileiros onde ele passou e como você acha que ele pode resistir aos próximos anos (a pergunta inclusive nos olha de volta, porque também serve para o cinema: como resistir aos tempos conturbados de agora e aos que ainda estão por vir)?

A estreia em Tiradentes foi muito emocionante, o público da cidade e do festival foi extremamente caloroso com Caio, Karol, Ronaldo e Junior. Ali, eles entenderam o que significava fazer um filme e aproveitaram o reconhecimento oferecido pelas pessoas, mesmo que brevemente. Aqui no Brasil o filme passou nos principais festivais, tentei acompanhar quase todas as exibições. Ao longo deste ano, ouvimos muitos jovens das periferias manifestarem um desejo de se verem na tela fora do filtro da violência e da miséria fetichista. Muitos se reconheciam nos personagens, se sentiam próximos dos dilemas vividos por eles e se comoviam sensivelmente com o caminho que o filme os levava. Foi interessante lançar este filme no ano da posse do pior presente do Brasil. O cinema estava implicado em dar uma resposta urgente a escalada conservadora da extrema-direita. Com isto, a maioria dos filmes exibidos junto de Um filme de verão se engajavam nesse compromisso.  Em meio a esta produção, Um filme de verão era lido quase como um filme utópico. Considerei estas impressões como elogiosas. Satisfeita que estava por um tempo, suspendendo as pessoas de um estado de letargia e pessimismo sem romantizar uma realidade e produzindo sopros e fôlegos no seio de um abismo, o que me fez pensar que temos que resistir à própria ideia – já desgastada – do que já se capturou como resistência no senso comum. Por isto, acho interessante recorrer a Leda Martins Marques, pesquisadora de performance e artes cênicas, cuja a pergunta lançada no debate sobre o filme do Torquato Neto é muito pertinente para esta conversa. Leda reflete sobre como Torquato se negou a “transformar sua estética em commodities”. E, ainda, lança uma pergunta ao fim da sua fala: Como escapar do precipício, se não inventando também a linguagem?². Colocando no diálogo com a sua pergunta, como escapar deste abismo, se não também reinventando a própria ideia de resistência? Não acho que é uma pergunta a se responder imediatamente, mas acredito na importância desta problematização para suspender as crenças já estabilizadas sobre a produção de imagens que tratam do assunto resistência. Acredito que um processo radical de reinvenção só pode se dar em conexões com outras poéticas e saberes de autoras e autores antes invisibilizados; como de tantas mulheres negras, artistas queers, quilombolas, indígenas, que vem à tona com muita força. Singularidades que desconstroem qualquer ideia fácil sobre resistência, mas que também produzem novos re-encantamentos com o mundo, para continuar existindo neste país assombrado pelo desencanto.  Assim, lembramos que existem outros Brasis, que agem subterraneamente para outras direções e que podem emergir a qualquer instante.

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¹expressão usada pela pesquisadora e performance, Cíntia Guedes no debate de Tiradentes, para se referir as molduras e armadilhas de confinamento na produção de imagem representação das pessoas negras

²palestra sobre o filme de Torquato Neto: https://www.youtube.com/watch?v=OVG8d-Mg_9M


Entrevista realizada durante o período de isolamento social imposto pela Covid-19. As questões foram elaboradas por Gustavo Guilherme da Conceição e Luciana GB. Tradução para o inglês: Letícia Oliveira.

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Vol. 01 - Nº 02 - 2020

Sun Inside: an interview with Jô Serfaty

Jô Serfaty is a filmmaker and screenwriter, Master in Cinema from Universidade Federal Fluminense (UFF), with the dissertation “Periferias em movimento; notas sobre as margens no cinema contemporâneo” [Moving peripheries; notes about the margins in contemporary cinema]. Started working on film editing of the film Brasília 18%, by Nelson Pereira dos Santos. Since then, directed and scripted five short films: Confete (2012) and A Ilha do Farol (2017), co-working with Mariana Kaufman; Peixe (2013) with Diogo Oliveira; Sobre a Mesa (2015) and co-direction of the short movie Imóvel (2016) by Isaac Pipano. The short films launched themselves into the challenge of experimenting hybrid languages, mixing documentary and fiction.

Her first feature film, Sun Inside, premiered at Mostra Tiradentes [Minas Gerais] and received the Helena Ignez 2019 award for the assembler Cristina, offered by the Critics Jury to a female highlight of the event. She won six honorable mentions at the Brasilia festival (2019), Doclisboa (2019), Mar del Plata international festival in Argentina (2019), Janela Internacional de Cinema (Recife, 2019). The film is being exhibited at thirty festivals around the world between 2019 and 2020.

Her works have been at Lincoln Center (NY), Gotemberg Film festival (Sweden), Documenta-Madrid (ESP), Edinburgh Film festival (Scotland), and others. She has also worked in education and film-making projects in the public-schools system and today she is a director from the International Academy of Cinema (IAC). She was one of the responsible for conducting the first exhibition by the filmmaker Claire Denis and Jia Zhang-ke in Brazil, which was attended by both.

Currently, Jô Serfaty is developing a science fiction script for “Sistema Solar” [Solar System] series, by her production company Fagulha Filmes. And, co-working with Isaac Pipano, she writes “SELVA” [Jungle], the script of her new feature film.

Cinematographer Pedro Pipano and Jo Serfaty

Jo, your career as a movie maker is happening for years and you made, between writing and direction, 5 short movies and now is on your way to release your first feature film, Um filme de verão (Sun Inside). The question may sound a little bit obsolete, but I think it still makes sense in times where culture and arts are being so neglected and underestimated here in Brazil, so: Why film maker?  

I believe now, more than ever, that cinema and arts has the power of guide us in the direction of a logic production of life, to project ourselves in relation to a future and to build meanings and imaginations beyond what are the manifestations of our concrete realities. It may seem contradictory, but I believe that when faced with a project of real and symbolic violence, sustained by a project that denies science, arts and culture it is very important to think about how Cinema can harbor not only ideas and demands, but also make people create the world they desire and imagine.

Despite this, it would be naive to say that Cinema thought in this way would reduce this abyssal condition that places us among one of the most unequal countries in the world in social, racial and gender terms; no, it doesn’t diminish, but it produces other sensitivities that allow us to escape from a binary, racialized and white-heteronormative model of life. There are films, speeches, bodies that summon other worldviews, be they queer, Afro-futurists or Amerindians, freeing certain forms of representation/figuration from the confinement of aesthetic captivity¹ (CINTIA GUEDES) and the logic of imprisoning transparency. But this process cannot be done above the domain of who always had the power of creation and production of narratives, imagination cannot be a privilege of only one social and racial class.  This problem is exposed to us, what make me wonder that we are going through a pedagogical moment. A moment that requires another state of listening, observation and a practice linked to ethical engagement. An engagement that makes me recognize my privileges and understand, for an example, the place I occupy as an academic white woman of middle class in Brazilian society. This recognition leads me to have a greater awareness directly into the production of images that I am composing, in my relationship with the world, in the power relations intertwined in the construction of the images.

