Jô Serfaty é cineasta e roteirista, Mestre em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, com a defesa da dissertação “Periferias em movimento; notas sobre as margens no cinema contemporâneo”. Começou no cinema trabalhando na montagem do filme Brasília 18% de Nelson Pereira dos Santos. Desde então, dirigiu e roteirizou cinco curtas -metragens: Confete (2012) e A Ilha do farol(2017), compartilhando a direção com Mariana Kaufman; Peixe(2013) com Diogo Oliveira; Sobre a mesa(2015) e co-direção do curta Imóvel (2016) de Isaac Pipano. Os curtas se lançaram no desafio de experimentar linguagens híbridas, mesclando o documentário e ficção.
Seu primeiro longa-metragem, Um filme de verão, estreou na Mostra Tiradentese recebeu o prêmio Helena Ignez 2019 para a montadora Cristina, oferecido pelo Júri da Crítica a um destaque feminino da Mostra. Ganhou seis menções honrosas no festival de Brasília (2019), Doclisboa (2019), Festival internacional de Mar del Plata na Argentina(2019), Janela Internacional de Cinema (Recife, 2019). O filme foi/será exibido em trinta festivais pelo mundo entre 2019 e 2020.
Seus trabalhos já estiveram no Lincoln Center (NY), Gotemberg Film festival (Suécia), Documenta-Madrid (ESP), Edimburgo Film festival (Escócia), entre outros. Também atuou em projetos de cinema e educação na rede pública e hoje é professora de direção da Academia Internacional de Cinema (AIC). Foi uma das programadoras responsáveis por realizar a primeira mostra da cineasta Claire Denis e Jia Zhang-ke no Brasil, que contou com a presença de ambos.
Atualmente, Jô Serfaty desenvolve o roteiro de uma série de ficção científica, “Sistema Solar”, a quatro mãos pela sua produtora Fagulha Filmes. E, junto com Isaac Pipano, escreve “SELVA”, o roteiro de seu novo filme de longa-metragem.
Jô, sua carreira como cineasta já vem acontecendo há alguns anos, você já realizou, entre roteiro e direção, cinco curtas e agora está no caminho para distribuição de Um Filme de Verão, seu primeiro longa-metragem. A pergunta pode parecer genérica, mas acho que tem cada vez mais sentido em tempos onde a cultura tem sido tão maltratada nesse país: por que o Cinema?
Eu acredito agora, mais do que nunca, que o cinema e a arte têm o poder de nos orientar na direção de uma lógica de produção de vida, nos projetar em relação ao futuro e construir sentidos e imaginários para além daquilo que se manifesta na realidade concreta. Pode parecer contraditório, mas eu acredito que diante de um projeto de violência real e simbólica, sustentada por um projeto negacionista da ciência, da arte e da cultura é muito importante pensar como o cinema pode abrigar não só ideias e revindicações, mas também fazer com que as pessoas criem o mundo que desejam e imaginam.