This pedagogical moment is a process of deep learning, and I think we are still in the process of understand about how to deal with these effects. Somehow, with film making, I have learned that we cannot reverse and that we need to produce escape routes to explode the captives of this patriarchal and neo-colonial world. When I refer to film making, I am not only talking about the production of films, but the spaces for training, debates, research and speech events, popular schools of cinema, such as the school recently created by Lincoln Péricles in Capão Redondo [Rio de Janeiro]. In this broader sense, cinema can be a destabilizing instrument of this status quo, which creates other conditions for possibilities of listening spaces, sensitivities and crushed dreams, erased stories, unpredictable alliances, which would not have been composed if not through cinema.

A significant part of your short-movies are partnerships with other directors and collaborators, which requires the project itself to be more important than the small vanities of an author, for an example. I believe that making and signing a film in partnership with someone can be a great language experience if these two people have the work as their main focus, even more than their own film ideas and concepts. This aspect of film production has been very common in contemporary Brazilian Cinema and has given interesting results ranging from Good Manners (Juliana Rojas and Marco Dutra) to the very famous Bacurau (Juliano Dornelles and Kleber Mendonça Filho). How did this aspect of production collaborate in the construction of your language, your own voice as a director?

I think that Cinema insists too much on this policy of authorship. In fact, it is a way of individualizing a work that is done collectively. Since my first short-movie Confete [Confetti], made in partnership Mariana Kaufman, I can’t believe I stopped being an author just because we shared the direction of the film. In this partnership, we encourage ourselves to take even more risks in the movie’s aesthetic choices. As it was my first short film, maybe I would have backed off on some choices by myself. This idea that the director is dominated by certainties when arriving on set is a lie and, if it happens, it going to be bad for all the rest of the team that is subordinate in the filming process. My processes require an exchange, a negotiation, a sharing, and for me this is the lust of cinema: knowing how to listen to those who share the film process with me. Does this methodology make me less of an author? I don’t think so. For me, it reveals the collective character of film making and ends up not making of the voices and desires of the team working on the film invisible. This collective dimension was even more radical in the film Sun Inside. The script was a collective creation since the beginning of the project. Therefore, we understand that this collectivism would not occur only in the script, then, before creating a project called Diário de Férias [a vacation diary] (comment in detail below). The collaborative feature reverberates in the process and resonates in the film format, structuring itself as a mosaic, a bricolage. I believe that this film could not be conceived any differently. In general, as you well mentioned, great filmmakers like Kleber Mendonça Filho and Juliana Rojas have found in the partnership a way to mix languages ​​and make our own process less predictable. This is because they do not feel any threat to the idea of ​​authorship, they understand film making as a way of sharing worlds, of building friendship, a space to produce bridges and connections that renew our view of the world. In this sense, these alliances are pretty good, deviating the creator from this modern status of the author – solitary and ego-destructive – and further affirming its collective and inviting attribute. Perhaps, this displacement implies the author or the team to recognize their flaws less than their certainties.

Sun Inside

The short-film A Ilha do Farol, directed by you in partnership with Mariana Kaufman, sounds very much like an archaeological treatise where the image – or rather: the absence of it – also constitutes the loss of a memory. It seems like that language that the film claims to have been lost, like an island, has become a huge mystery whose marks, now, only reveal themselves as souvenirs marked by time in us. Sun Inside, by the other hand, seems to want to answer that question, somehow, because the vivid language of these young protagonists (and the image that is made of it) always seems to point to the future, as if, from now on, these young and vivid bodies are projecting and keeping that language that was lost in A Ilha do Farol. How does this relationship between Cinema and Memory happen for you as a director?

This is a very good question. I never associated the two films in this way, but it makes a lot of sense. The short film Ilha do Farol, directed together with Mariana Kaufman, proposes an anti-adventure trip, that is not structured as a bow of defeat and overcoming, as we see in the stories about exploration and indigenous lands exploration in Brazil. The film seeks to evoke the arrival of Portuguese invaders coming from caravels as they entered the sea through Guanabara Bay, inhabited, in the 16th century, by indigenous Tamóios and Tupinambás. Sea through which the slave trade also crossed the Atlantic in the 18th century. The film’s proposal was to retell fragments of these stories, reimagining forgotten and hidden facts by a certain official history of the city of Rio de Janeiro.

The thread that guides the narrative is an interracial family that launches themselves on a boat towards to the Ilha do Farol [a lighthouse island], to a dystopian promise, to the future. The film plays with temporalities: the present is represented by the family adrift, the past is made of fabled stories written on the cards and the future is represented by the image of an island that can never be reached. The combination of these timelines sparks a film about the failure of a trip, about the deception of the past that makes impossible for time to go ahead to the future.

In this sense, memory is not a drawer that opens, where you can find the past organized. Memory is cyclical, it is like a diffracting (diffraction) sea that doesn’t follow a line. It reminds me of Edóuard Glissant’s definition of the refractory Caribbean Sea: “The Caribbean Sea, a sea that differs from the Mediterranean because it is an open sea, a sea that diffracts, while the Mediterranean is a sea that concentrates. It is not just a sea of ​​transit and passage, but a sea of ​​‘encounters and implications’ ”. This idea is somehow in the short film A Ilha do Farol, because the memory represented in the film is not linearly articulated, it is like the diffracting sea. It appears through the retold cards of the past and creates a sense of fable by the present in the flow of this journey, where you get nowhere.

Sun Inside’s narrative is established in the present. The film material is the daily life and the imaginary manifestation. The film extracts its poetics from experiences and affective relationships. But, even in the present, this is not a condition that prevents them [protagonists] to move to other possibilities. We were interested to build a space that would produce desire, activating the vital powers of the authors-characters and, in this way, not enclosing them in previous frames and models of fixed representations, but to produce images with a movement atmosphere. As lines that escape capture, respecting, in this way, the right to opacity (GLISSANT), the right not to see or reveal everything about the filmed person, deviating from a colonized, classifying and hierarchical look that tends to create totalized and limited frames. In this way, I believe that memory does not manifest itself as an encapsulated and closed past, but as fragments and erasures. Fragments, for example, that we can find in Caio’s body, when he sings the Umbanda [a hybrid Brazilian religion] songs, updated in the scenic performance. In the presence of her grandmother in the yard, a constellation of images: tracks that find a land in the present.

This youth that Sun Inside is able to capture so well is also full of identity and personality, which makes the image that is built of it through the film contextualize this restlessness of the young body in this world, that can never follow or understand the storm of things that happen in a teenager’s body. About that, how was the researching process, the approaching with these teenagers and how did they directly contribute to the construction of Sun Inside?

Before find the age cut of Sun Inside, I met the characters of the film at a public school in Rio das Pedras, a favela located in the West Rio de Janeiro, when as a film teacher in the project “Imagens em Movimento” (Moving images) for an entire school year. As returning from the July vacation break, I proposed to the students a task that consisted of building a narrative about their vacation experiences. The students said very little, and complained about the lack of things to do during this period. They had occupied their days with domestic tasks to help families at home and surfing on the web when free time. They barely left the neighborhood, because the transportation ticket, provided by the government of Rio de Janeiro, does not work during the vacation period; therefore, they were unable to move around the city when with time to do so. The neighborhood is the second largest slum in Rio de Janeiro in terms of population. It is also the birthplace of the militia, where the “crime office” operates.

The militia operates under an authoritarian and coercive regime that governs and subjects 130,000 residents to their power practices. As Junior, one of the movie characters reported: “They make money from our fear”. The desire to propose a project, in this context, emerged during the holidays, and then came the “Diário de Férias” (a vacation diary), project that was contemplated by Rumos Itaú Cultural [a financing program that provides funds for the realization of artistic projects. It is sponsored by a private bank]. During two months of 2015’s summer, under a heat of 40 to 45 degrees, we settled in a space close to the residents’ association.

The project consisted of creating a laboratory space with transdisciplinary practices to harbor the sensitive and aesthetic experiences of these four teenagers during their two months of vacation. We tried to establish relational territories where subjectivities could find gaps in their [protagonists] materiality, some artistic, others existential. The Vacation Diary was a methodology developed to build space to the sensitivity of the young people who were part of the project. In this project they experimented from performance practices to the creation of poetic texts. It was a creative immersion experience. This was how we have the desire to make a film together with them, but inviting them to be part of the creative process of the project. From the Diary to the filming of Sun Inside, two years have passed. During that time, we handed the camera over to them, but only Junior really filmed himself, presenting us with an incredible material that was very similar with images from American experimental directors’ performance videos, like Bruce Nauman and Samuel Beckett. This composition by Junior caught our attention, and instigated us to create a script based on the produced material. During this period, I also started attending the CAIC school, where Caio had invited me to watch and film talent show presentations. The script was nourished by the contact with the creative production of the four teenagers. Faced with a world of images and possibilities, I invited Isaac Pipano and Ricardo Flogliatto to develop the script with me. Ricardo had already worked at the vacation diary project. They not only worked the previous script of shooting, but also collaborating with the montage. During filming, the script was molded to the opinions and suggestions of the characters, who contributed by bringing ideas and improvising with dialogues during the staging and also with suggestions and guesses in the editing process.

I think it is important to say that, throughout this process, we realized that we were not only interested in lives, but in what they created to live. This is certainly an element that connects the film to this vitality that you mention. It was not the condition of scarcity of that peripheral space – elements already so codified in the production of images about these territories – that interested us, but this creative, fabulous and imaginative dimension. Dimension that crossed and crosses the bodies of these teenagers, although it was not previously given, it was often necessary to summon it. That is why I think it is so important to always mention the Vacation Diary as a space for creation and exchange that guided our perspective towards affirming and producing this inventive dimension of these characters.

I believe that the Brazilian documentary has sought to get closer to youth, especially black and peripheral youth, in their ills, struggles and victories. I think that some good films have been able to achieve this approach: since Coutinho’s Last Conversations, which seems, to me, to be a long and important step in this path, passing directly through the genocide of black youth in Police Killing (Natasha Neri and Lula Carvalho), even more stripped-down films such as Your Turn by Eliza Capai, that uses the image of young and peripheral bodies to revisit, with great vigor, important episodes in our recent political history. How does Sun Inside contribute to this approximation process and where does it clash with that? And more: how does he actually position himself in this discussion?

I believe that the interest in produce portraits of this generation comes also from a bigger social presence of these peripheral youth in the university academy during the years of the PT (Partido dos Trabalhadores) government, and from the digital inclusion provided by this government, that opened many gaps for young people to glimpse other possibilities of life beyond their social territory. When Coutinho proposed to make the feature Last Conversations, the peripheral and black youth was starting to occupy spaces as universities and political debates. This youth became a political actor, no longer a spectator of history. The Cinema started to be interested in hearing their voices, because they became living proof of social transformations that our country was going through at that time, and also because they were directly affected by the violence of the State, dying by police weapons in the slums, that are always trying to exterminate the future of an entire generation. This genocide intensified with the legitimation of the far-right governments ascension. So, I believe that films about youth – mainly peripheral – realized that these young people are bodies that cross [timeline, the system and their reality], because they bring out the wishes of the present and the aspirations of the future. If they die by State [police] weapons, Brazil is killing a whole country’s right to have a future. The question that arises for us, filmmakers, is: how to deal with this complex universe, that transmutes all the time? How to capture the insurgent vitality of this generation at the height of their yearnings and experiences?

Now, focusing more on the films you mention, [it is] curious to ask this question, because I was recently with Isaac Pipano in a virtual debate about the film [Sun Inside] with students and professors from UNIFEOB [São João da Boa Vista University] in Fortaleza, Ceará. At the occasion, a Sociology of Art professor, Danielle Cruz, made a very good observation when comparing Sun Inside film to Last Conversations. She said something that I found really interesting: Sun Inside produces a space of intimacy and performance, which distinguishes it from Coutinho’s approach, that uses the devices of interviews and conversations with the people filmed. Although we know that, for Coutinho, it didn’t matter if the characters’ speeches contained truths or lies, but how they talk about their lives. In this sense, performance becomes also an important element for the construction of the speech.

What Danielle noticed is a bet on the artifice in the scenic game in Sun Inside, the construction of an artificial and performative world for other layers and imaginary of this youth, as well as the staging within the domestic spaces, gradually creating a relationship of intimacy and closeness to the characters. Unlike Coutinho’s films, where words, language and voice are more centralized to the construction of the film, in Sun Inside we believed that discourse was not enough to materialize the subjectivities of these characters in a constant process of transmutation of themselves towards the world.

Eliza Capai’s feature, Your turn, is an extremely important film for having the good intention of telling Brazilian history at a time when schools were being taken over by the occupations of high school students, affected by the presidential coup against Dilma Roussef. It was the beginning of the Brazilian defeat by the far-right, but the narrative of this defeat is made by the young people directly affected by the conservative storm that took Brazil. I was very moved when I watched the film, because it shows young people taking the course of history, even though, sadly, we know that the story did not ended as we would like it to.

At this point, Sun Inside is not centralized in this fight. I can say that he approaches Coutinho’s Last Conversations by being interested in how these young people build a meaning to their lives, whether through music, religion, friendship or the imaginary. Both [films] are more focused on the character’s individualities and the way they develop the performances and narratives to represent their singularities. In this sense, I believe that Sun Inside focuses more on a micro-political sphere, extracting its poetics from everyday life and intimacy; Your Turn seeks to bring out this youth facing directly the State, in a confrontation with a power project. I think Your Turn and Sun Inside can be very complementary films, which helps to perceive that the youth in Brazil is mobilized by a desire for the future, escaping the over-coded portrait of the black young lives from slums that are placed in a frame of subordination, crime, conditioned to the determinism that society has about the marginalized territory where they live.

In addition to dealing with being young, black and marginalized in Brazil today, there is also an approximation with the experiences within the public school as a space for diversity, formation and resistance. We can mention, again, Your Turn (Eliza Capai, 2019) and “Eleições” [Elections] (Alice Riff, 2018) as recent films whose narrative crosses these relationships and goes through these very primordial institutions, even if with many difficulties in Brazilian education. Sun Inside brings, precisely, the approach of young people to this place through the bonds of friendship, and then the distance from the summer holidays. In this sense, how was the process of writing the project and script based in this theme? And afterwards, how did it go with the recording?