Apesar disso, seria ingênuo dizer que o cinema pensado desta forma diminuiria esta condição abissal que nos põe entre um dos países mais desiguais do mundo em termos sociais, raciais e de gênero; não, não diminui, mas produz outras sensibilidades que nos permitem escapar de um modelo binário, racializado e branco-heteronormativo. São filmes, falas, corpos que convocam outras cosmovisões, sejam estas queer, afrofuturistas, ameríndias, libertando certas formas de representação/figuração do confinamento de cativeiros estéticos¹ (CINTIA GUEDES) e da lógica da transparência aprisionadora. Só que este processo não pode ser feito sobre o domínio de quem sempre deteve o poder de produção das narrativas, imaginar não pode ser apenas privilégio de uma classe social e racial. Este problema está estampado para nós, o que me faz pensar que estamos passando por um momento pedagógico. Um momento que requer um outro estado de escuta, observação e uma prática vinculada a engajamento ético. Um engajamento que me põe a reconhecer meus privilégios, entender, por exemplo, o lugar que ocupo como mulher branca de classe média e universitária na sociedade brasileira. Este reconhecimento me leva a ter uma maior consciência diretamente na produção de imagens que estou compondo, na minha mediação com o mundo, nas relações de poder imbricadas na construção das imagens. Este momento pedagógico é um processo de profundo aprendizado, acho que ainda estamos entendendo a como lidar com esses efeitos. De alguma forma, com o cinema, tenho aprendido que não temos como dar ré e precisamos produzir rotas de fuga para explodir os cativeiros deste mundo patriarcal e neocolonial. E, quando me refiro ao cinema, não falo só da produção dos filmes, mas dos espaços de formação, dos debates, pesquisas e congressos, escolas populares de cinema, como a Escola recém-criada por Lincoln Péricles no Capão Redondo. Neste sentido mais amplo, o cinema pode ser um instrumento desestabilizador deste status quo, criando outras condições de possibilidades para emergir espaços de escuta, sensibilidades e sonhos esmagados, histórias apagadas, alianças imprevisíveis, que antes não se comporiam se não fosse através do cinema.
Boa parte dos seus curtas são parcerias com outros realizadores, o que exige que o projeto em si tenha mais importância que as pequenas vaidades de um autor, por exemplo. Acredito que realizar e assinar um filme em parceria com alguém pode ser uma grande experiência de linguagem se essas duas pessoas têm a obra como foco principal, mais até que suas próprias idéias e conceitos de cinema. Esse aspecto da produção cinematográfica tem sido muito corriqueiro no cinema brasileiro contemporâneo e tem dado resultados interessantes que vão de As Boas Maneiras, da Juliana Rojas e do Marco Dutra ao famosíssimo Bacurau, do Juliano Dornelles e do Kleber Mendonça Filho. Como esse aspecto de produção colaborou na construção da sua linguagem, da sua própria voz enquanto realizadora?
Eu acho que o cinema insiste demais nesta política de autoria. Na verdade, é uma forma de individualizar a obra que foi realizada coletivamente. Desde o meu primeiro curta Confete, realizado com a Mariana Kaufman, não acredito que deixei de ser autora, porque compartilhamos a direção do filme. Nessa parceria, encorajamo-nos a arriscar ainda mais nas escolhas estéticas do filme. Como era o meu primeiro curta, talvez sozinha teria recuado em algumas escolhas. Essa ideia de que o diretor está dominado de certezas quando chega no set é uma falácia e, se isso existe, é ruim para todo restante da equipe que age subalternizada no processo de filmagem. Meus processos requerem uma troca, uma negociação, uma partilha, para mim este é o tesão do cinema: saber escutar os que compartilham o processo do filme comigo. Esta metodologia me deixa menos autora? Eu não acho. Para mim, revela o caráter coletivo do Cinema e acaba por não invisibilizar as vozes e os desejos da equipe que está trabalhando para o filme. Essa dimensão coletiva se deu de forma mais radical ainda em Um filme de verão. O roteiro é uma criação coletiva já desde o princípio do projeto. Logo, entendemos que esse coletivismo não se daria apenas no roteiro, por isto, antes criamos um projeto chamado Diário de Férias (comento com mais detalhes abaixo). O caráter colaborativo reverbera no processo e ressoa na forma do filme, se estruturando como um mosaico ou uma bricolagem. Acredito que esse filme não poderia ser concebido de forma diferente. De modo geral, como você bem citou, grandes cineastas como Kleber Mendonça Filho e Juliana Rojas têm encontrado na parceria uma forma de misturar linguagens e tornar nosso próprio processo menos previsível. Isto se dá porque eles não sentem nenhuma ameaça a ideia de autoria, entendem o cinema como um modo de partilha de mundos, de construção de amizade, um espaço para produzir pontes e conexões que renovam nosso olhar para o mundo. Neste sentido, essas alianças só fazem bem para o cinema, o caráter de se desviar deste estatuto moderno do autor, solitário e ego-destrutivo, e afirmar mais o seu caráter coletivo e convidativo. Talvez este deslocamento implique o autor, a autora ou a equipe a reconhecerem suas falhas menos do que suas certezas.
O curta A Ilha do Farol, dirigido por você e pela Mariana Kaufman, soa muito como um tratado arqueológico onde a imagem, ou melhor, a ausência dela, constitui também a perda de uma memória. É como se aquela linguagem que o filme afirma ter se perdido com a tal ilha se tornasse um grande mistério cujas marcas, agora, só se revelam como souvenires marcados pelo tempo em nós. Já Um Filme de Verão parece querer responder a isso de alguma forma, porque a linguagem pulsante e viva desses jovens protagonistas (e a imagem que se faz dela) parece sempre apontar para algum futuro, como se, desde já, esses corpos jovens e vívidos projetassem e guardassem, no filme, aquela linguagem que se perdera em A Ilha do Farol. Como é, pra você, enquanto realizadora, essa relação entre Cinema e Memória?
Esta pergunta é muito boa. Nunca associei desta forma os dois filmes, mas faz muito sentido. O curta a Ilha do farol, dirigido junto com a Mariana Kaufman, propõe uma viagem anti-aventura, ou seja, não se estrutura como um arco de derrota e superação, como se via nas histórias de exploração e desbravamento das terras indígenas no Brasil. O filme procura evocar a chegada dos invasores portugueses vindos de caravelas ao adentrar o Mar pela Baía de Guanabara, habitada no sec XVI por Tamóios e Tupinambás. Mar por onde também atravessou o tráfico do Atlântico de navios negreiros no sec XVIII. A proposta do filme foi recontar lapsos dessas histórias, reimaginando fatos esquecidos e ocultados por uma certa história oficial da cidade do Rio de Janeiro.
O fio condutor dessa narrativa é uma família interracial que se lança em barco para ir rumo a Ilha do Farol, a uma promessa utópica, ao futuro. O filme brinca com as temporalidades: o presente dá espaço para a família à deriva, o passado são histórias fabuladas escritas nas cartelas e o futuro aparece na imagem da ilha que não se alcança. A junção destes tempos deflagra um filme sobre o fracasso de uma viagem, sobre a fraude do passado que impossibilita o tempo correr para o futuro.
Neste sentido, a memória não é uma gaveta que se abre, onde o passado encontra-se sistemático e organizado. A memória é cíclica, é como um mar difratário, não se segue linear. Me lembra a definição de Edóuard Glissant sobre o mar refratário do Caribe: “O mar do Caribe, um mar que se diferencia do mediterrâneo por ser um mar aberto, um mar que difrata, ao passo que o Mediterrâneo é um mar que concentra. Não é apenas um mar de trânsito e passagem, mas um mar de ‘encontros e implicações’”. Essa ideia está de alguma forma no curta A ilha do Farol, pois a memória no filme não se articula linearmente, é como o mar difratário. Surge através das cartelas recontadas do passado e fabulando o presente no fluxo dessa viagem, onde não se chega a lugar nenhum.
Já Um filme de verão se instaura no presente. A matéria do filme é o cotidiano e a manifestação do imaginário. O filme extrai das vivências e das relações afetivas sua poética. Mas, ainda que seja o presente, não é o presentismo, uma condição que os impede de se mover para outras possibilidades. Nos interessava construir um espaço de produção de desejo, ativando as potências vitais dos autores-personagens e, nesse caminho, não os encerrar em molduras prévias e modelos de representações fixas, mas produzir imagens que enunciassem algum movimento. Como rastros que escapam à captura, respeitando, assim, o direito a opacidade (GLISSANT), o direito de não ver e nem revelar tudo da pessoa filmada, desviando-se de um olhar colonizador, classificatório e hierarquizante que tende a criar molduras totalizantes e limitadoras. Nessa direção, eu acredito que a memória não se manifesta como um passado encapsulado e fechado, mas são fragmentos e rasuras. Fragmentos, por exemplo, encarnados no corpo de Caio, quando canta os cânticos da umbanda, atualizados na performance cênica. Na presença da avó no terreiro, uma constelação de imagens: rastros que encontram pousos no presente.