I met Caio, Karol, Ronaldo and Junior through school, as a film teacher in a school project, and I wanted to start the film in that space and with that link. At first, I noticed through Caio, mainly, a School beyond the classroom, taking place in spaces out of the classroom: meetings in the courtyard, lunch in the cafeteria, talent shows, poetry presentations, June parties, etc. There was where they managed to meet to spontaneously express their creativity and concerns. Then, we started to film at CAIC school, Rio das Pedras [Rio de Janeiro], and Andre Malraux, in Leblon [Rio de Janeiro]. Right at the beginning we understood, me, Pedro Pipano (photographer) and Guilherme Farkas (sound), that it was better to start with a certain distance, in order for them to get used with our strange presence. Gradually, they were inviting us to get into the spaces and the camera was also approaching their faces. In this space of the school, we tried not to control the filming too much, differently from the moment after the holidays, where we had a script with staging proposals. At school, the goal was to register the space in a documentary style and film them more as a collective than a singular body. For us, it was important to put them in groups – never individually – because the school, here, represents a collective space. However, the school as institution was not the focus of our project, but only a solid tool to build a collective space that would give space to another, more slowed, time of the holidays. Unlike Alice’s film, Eleições [Elections], where the school is the axis that connects all the characters, the central narrative portrait. Eleições structure the school’s microcosms in a very good way, reflecting the Brazilian macro-political issues. Both Eliza Capai’s film and Eleições are films conceived by the context of public schools’ occupations and, in this perspective, [both films] make this space visible as a ground of political and aesthetic disputes for this youth. Sun Inside was also sensitive to this emerging political context, which can be seen in the prologue, where students are celebrating the victory of their group on school games, a representation of political achievement that came from occupation’s movement. However, Sun Inside leaves the school, because our interest was to make the school visible as a collective space, a vivid and transcendent place, to approach the subjective processes that occurred during vacations, once suffocated when inside the school.

Sun Inside‘s script was written by Isaac Pipano and Ricardo Flogliato, shared and collaborated by Caio Neves, Karollayne Rabech, Junior Souza and Ronaldo Lessa. The creation process happened in this way: after the Vacation Diary – two years later – we created a schedule; we presented it to the characters in the staging laboratory, guided by Ricardo. We brought the written scenes and molded them to the characters’ improvisations. We didn’t start from something ready, from a framed portrait, the idea was to be contaminated by the way the four [characters] imagined their lives, building spaces for their sensitivity and a place to exist through Cinema. As the teenagers did not have a closer relationship with violence, it was important for us to avoid this path. Thus, we created a script where characters haven’t a have a psychological profile, but it was with an open and closed line of strength, at the same time. For each of them, we designed a trajectory, from one place to another, throughout the narrative. I like to think of the film script as a weaving practice, where the sum of events shapes a framework full of starting and ending points, as if the characters were strength lines that sometimes intersect, sometimes deviate, intertwine, knot and that sometimes produce a new shape, lines that affect and are affected by the world around them. In this sense, it has to do with what the Vietnamese filmmaker and researcher Trinh T. Min-ha writes about his process: “Instead of merely talk about the production of images or meanings, one can approach the manufacture of images as a network of underground current [thinking/acting] and counter-current [opposite think/act]: a manifestation of forces”. These forces to which Trinh refers do not end the flow of people filmed, but they are forces that vibrate in different ways, in alliance with other people, groups, objects and schools, distinguishing themselves throughout the film.

I don’t know if I conceptualized too much, but in practice we worked this way. There were changes in the filming lines, such as Caio’s trajectory. He was in the process of becoming a Pai de Santo [relevant positon in Umbanda’s religion], but decided to change and migrate to the protestant church. There was no way not to include this transformation in the film. Thus, the script’s structure was sensitive to events, open to situations that occurred in the characters’ lives, which required a constant negotiation. In one of these negotiations, we realized that the film needed to summon a more performative dimension, capable of inviting them to experience other alterities, as was the case with the K-pop video clip with Karol and the forest scene with Caio. Such scenes were only possible when Ancine [Brazilian national film making agency, extinct by Brazilian government in 2020] funding came in, a year after the first shoot. We already had a version of the film and it was clear that we needed to invest in the materialization of the imaginary, that is, in the staging of performances, to intertwine and fill this fabric with other lines. Only in this way did the tapestry tracing of the film seem to us up to the depicted lives.

How was the film reception by the public at the Brazilian festivals where it was exhibited and how do you think Sun Inside can resist for the next years (the question even looks back to us, because it also serves the film making: how to resist the stormed times that we are living now and the ones that are yet to come)?

The [Sun Inside] debut in Tiradentes [Minas Gerais] was very sensitive, the audience of the festival was extremely warm with Caio, Karol, Ronaldo and Junior. There, they understood the meaning of make a film, and enjoyed the recognition offered by people, even if just for a few moments. Here in Brazil, the film was shown in the main festivals, I tried to follow most of the exhibitions. Throughout this year, we heard many young people from the peripheries to express a desire to see themselves on the screen, out of this approach of violence and misery. Many of them felt connected with the characters, close to the dilemmas experienced by them, and were deeply moved by the way that the film led them. It was interesting to release this film in the year of possession of the worst President that Brazil ever had. The Cinema was involved in an urgent answer to the conservative rise of the far-right in politics. Therefore, most of the films exhibited along with Sun Inside were committed with this action. Through it all, Sun Inside was interpreted almost like a dystopian film. I received these impressions as compliments. Satisfied by taking people out of lethargy and pessimism state without romanticize any reality and producing relief beyond this political storm that we are going through, which made me think that we have to resist the very idea – already worn out – of what has already been captured as resistance in common sense. For this reason, I find it interesting to turn to Leda Martins Marques, a performance and performing arts researcher, whose question that raised in the debate about Torquato Neto’s film [directed by Eduardo Ades and Marcus Fernando, 2017] is very relevant to this conversation. Leda talks about how Torquato refused to “turn his aesthetic into commodities”. And yet, asks at the end of her speech: How to escape the precipice, if not also inventing language?². Putting it in dialogue with your question, how to escape this abyss, if not also reinventing the very idea of resistance?

I do not think it is a question to answer immediately, but I believe the importance of this discussion to suspend already established beliefs about the production of images that deal with the subject of resistance. I believe that a radical process of reinvention can only take place in connections with other knowledge of authors previously unnoticed; like so many black women, queer, indigenous artists, which comes to the surface with a great force. Singularities that deconstruct any easy idea about resistance, but also produce new enchantments with the world, to continue to exist in this country haunted by delusion. Thus, we remember that there are other versions of Brazil, acting underground and in other directions, and which can emerge at any moment.

___

1 It is an expression used by the researcher and performance Cíntia Guedes, in the Tiradentes debate, to refer to the confinement frames in the production of black people image representation.

2 Lecture on the film about Torquato Neto: https://www.youtube.com/watch?v=OVG8d-Mg_9M

(Translated by Letícia Santos de Oliveira)

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Seção Painel Vol. 01 - Nº 02 - 2020

Us, final fight scene: a semiotic analysis of sound design

Final fight scene: Adelaide is trapped with her doppelgänger – Red – in the hideous laboratory where all the other copies were hiding and living their bizarre lives. Red holds the protagonist in handcuffs and here we have the final confrontation, which is intertwined with childhood memories of Adelaide, while dancing Ballet, and of her evil version following her movements in an animalistic and desperate way.

The fight occurs at an abandoned laboratory, in a kind of imitation of what would be a classroom; on the blackboard we can see a drawing of what would be the only reference from the outside that Red has. In the background, we hear a song that refers to dance movements, at the same time that Adelaide fights for her life – in a desperate way – while her clone has light movements, subtly escaping her attacks. It gives us a sensation that they are making the dance of the dead.