Essa juventude que Um Filme de Verão consegue capturar tão bem também é muito cheia de identidade e personalidade, o que faz com que a imagem que se constrói dela dentro do filme contextualize muito bem essa inquietude do corpo jovem nesse mundo que jamais consegue acompanhar ou entender o turbilhão de coisas que acontece em um corpo adolescente. Dito isso, como foi o processo de pesquisa e aproximação com esses jovens e como eles contribuíram diretamente para a construção de Um Filme de Verão?
Antes de encontrar o recorte de Um filme de verão, conheci os personagens do filme numa escola pública em Rio das Pedras, favela localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quando fui professora de cinema no projeto “Imagens em Movimento” durante um ano letivo. Ao voltar do intervalo das férias de julho, propus aos alunos uma tarefa que consistia em narrar as vivências das férias. Os alunos contaram pouco, reclamando da falta do que fazer durante esse tempo. Ocupavam os dias com os serviços domésticos para ajudar as famílias em casa e navegando pela internet. Raras eram as vezes em que saíram do bairro, pois o bilhete único, fornecido pelo Estado para o acesso ao transporte público não funcionava neste período de recesso, apenas durante as aulas; logo, não conseguiam se locomover pela cidade justamente quando tinham tempo livre para fazê-lo. O bairro é a segunda maior favela do Rio de Janeiro em termos de população por metro quadrado. Também é o berço da milícia, onde funciona o “escritório do crime”. A milícia opera com um regime autoritário e coercitivo que rege e submete 130 mil moradores às suas práticas de poder. Como Junior, um dos personagens do filme, relatou: “Eles ganham dinheiro com o nosso medo”. Diante desse contexto, surgiu o desejo de propor um projeto durante as férias, e daí saiu o “Diário de Férias”, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural. Durante dois meses do verão de 2015/16, sob um calor de 40 a 45 graus, instalamo-nos em um espaço/sala próximo à associação de moradores. O projeto consistia em criar um espaço laboratorial com práticas transdisciplinares para abrigar as experiências sensíveis e estéticas destes quatro adolescentes durante dois meses de férias. Procuramos instaurar territórios relacionais em que as subjetividades pudessem encontrar brechas para sua materialidade, algumas artísticas, outras existenciais. O Diário de Férias foi uma metodologia inventada para abrir espaço para acolher a sensibilidade dos jovens que participaram do projeto. Nesse projeto, eles experimentaram desde práticas de performance até a criação de textos poéticos. Foi uma experiência de imersão criativa. Assim surgiu a vontade de fazer um filme junto com eles, mas convidando-os a fazer parte do processo de criação desse projeto. Do Diário até a filmagem de Um filme de verão passaram-se dois anos. Durante esse tempo entregamos a câmera para eles, mas só quem realmente se filmou foi o Junior, nos apresentando um material incrível que parecia com imagens dos vídeos-performance de diretores experimentais americanos, tipo Bruce Nauman e Samuel Beckett. Nos chamou muita atenção essa composição do Junior, o que nos surpreendeu e nos instigou a criar um roteiro a partir do material produzido. Nesse período, também passei a frequentar a escola CAIC, onde o Caio me convidara para assistir e filmar os shows de talento e as apresentações de poesia e performance. Então, o roteiro foi nutrido do contato com a produção criativa dos quatro adolescentes. Diante de um mundo de imagens e possibilidades, convidei o Isaac Pipano e Ricardo Flogliatto para elaborarem comigo o roteiro. Ricardo já havia trabalhado no Diário de Férias. Eles trabalharam não só no roteiro prévio da filmagem, mas também colaborando com a tessitura da montagem. Durante a filmagem, o roteiro foi moldado às opiniões e sugestões dos personagens, que contribuíram trazendo ideias e improvisando com diálogos durante a encenação e também com sugestões e palpites no processo da montagem.
Acho que é importante dizer que, ao longo desse processo, percebemos que não estávamos só interessados nas vidas, mas no que elas criavam para viver. Esse certamente é um elemento que conecta o filme a essa vitalidade que você menciona. Não era, portanto, a condição de falta e escassez daquele espaço periférico – elementos já tão codificados na produção de imagens sobre esses territórios – que nos interessava, mas sim essa dimensão criativa, fabulativa. Essa dimensão atravessava e atravessa os corpos desses jovens, apesar de não estar dada previamente, já que muitas vezes era preciso convocá-la. Por isso acho tão importante sempre mencionar o Diário de férias como espaço de criação e troca que orientou a nossa perspectiva no sentido de afirmar e produzir esta dimensão inventiva desses personagens.
Acredito que o documentário brasileiro tem buscado se aproximar mais (e melhor) da juventude, principalmente da juventude negra e periférica, em suas mazelas, lutas e vitórias. Acho que alguns bons filmes têm conseguido realizar essa aproximação: desde o Últimas Conversas do Coutinho, que me parece ser um passo largo e importante nesse trajeto, passando pelo tema direto do genocídio da juventude negra em Auto de Resistência (Natasha Neri e Lula Carvalho), até filmes mais despojados como o Espero tua (Re)volta?, da Eliza Capai, que se utiliza da imagem de corpos jovens e periféricos para revisitar, com muito vigor, episódios importantes da nossa história política recente. Como Um Filme de Verão contribui com esse processo de aproximação e onde ele se choca com isso? E, ainda, como ele de fato se posiciona nessa discussão?
Acredito que o interesse por retratar essa geração vem também de uma maior participação social dessa juventude periférica na universidade durante os anos do governo do PT e da inclusão digital, que abriram muitas frestas para os jovens vislumbrarem outras possibilidades de vida para além de seu território social. Quando Coutinho propôs realizar o longa Últimas Conversas, a juventude periférica e negra estava entrando nas universidades e se inserindo nos debates políticos. Essa juventude se tornou um ator político, não mais espectadora da história. O cinema passou a se interessar por ouvi-las, porque tornaram-se a prova viva das transformações sociais pelas quais o país estava passando naquele momento, e também por serem diretamente afetados pela violência do Estado, morrendo pelas armas da polícia nas favelas, alvejando o futuro de uma geração inteira; genocídio este que se intensificou com a legitimação dos governos de extrema-direita. Então, acredito que os filmes sobre a juventude – principalmente periféricas – perceberam que esses jovens são corpo-travessia, pois trazem à tona os desejos do presente e as aspirações do futuro. Se eles morrem pelas armas do Estado, o Brasil está matando o direito ao futuro de um país. A pergunta que surge para nós realizadores é: como tratar desse universo tão complexo, que se transmuta a todo momento? Como captar a vitalidade insurgente dessa geração a altura de seus anseios e vivências?
Focando mais nos filmes que você cita, [é] curioso colocar essa pergunta, porque recentemente participei com o Isaac Pipano de um debate virtual sobre o filme [Um filme de verão] com os alunos e professores da UNIFEOB de Fortaleza. Na ocasião, uma professora de Sociologia da Arte, Danielle Cruz, fez uma observação muito boa ao contrapôr Um filme de verão ao Últimas conversas. Ela disse algo que achei interessante: Um filme de verão produz um espaço de intimidade e performance, o que o distingue da abordagem do Coutinho, que se utiliza dos dispositivos de entrevistas e conversas com as pessoas filmadas. Embora saibamos que, para Coutinho, pouco importava se as falas dos personagens continham verdades ou mentiras, mas como eles falavam sobre suas vidas. Nesse sentido, a performance também se torna um elemento importante para construção do discurso.