Then, the music that takes place in the background is composed of pizzicatos from a  violin and bass notes from cellos, in a way that reminds us of a string orchestra. In addition to this reference to Ballet, one thing intrigues us here: while the figure who should have grotesque movements is subtle and silent, Adelaide – in her desperation for life – brings us a behavior very consistent with our antagonist, grunting and acting like an animal fleeing from a predator.

The confrontation’s sound design consists of dragged chairs, chains and blows, these grunts refer to the fact that something is out of context in this fight, and that the sounds emitted by Adelaide are not natural.

Red finally hits Adelaide with scissors and, then, disappears; the background music becomes heavier. Adelaide continues to walk through the laboratory until she enters a dormitory. At this point, the music becomes just tense, almost like silent noises. The sound design of Adelaide’s memories are now more evident, just like the blows that Adelaide throws in the air. The music here is present only when the childhood Adelaide appears dancing, until the shadow of her evil copy appears and we hear tense violin effects again. At this moment, Red’s final attack takes place, while Adelaide turns quickly and hits her in the chest, ending the confrontation and screaming like an animal. The music stops, we hear the scissors falling on the floor just like Adelaide’s doppelgänger. 

The woman in red sits down, and here we have the sound of blood starting to come out of her mouth, and a mocking whistle that, for some reason – that we will only discover in the next scene, makes Adelaide angry, what makes her finish killing the enemy by hanging her with the handcuffs’ chains that are holding her arms. Adelaide is screaming like an animal again, we hear the sound of breaking  bones… Then she starts some kind of winning-evil laugh, stands up and goes after her kids that are hiding somewhere at that weird place.

What draws our attention in this film are the mannerisms of the protagonists’ doppelgängers, that are extremely striking and measured, with animalistic and cartoonish grunts and noises. In the analyzed scene, the antagonist completely loses these characteristics, and the one who assumes it is the protagonist. The perception that something does not fit is not only due to the characters’ body expression (which could be explained by the tension of the fight that is happening), but by the sounds emitted by them, which are interspersed with the memories of a child who grew up in the middle of ballet performances – and then a song that refers to that context – and noises, screams and grunts that refer to the mannerisms of the antagonists, assumed here by the alleged victim of the confrontation.

The doubt about this hunt begins to be exposed through this sound passage, where the characters change positions. Then, the real connection between antagonist and protagonist is revealed through the explanation of what happens in Adelaide’s childhood, and what had, in fact, caused the traumas that we see at the beginning of the narrative.

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Seção Painel Vol. 01 - Nº 02 - 2020

ANÁLISE FÍLMICA: Narrativa sonora na cena final do filme “Nós”, de Jordan Peele

[Este texto pode conter spoilers do filme Nós, de Jordan Peele]

Cena final, plot, desfecho da trama: Adelaide [protagonista] está presa com Red, sua cópia, no laboratório secreto onde todas os outros clones foram criados e eram mantidos, a viver o bizarro reflexo da vida da superfície. A versão em vermelho, maligna e sedenta por vingança, agarra a protagonista e prende-a em algemas: está posto o confronto decisivo da trama, que é alternado com memórias da infância de Adelaide em suas apresentações de balé, e sua cópia a seguir seus passos no subsolo da sociedade, de maneira animalesca e primitiva, como uma força que ia contra sua vontade e a obrigava a se mover de acordo com o que a superfície ditava. A cópia é o contraste do que estava posto como normal em comportamentos cotidianos da vida superficial.

O confronto físico entre as personagens ocorre numa espécie de sala de aula localizada no laboratório, e notamos na lousa um desenho que remete à única referência da superfície que a cópia de Adelaide tinha. No fundo, ouve-se uma música que se refere a movimentos de dança, o que contrasta com a luta desesperada de Adelaide por sua vida em meio à briga, enquanto o clone possui movimentos sutis, quase que leves, que seguem a canção enquanto escapa dos golpes da protagonista. Este contraste traz a sensação de que as personagens estão em um transe ritual, uma dança da morte, onde quem perde não se move mais, não dança. A seguir, a música toma um caráter diferente, com pizzicatos de violino e notas graves de violoncelo, a construir uma espécie de orquestra de cordas. Em adição a referência do balé, uma coisa nos chama a atenção aqui: enquanto a figura que deveria ser a antítese da normalidade – a cópia bizarra da humana da superfície – possui movimentos leves e calculados, a protagonista, que nos é apresentada como vítima desde o início da trama, nos traz um comportamento bastante contrastante com a antagonista, grunhindo e com movimentos impulsivos, bestiais e extremamente violentos.

O sound design possui os efeitos sonoros esperados para a cena in loco, com cadeiras sendo arrastadas, correntes e golpes, mas aqui os grunhidos emitidos pela protagonista nos fazem perceber que algo está fora de contexto, e que suas reações sonoras não são naturais. Quando Red atinge Adelaide com tesouras e foge, a ambiência sonora do fundo e a trilha sonora adquirem tensões mais evidentes. A protagonista continua a caminhar pelas instalações abandonadas no subsolo e se depara com um dormitório.

Nessa altura, a música de outrora converte-se em tensões sonoras, quase como ruídos abafados. O desenho de som das memórias de uma Adelaide ainda pequena se torna mais evidente, assim como os golpes que joga no ar. Aqui a música permanece apenas nos cortes da infância, onde Adelaide aparece a dançar, até que a sombra da antagonista surge e os violinos começam a soar tensões novamente. Neste momento, o golpe final de Red se dá, ao passo em que Adelaide prontamente a atinge no peito, finalizando a batalha-dança, vencendo ao sair com vida do confronto.

A trilha sonora para, ouvimos apenas as tesouras a cair no chão, assim como a antagonista. A mulher em vermelho cai sentada, ouvimos o sangue que começa a jorrar de sua boca, um pequeno assobio que – só entenderemos na próxima cena – atiça ainda mais a fúria de Adelaide, que acaba por enforcar sua cópia enquanto grita e grunhe, e ouvimos os ossos quebrando. Então a protagonista nos lança uma inesperada gargalhada que soa quase que maléfica, em comemoração a sua vitória; ela se levanta e vai a procura de seus filhos que estão escondidos em algum ponto daquele lugar estranho.

O que nos chama atenção neste filme são os maneirismos atribuídos aos antagonistas, cópias dos protagonistas da trama, que são bastante peculiares, animalescos e bizarros, assim como as figuras que os emitem. Na cena em questão, a antagonista perde completamente esses maneirismos, ao passo que quem os assume é a suposta vítima, protagonista.

A percepção de que algo não se encaixa na expressão corporal das personagens durante a briga nos faz entender que uma assume o lugar da outra (o que poderia ser explicado pela tensão na luta que está posta, e no descontrole causado por tal situação), mas quando ouvimos – intercalado com as cenas de dança da criança que cresceu em meio a apresentações de balé – uma música que introduz o contexto para o receptor da mensagem, e ruídos, gritos, grunhidos que nos remetem aos trejeitos da antagonista que são assumidos pela protagonista no confronto, nos trás um desfecho completamente inesperado.

A dúvida sobre essa caçada é trazida e revelada através das passagens sonoras empregadas na cena. É a narrativa sonora que entrega a mudança de papel entre as personagens e então nos revela como, quando e onde se dá a conexão entre antagonista e protagonista, bem como a verdadeira identidade de ambas, além da causa originária dos conflitos da trama.