O que Danielle notou é uma aposta no artifício no jogo cênico em Um filme de verão, a construção de um mundo artificioso e performático para outras camadas e imaginários dessa juventude, bem como a encenação dentro dos espaços domésticos, criando pouco a pouco uma relação de intimidade e proximidade com os personagens. Diferente dos filmes de Coutinho, onde a palavra, o discurso e a voz têm maior centralidade na construção do filme, em um Um filme de verão acreditávamos que o discurso não era suficiente para materializar as subjetividades desses personagens em processo constante de transmutação de si perante o mundo.
Já o longa de Eliza Capai, Espero sua revolta, é um filme importantíssimo por ter a boa pretensão de contar a história do Brasil no momento onde as escolas estavam sendo tomadas pelas ocupações dos secundaristas, afetadas pelo golpe contra a presidente Dilma Roussef. Era o início da derrotada do Brasil pela direita, mas quem narra essa derrota são os jovens diretamente prejudicados pela guinada conservadora no Brasil. Me emocionei muito quando vi o filme, por mostrar os jovens tomando o rumo da história, mesmo que, melancolicamente, saibamos que a história não tomou o rumo deles.
Nesse ponto, Um filme de verão não tem a luta como centralidade. Posso dizer que se aproxima do Últimas Conversas do Coutinho ao se interessar em como esses jovens dão sentido a suas vidas, seja por meio da música, da religião, da amizade, do imaginário. Ambos se atém mais as singularidades das pessoas filmadas e o modo como encontram para performar e narrar suas singularidades. Nessa direção, acredito que Um filme de verão se concentra mais em uma esfera micropolítica, no sentido de extrair do cotidiano e da intimidade a sua poética; o Espero sua revolta procura trazer à tona essa juventude em enfretamento direto com o Estado, disputando um projeto de poder. Acho que são filmes bem complementares, que ajudam a perceber a juventude no Brasil mobilizada por um desejo de futuro, escapando do retrato já tão sobre-codificado dos jovens negros das favelas colocados na moldura da subalternidade, da criminalidade, subjugadas ao determinismo do território periférico onde habitam.
Além de tratar sobre o ser jovem, negro/a e periférico/a no Brasil atual, também há uma aproximação com as vivências dentro da escola pública enquanto um espaço diverso de formação e resistência. Podemos citar, novamente, o Espero a tua (Re)volta (Eliza Capai, 2019) e o Eleições (Alice Riff, 2018) como filmes recentes cuja narrativa perpassa tais relações e adentra a essas instituições tão primordiais, ainda que com muitas dificuldades para a educação brasileira. Um Filme de Verão traz justamente a aproximação dos jovens com esse lugar, através principalmente dos laços de amizade, e logo o distanciamento a partir das férias de verão. Neste sentido, como foi o processo de escrita do projeto e roteiro com tal temática? E, posteriormente, como transcorreu durante a gravação?
Eu conheci Caio, Karol, Ronaldo e Junior através da escola, atuando como professora de cinema, e quis começar o filme nesse espaço e assumir esse elo. De cara, percebi através do Caio, principalmente, a Escola para além da sala de aula, acontecendo nos espaços extra-classe: os encontros no pátio, o almoço no refeitório, os shows de talentos, saraus de poesia e festas juninas, etc. Era ali que conseguiam se encontrar para expressar com mais espontaneidade suas criatividades e as inquietações. Então, começamos a rodar o filme na escola CAIC, Rio das Pedras, e no Andre Malraux, no Leblon. Logo no início entendemos, eu, Pedro Pipano (fotógrafo) e o Guilherme Farkas (som), que era preciso começar a filmar com uma certa distância, para que se acostumassem com a nossa presença estranha. Aos poucos, eles foram nos convidando a entrar nos espaços e a câmera também foi se aproximando dos rostos. Neste espaço da escola, tentamos não controlar muito a filmagem, diferente do momento posterior das férias, onde havia um roteiro com propostas de encenação. Na escola, a proposta era registrar de forma mais documental o espaço e filmá-los mais como um corpo coletivo do que singular. Para nós, era importante enquadrá-los em grupos, nunca individualmente, pois a escola representava um espaço coletivo. Contudo, a escola como instituição não era o foco do filme, mas apenas um tijolo sólido para edificar um espaço grupal e agregador que depois daria espaço a outro tempo – mais ralentado – das férias, diferente do filme da Alice, Eleições, onde a escola é o recorte central, eixo que liga todos os personagens. Eleições estrutura muito bem o microcosmo da escola, reverberando as questões macropolíticas do Brasil. Tanto o filme da Eliza Capai quanto o Eleições são filmes germinados no contexto das ocupações das escolas públicas e, nessa perspectiva, tornam visíveis esse espaço como um campo de disputas políticas e estéticas dessa juventude. Um Filme de verão também foi poroso a esse contexto político emergente, o que logo se vê no prólogo, onde os estudantes estão festejando a vitória do grêmio, uma conquista de representação política que veio por causa das ocupações. No entanto, Um filme de verão sai da escola, pois o que nos interessava era tornar visível a escola como esse lugar coletivo, pulsante e efervescente, para se aproximar dos processos subjetivos que ocorriam durante férias, sufocadas quando dentro da escola.
O roteiro de Um filme de verão foi escrito por Isaac Pipano e Ricardo Flogliato, compartilhado e colaborado por Caio Neves, Karollayne Rabech, Junior Souza e Ronaldo Lessa. O processo de criação de roteiro aconteceu da seguinte forma: após o Diário de férias – dois anos depois – criamos uma escaleta; apresentamos essa escatela para os personagens no laboratório de encenação orientado pelo Ricardo. Trazíamos as cenas escritas e moldávamos aos improvisos dos personagens. Não partimos de algo já dado, de um modelo de representação emoldurado, mas a ideia era se deixar contaminar pela forma como os quatro imaginavam suas vidas, abrindo espaço para que a sensibilidade deles e disto tivessem um lugar para existir dentro do cinema. Como os jovens não tinham uma relação direta com a violência, para nós era importante não ir por esse caminho. Dessa forma, criamos um roteiro onde cada personagem não tinha um perfil psicológico, mas era com uma linha de força, aberta e fechada ao mesmo tempo. Para cada um deles, desenhamos uma trajetória, onde o personagem saia de um lugar e chegava em outro ao longo da narrativa. Eu gosto de pensar o roteiro deste filme como uma prática de tecelagem, onde a soma dos acontecimentos vai moldando um tapete-quadro, com múltiplos pontos de partida e chegada. Como se os personagens fossem linhas de forças que ora se cruzam, ora desviam, ora se entrelaçam, oram dão um nó, ora produzem uma nova forma, linhas que afetam e são afetadas, pelo mundo e a volta. Nesse sentido, tem a ver com o que a cineasta e pesquisadora vietnamita Trinh T. Min-ha escreve sobre o seu processo: “Em vez de falar meramente de produção de imagens ou de significados, pode-se abordar a fabricação de imagens como uma rede de correntes subterrâneas e contracorrentes: uma manifestação de forças”. Essas forças as quais Trinh se refere não encerram o fluxo das pessoas filmadas, mas são forças que vibram de formas distintas na aliança com outras pessoas, grupos, objetos e escolas, diferenciando-se ao longo do filme.
Não sei se fui muito conceitual mas, na prática, trabalhamos neste caminho. Ocorreram mudanças nas linhas de força da filmagem, como por exemplo a trajetória do Caio. Ele estava em vias de se tornar um pai de santo na Umbanda, mas resolveu, durante um final de semana, migrar para a igreja evangélica. Não havia como não inserir essa transformação no filme. Assim, a tessitura do roteiro era porosa aos acontecimentos, aberta às situações que ocorriam na vida dos personagens, o que nos demandava uma constante negociação. Em uma destas negociações percebemos que o filme precisava convocar uma dimensão mais performática, capaz de convidá-los a experimentar outras alteridades, como foi o caso do clipe de K-pop com a Karol e a cena da mata com o Caio. Tais cenas só foram possíveis quando entrou o financiamento da Ancine, um ano depois da primeira filmagem. Já tínhamos um corte do filme e ficou claro que precisávamos investir na materialização dos imaginários, ou seja, na encenação de performances, para entrelaçar e preencher essa tessitura com outras linhas de força. Só assim o traçado da tapeçaria do filme nos pareceu a altura das vidas filmadas.