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Vol. 01 - Nº 02 - 2020

O Aspirante

Em seu livro sobre roteiro, Flávio de Campos define seis pontos de vista onde um narrador pode se posicionar; entende-se como narrador, em uma narrativa fílmica, o modo como a câmera e os demais aparatos cinematográficos se posicionam e como captam e moldam a trama.

O narrador, em se tratando do personagem principal, é um recurso que, materializado numa forma de perceber a estória, narra apenas o que o personagem percebe, da forma como ele percebe, e no momento que ele percebe. Assim, esse narrador-personagem não tem poder de antecipar o que vai acontecer, nem de seguir outros fios da trama; portanto, o filme estará condicionado a seguir o fluxo desse protagonista-narrador.

A narrativa em O Cremador (1968), de Juraj Herz, segue o personagem Kopfrkingl, homem de família tradicional (casado, dois filhos), dono de um crematório na Tchecoslováquia durante o período pré Segunda Guerra Mundial –  um típico “cidadão de bem”, poderíamos dizer? –, que sonha em se tornar parte da alta classe da sociedade, almeja ser reconhecido como figura importante, como eram considerados os homem cultos da época. Há pinturas espalhadas por toda sua casa, mesmo que ele não faça ideia de seu real significado.

Ainda no contexto da narrativa, os ideais de Hitler estão em ascensão e sua influência se espalha cada vez mais pelos países vizinhos da Alemanha, e a alta classe – tão desejada por Kopfrkingl – agora começa a se atrair por esses princípios.

O cremador atua como um grande monólogo do protagonista que busca sua própria ascensão, e é assim que o filme se dá desde o primeiro minuto até seu desfecho: as convicções do narrador-personagem traspassam as imagens. Kopfrkingl raramente para de falar, há poucos momentos de silêncio, o que atenua o aspecto eloquente e ganancioso do protagonista, que demonstra necessidade por atenção e se utiliza de seus pequenos poderes e influência para tal. Pequenos poderes porque os personagens secundários com quem o protagonista mais se impõe são os mais próximos – que fazem parte de sua família, ainda que clientes e funcionários do crematório também seja vítimas de seu ego.

A duração e disposição dos planos são conduzidos pelo monólogo e pensamentos de Kopfrkingl; podemos perceber uma ritmização das imagens e do sentido que há dentro do quadro, que está intrinsecamente ligada às falas do cremador, como no momento em que ele chega em casa com novos quadros, bonitos e imponentes, e decide, em conjunto com sua esposa e filha, onde poderá pendurá-los. Junto com o diálogo, há alguns jump-cuts onde vemos Kopfrkingl e sua família em diversas partes da casa, a decidir em qual local os quadros deverão ficar. É isso o que, aqui, podemos chamar de narrador-protagonista.

Não há antecipações, não encontram-se recortes de vida de outros personagens a não ser aquilo que está dentro da cabeça do cremador-narrador-protagonista. Assim, o filme revela-se uma constante linha de raciocínio de uma mente gananciosa que nos mostra um olhar sobre o iminente perigo ditatorial a partir de alguém que está inserido no movimento, e de sua lógica; alguém que pensa e age de acordo com os princípios de um governo fascista.

Há poucos segmentos em que o narrador não está atrelado a Kopfrkingl, e esses acontecem quando o protagonista se encontra com os funcionários do Partido Nazista, que querem que ele também faça parte de seu grupo. Esses personagens são responsáveis pelas maiores mudanças na mentalidade do cremador e, portanto, dentro da própria narrativa. Nesses momentos, a narração assume uma posição paralela ao protagonista. Ou seja, saímos do espiral das inabaláveis convicções da cabeça do protagonista e conseguimos, pela primeira vez, perceber algum espanto diante das falas de figuras mais poderosas que ele. Depois, quando voltamos a mente do personagem, entendemos sua perspectiva daquela conversa.

Esse sistema empregado pelo diretor transforma o filme em uma narrativa pesada e sufocante. Respiramos apenas quando o cremador também o faz, o que é escasso. Junto a isso, há a atmosfera gótica de uma fotografia sombria, ambientes fantasmagóricos e primeiríssimos planos que distorcem rostos e os transformam em o que pode ser comparado a gárgulas.

Junto a loucura que é a mente do protagonista, temos uma figura que se apresenta durante todo o filme: uma mulher trajada com um vestido preto, cabelos longos e escuros, pele pálida e expressão inquebrantável, que sempre se aproxima de Kopfrkingl. A identidade dessa mulher fica para a interpretação do espectador, mas o filme nos dará sugestões para a suposição de teorias.

O cremador é uma viagem pela mente de um personagem que representa todo um país que está acometido pela paranoia da maior ameaça que sua sociedade já viveu, com medo de uma sombra macabra que se aproxima devagar e sorrateira. É também um exercício narrativo que trabalha noções de autoritarismo a partir de seu ponto de vista – egocêntrico e cruel, que se agiganta gradualmente até assumir um estado (irreversível) de psicopatia.

O mais notável em O cremador, portanto, pode estar na percepção de que as convicções e aspirações de Kopfrkingl provavelmente não se concretizariam de acordo com suas expectativas, apesar de suas investidas, por ele estar abaixo na hierarquia do projeto de poder vigente; e no entendimento de que esse, provavelmente, seria a terrível representação da mente de um aspirante a ditador.


O filme não está presente em muitos catálogos de streaming, mas há uma cópia disponível no YouTube com legendas em Português.

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Editoriais Vol. 01 - Nº 02 - 2020

EDITORIAL: Passado-presente-futuro

Brasil, 2020. Uma pandemia de nível global nos colocou em isolamento. O novo cotidiano imposto pela Covid-19 nos condicionou a um estado de alerta interminável, reconfigurou nossos costumes e nossa percepção, alterou definitivamente nossa forma de olhar e perceber o mundo. O mais simples dos detalhes, imperceptível aos olhares apressados de outrora, agora obtém significado(s), adquirem forma, ganham vida, tornam-se importantes. Daqui, deste ponto nublado da história, é difícil enxergar algum futuro…

No presente, respiramos com alguma dificuldade, falamos com a voz abafada – por causa do temor ou do uso das máscaras, mas também porque percebemos que talvez estejamos mais solitários do que desejávamos, ou porque notamos (os que ainda não tinham se dado conta disto) que não há entidade, instituição ou tampouco um indivíduo de quem possamos esperar algum gesto de liderança. Não há presente. Não há futuro.

Durante o período de isolamento social, as ideias para uma segunda edição temática desta revista transmutavam-se a cada instante. Como se manter minimamente relevante nesses tempos? Ou, ainda: como pensar o Cinema neste momento histórico de impossibilidades e reconfigurações? A própria noção de tema (bem como a de prazos e limites) nos parecia irrelevante, egocêntrica, mesquinha. Acompanhamos o crescimento da produção (e reprodução) das imagens como ponto de fuga da realidade, mas também como ancoradouro de novas possibilidades e configurações desse novo olhar – confinado, inseguro, solitáro. Assim sendo, retiramos o subtítulo da revista e assumimos nossa vulnerabilidade. Não mais “Cinema e TV”, apenas Reimagem – para (nos) reconfigurar, reinventar, relembrar, reestabelecer, reconectar, reimaginar, ressignificar.