Como foi a recepção do filme pelo público nos festivais brasileiros onde ele passou e como você acha que ele pode resistir aos próximos anos (a pergunta inclusive nos olha de volta, porque também serve para o cinema: como resistir aos tempos conturbados de agora e aos que ainda estão por vir)?
A estreia em Tiradentes foi muito emocionante, o público da cidade e do festival foi extremamente caloroso com Caio, Karol, Ronaldo e Junior. Ali, eles entenderam o que significava fazer um filme e aproveitaram o reconhecimento oferecido pelas pessoas, mesmo que brevemente. Aqui no Brasil o filme passou nos principais festivais, tentei acompanhar quase todas as exibições. Ao longo deste ano, ouvimos muitos jovens das periferias manifestarem um desejo de se verem na tela fora do filtro da violência e da miséria fetichista. Muitos se reconheciam nos personagens, se sentiam próximos dos dilemas vividos por eles e se comoviam sensivelmente com o caminho que o filme os levava. Foi interessante lançar este filme no ano da posse do pior presente do Brasil. O cinema estava implicado em dar uma resposta urgente a escalada conservadora da extrema-direita. Com isto, a maioria dos filmes exibidos junto de Um filme de verão se engajavam nesse compromisso. Em meio a esta produção, Um filme de verão era lido quase como um filme utópico. Considerei estas impressões como elogiosas. Satisfeita que estava por um tempo, suspendendo as pessoas de um estado de letargia e pessimismo sem romantizar uma realidade e produzindo sopros e fôlegos no seio de um abismo, o que me fez pensar que temos que resistir à própria ideia – já desgastada – do que já se capturou como resistência no senso comum. Por isto, acho interessante recorrer a Leda Martins Marques, pesquisadora de performance e artes cênicas, cuja a pergunta lançada no debate sobre o filme do Torquato Neto é muito pertinente para esta conversa. Leda reflete sobre como Torquato se negou a “transformar sua estética em commodities”. E, ainda, lança uma pergunta ao fim da sua fala: Como escapar do precipício, se não inventando também a linguagem?². Colocando no diálogo com a sua pergunta, como escapar deste abismo, se não também reinventando a própria ideia de resistência? Não acho que é uma pergunta a se responder imediatamente, mas acredito na importância desta problematização para suspender as crenças já estabilizadas sobre a produção de imagens que tratam do assunto resistência. Acredito que um processo radical de reinvenção só pode se dar em conexões com outras poéticas e saberes de autoras e autores antes invisibilizados; como de tantas mulheres negras, artistas queers, quilombolas, indígenas, que vem à tona com muita força. Singularidades que desconstroem qualquer ideia fácil sobre resistência, mas que também produzem novos re-encantamentos com o mundo, para continuar existindo neste país assombrado pelo desencanto. Assim, lembramos que existem outros Brasis, que agem subterraneamente para outras direções e que podem emergir a qualquer instante.
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¹expressão usada pela pesquisadora e performance, Cíntia Guedes no debate de Tiradentes, para se referir as molduras e armadilhas de confinamento na produção de imagem representação das pessoas negras.
²palestra sobre o filme de Torquato Neto: https://www.youtube.com/watch?v=OVG8d-Mg_9M
Entrevista realizada durante o período de isolamento social imposto pela Covid-19. As questões foram elaboradas por Gustavo Guilherme da Conceição e Luciana GB. Tradução para o inglês: Letícia Oliveira.