Como temática, a princípio, queríamos deflagrar o flerte do governo brasileiro com os ideais do mais descarado fascismo como tema central da edição, olhando para o passado na expectativa de reconhecer nele algum traço do presente para que, a partir disso, pudéssemos imaginar alguma possibilidade de futuro. No entanto, sucumbindo a corrente de reformulações sob a qual o próprio mundo parece estar implicado a partir de agora, afrouxamos os limites do tema, ainda que ele permaneça por lá, nos rondando de longe – um olhar que ainda considera traços e sombras de opressões, passadas e presentes, para resistir ao caos que nos foi imposto.

Nesta edição: PH Martins traça, em uma análise concisa sobre a figura do narrador-persongem, um paralelo entre O Cremador (Juraj Herz, 1969) e a figura emblemática de um aspirante a ditador; Luciana GB reflete sobre fronteiras e urbanidades na América Latina a partir do documentário Terras (Maya Da-rin, 2009); na Seção Painel, o artigo de Letícia Oliveira analisa a narrativa sonora do confronto final do filme Nós (2019), de Jordan Peele. Além disso, a realizadora Jo Serfaty fala sobre o fazer cinematográfico, linguagem, resistência e realização em uma conversa sobre seu premiado longa-metragem Um filme de verão.

As imagens do mundo foram irremediavelmente reconfiguradas. Reconfiguremo-nos, então.


EXPEDIENTE || Editor-chefe: Gustavo Guilherme da Conceição | Revisão: Gustavo Guilherme da Conceição e Letícia Oliveira | Tradução e revisão (English version): Letícia Oliveira | Mídias sociais: Luana Macedo Pereira || Assinam os textos desta edição: Gustavo Guilherme da Conceição, Letícia Oliveira, Luciana GB e PH Martins ||| Agradecimentos especiais a Jo Serfaty e Luana Cabral.

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Vol. 01 - Nº 02 - 2020

Fronteira e urbanidade latino-americanas a partir do documentário Terras

O documentário Terras (2009), dirigido pela brasileira Maya Da-Rin, retrata a tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, onde, de acordo com sua sinopse “as cidades gêmeas Letícia [Brasil] e Tabatinga [Colômbia] formam uma ilha urbana cercada pela imensa floresta amazônica. As delimitações territoriais são muitas vezes encobertas pela densa vegetação e as fronteiras se confundem nos rostos de seus moradores”. Nele, os habitantes das duas cidades retratadas contam suas experiências e perspectivas acerca da(s) fronteira(s).

Ainda que heterogêneas, as cidades são construídas numa lógica excludente e pré-estabelecida, reforçando e sustentando as divisões sociais. Esta, por sua vez, produz fronteiras cuja materialidade é escassa, sendo operada a partir de um imaginário coletivo (e suas sustentações legais/econômicas) que definem onde os sujeitos sociais podem ou não estar, viver, trabalhar, desfrutar. A rua de um bairro nobre é em teoria de livre acesso, mas não é qualquer pessoa que pode transitar livremente. Ou mesmo com a sua representação nos mapas, onde linhas fazem essa divisão que não existem geograficamente. Ao mesmo tempo estão as construções que marcam as fronteiras: muros, cercas, pontes.

Os planos iniciais do filme tateiam as texturas da floresta: terra, rochas, folhas numa diegese cujo som remete ao cantarolar dos pássaros e o movimento das folhas. Aos poucos, os primeiríssimos planos vão dando espaço aos asfaltos, ao cimento, enquanto a sonoridade é consumida pelo som de carros e buzinas. Isso nos traz um elemento importante tanto para a obra quando para a temática abordada: a coexistência do rural e urbano.

Em seu ensaio sobre a imaginação pública e os limites tênues entre realidade e ficção, Josefina Ludmer aponta que as divisões outrora bem definidas entre campo e cidade e literatura rural e urbana se dissolvem a partir dos anos 1990, dando lugar a “[…] outros mundos que não reconhecem as dualidades tradicionais. Que absorvem, poluem e desdiferenciam [regressam ao primitivo] o separado e os opostos e traçam fronteiras “ (Ludmer, 2010: 127). E o cinema também acaba por ter suas fronteiras menos delimitadas.

Ludmer destaca que a cidade latino-americana se barbariza tanto na ficção como na realidade. As favelas (Brasil), as villas miseria (Argentina), as comunas (Colômbia), as callampas (Chile), as ciudadelas (Bolívia), os cinturónes (México) de um um lado e os condomínios fechados de outro possuem uma lógica em comum no que tange à uma tendência global que Ludmer (2010: 129) se refere como “divisão global’. Segundo a autora

Assim como ele mesmo está contido num regime global “universal”, com outra consciência histórica, o regime territorial urbano latino-americano (que é o social e a encarnação nacional do global) contém em si outras formas. As cidades grosseiramente divididas do presente contém áreas, edifícios, habitações e outros espaços que funcionam como ilhas, limites precisos. (Ludmer, 2010:130)

Já Becker, neste sentido, indica que

A fronteira amazônica só pode ser interpretada a partir da inserção do Brasil no capitalismo global decorrente da nova escala da relação capital-trabalho tendo como referência a produção de um espaço planetário onde os Estados nacionais conservam suas funções de controle, hierarquização e regulação, e como base o espaço. (Becker, 1988:66)

O filme apresenta uma fronteira onde reinam as motos, que circulam pela cidade envolta pela maior floresta tropical do mundo; de outro lado, os barcos transitam entre os três países. E conta um pouco, a partir de alguns moradores, como se deu sua povoação moderna para chegar a tal cidade urbana, motorizada e turística. Afinal, como continua Becker “A fronteira é um espaço em incorporação ao espaço global, que é o espaço urbanizado, e sua incorporação se efetua através do núcleo urbano, condição-chave da ordenação do espaço territorial e social” (Becker, 1988:73)

O filme, no entanto, transita entre diversas fronteiras para além das geográficas. Primeiramente linguística, quando abarca o português, o espanhol, bora e tikuna em suas narrativas, enfatizando a diversidade cultural e identitária das cidades em questão; e segundo, na sua abordagem – a partir de uma visão nicholiana do documentário – ao utilizar tanto dos modos considerados como observativo e participativo. A câmera muitas vezes está imóvel, apenas captando os movimentos que se dão a sua frente; e em outros momentos, se põe nos espaços, adentrando, seguindo, interferindo. Ou seja: ideia de fronteiras bem definidas é posta em questão em diversos níveis.

O primeiro entrevistado é um colombiano que trabalha como taxista. A câmera vai no banco de trás, como um passageiro, conversam entre si. Ele afirma, a medida que dirige, que “Leticia [Colômbia] e Tabatinga [Brasil] foram divididas por uma fronteira imagnária” porque, em sua visão, as duas cidades são uma só, um só povoado. Por outro lado, traz que “As fronteiras servem para tirar a liberdade. Para impedir o tráfego e o desenvolvimento de algumas pessoas”. Logo no inicio do filme, há um elemento importante nesse sentido: a presença do controle (com suas muitas brechas e vícios) nas fronteiras, aqui representada pelo aparato militar. Uma espécie de axioma quando se trata de fronteira, principalmente as terceiro-mundistas.

O taxista ainda assegura que pelo menos cinquenta por cento da população de Letícia vem “de fora”, ou seja, não nasceu aí. Dentre os migrantes, cita principalmente os costeños (Caribe) e os paisas (Colômbbia), além dos desplazados (deslocados, refugiados) que fogem do conflito armado. Para ele, a fronteira é vista e vivida como um local ideal para se esconder e, seguramente, se deslocar para outro país.

As fronteiras possuem essa característica de abrigar diversas culturas e etnias, principalmente por ser interseção de lugares de configurações políticas-econômicas-geográficas muitas vezes diferentes, mesmo estando tão perto. Ludmer traz a definição de território como

[…] Uma delimitação de espaço e uma noção eletrônico-geográfico-econômico-social-cultural-político-estética-afetiva-de-gênero-e-sexo, tudo ao mesmo tempo. Perpassa os diferentes campos de tensão e todas as divisões e podemos pensar em fusão.(Ludmer, 2010:122)

Os estudos sobre fronteira dentro da academia têm aumentado nas últimas décadas, bem como a crescente presença da temática em filmes, programas de TV, podcasts, artes visuais, literatura etc. O Brasil hoje conta com um programa de pós-graduação em estudos de fronteira, oferecido pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), além de diversos outros grupos de estudo, revistas e eventos em Universidades não só brasileiras, mas de todo o mundo.

Uma indígena Bora é a segunda personagem a aparecer no filme. Ela levanta um apanhado histórico do processo de apropriação e delimitação das terras – antes pertencentes a seus ancestrais e que, portanto, agora deveriam estar sob cuidados e domínio de sua família. Agora, num contexto mais urbano, essas delimitações – outrora entre comunidades/etnias – se concentram mais numa questão nacional, onde também entram as interações globalizadas. Segundo ela, “Antigamente era proibido conviver com outras tribos. Agora não. Agora há gringos que vivem com indígenas, tudo misturado”.

Suas histórias vão sendo contadas em meio a polifonia da mata e os sons dos machetazos [facões], que vacilam entre troncos e cipós. A câmera a segue, acompanhando seu trajeto narrativo. Ela diz que a terra é a mãe, portanto, dividir seria como cortar seu corpo, e pergunta para a lente: “você arrancaria o braço da sua mãe?”. Ludmer, ao abordar a cultura indígena em seu estudo, nesse sentido afirma que ela

[…] Tem uma relação totalmente diferente com seu território. As mapuches dizem que o homem é complemento da terra e de tudo que o rodeia; que é parte de um território e não seu dono. E não pedem o direito a terra, mas sim ao território. Reclamam seus territórios usurpados primeiro pelos espanhóis e depois por mikitares argentinos. Reclamam direitos territoriais como direitos humanos e pedem uma política de rearranjo territorial. (Ludmer, 2010: 125)

Maria Lugones, em seu livro Pilgrimages/Peregrinajes [Peregrinações], teoriza sobre os pontos de interseção e dominação que os sujeitos experienciam ao transitarem pelos espaços, e propõe (também fazendo-o) um exercício metafórico de se localizar [eu múltiplo] no mapa [espaço múltiplo].

Visualize, lembre e sinnta um mapa que foi desenhado pelo poder em suas várias formas e direções e onde há um lugar para você. Todas as estraas e lugares estão marcados como lugares onde você talvez deva ou não ocupar. Sua vida é espacialmente mapeada pelo poder. Seu lugar está no cruzamento de todos os locais onde você deve ou não viver ou se mudar. (Lugones, 2003:15)

Ou seja, a ordem dos espaços é pensada através das relações de poder que estão em choque e constroem as relações e movimentos. A personagem Bora traz a aparelhagem burocrática que molda a vida contemporânea, mencionando a necessidade de um Estado para proporcionar condições que os permita, por exemplo, comprar comida. Mas expõe que sua alimentação era retirada da terra, não dos mercados. Territórios tomados, delimitados e protegidos, para que cumpram sua função na lógica do capital. Ainda assim, encontra-se numa situação de cruzamento, pois essa urbanidade a qual se refere ainda possui muito do que seria seu oposto – o rural. O modo de estar na casa: cozinhar, dormir, limpar se mantêm como herança familiar. O ritmo mais devagar, as manualidades, o contato constante com a terra.

Gloria Anzaldua, ao teorizar sobre a dualidade e multiplicidade vivida pela mulher mestiza, aborda constantemente a questão da(s) fronteira(s). Ela defende a ideia de que a situação de fronteira pede que se tenha olhos de serpente e águia a mesmo tempo.

O choque de uma alma esmagada entre o mundo espiritual e o mundo técnico as vezes a sobrecarrega. Presa em uma cultura, encarcerada entre duas, abrangendo todas as três culturas e seus valores, um mestiço passa por uma luta de corpo, uma luta de fronteiras. Uma guerra interna. (Anzaldua: 78, grifo nosso)

O filme se adentra a esses diferentes espaços, sendo o ato de transitar um traço primordial na obra. Isso se mostra nas entrevistas, que se dão geralmente em movimento: no carro, no barco, no caminhar, o que nos faz perceber, portanto, choque de montagem em várias cenas. Um exemplo disso é, do som acústico dos chocalhos para as batidas techno, a sequência em que acompanhamos um ritual de toma de ayahuasca [chá com potencial alucinógeno], em um contexto onde há uma atmosfera de xamanismo e espiritualidade, somos, em seguida, levados a uma boate onde casais dançam e os mais velhos se embebedam. As multiplicidades (e contrastes) da densidade noturna, afirmam, como traz Becker:

A fronteira não pode ser mais pensada exclusivamente como franjas do mapa em cuja imagem se traduzem os limites espaciais, demográficos e econômicos de uma determinada formação social. Uma nova definição de fronteira mais abrangente torna-se necessária, capaz de captar sua especificidade – como espaço excepcionalmente dinâmico e contraditório – e a relação desta com a totalidade de que é parte. (Becker, 1988:62)

A personagem Bora conta sobre o caso de um tio que vive em território colombiano que foi visitar um parente no Brasil e a polícia Federal não permitiu sua entrada, pois não possuía documentos. Para ela, a ideia de países não existe, pois toda essa família é um território só. “Por isso digo que para os indígenas não existe fronteira. Para mim, pelo menos, não há fronteira. Posso ir onde quiser, sabe por que? Tenho família lá.”

Desta maneira, a obra se constrói em torno dos paradigmas e imaginários urbano-fronteiriços, para então desdobrar suas problemáticas, singularidades e potências, a fim de que não se caia em dualidades herméticas que apequenam as diversidades e tornam-se uma política de controle, destruição e obstrução.


Referências

Anzaldúa, Gloria. Borderlands/La frontera: the new mestiza. 1st ed. San Francisco: Aunt, Lute, 1987.

Becker, Bertha K. Significância contemporânea da fronteira: uma interpretação geopolítica a partir da Amazônia Brasileira. In: Fronteiras. Aubertin, Catherine (org.). Brasília: Editora Universidade de Brasília; Paris: ORSTOM, 1988.

Ludmer, Josefina. Aquí América Latina: una especulación. 1a ed. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, pp. 127-148, 2010.

Lugones, Maria. Pilgrimages/Peregrinajes: theorizing coalition against multiple oppressions. Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2003.