[Este texto pode conter spoilers do filme Nós, de Jordan Peele]
Cena final, plot, desfecho da trama: Adelaide [protagonista] está presa com Red, sua cópia, no laboratório secreto onde todas os outros clones foram criados e eram mantidos, a viver o bizarro reflexo da vida da superfície. A versão em vermelho, maligna e sedenta por vingança, agarra a protagonista e prende-a em algemas: está posto o confronto decisivo da trama, que é alternado com memórias da infância de Adelaide em suas apresentações de balé, e sua cópia a seguir seus passos no subsolo da sociedade, de maneira animalesca e primitiva, como uma força que ia contra sua vontade e a obrigava a se mover de acordo com o que a superfície ditava. A cópia é o contraste do que estava posto como normal em comportamentos cotidianos da vida superficial.
O confronto físico entre as personagens ocorre numa espécie de sala de aula localizada no laboratório, e notamos na lousa um desenho que remete à única referência da superfície que a cópia de Adelaide tinha. No fundo, ouve-se uma música que se refere a movimentos de dança, o que contrasta com a luta desesperada de Adelaide por sua vida em meio à briga, enquanto o clone possui movimentos sutis, quase que leves, que seguem a canção enquanto escapa dos golpes da protagonista. Este contraste traz a sensação de que as personagens estão em um transe ritual, uma dança da morte, onde quem perde não se move mais, não dança. A seguir, a música toma um caráter diferente, com pizzicatos de violino e notas graves de violoncelo, a construir uma espécie de orquestra de cordas. Em adição a referência do balé, uma coisa nos chama a atenção aqui: enquanto a figura que deveria ser a antítese da normalidade – a cópia bizarra da humana da superfície – possui movimentos leves e calculados, a protagonista, que nos é apresentada como vítima desde o início da trama, nos traz um comportamento bastante contrastante com a antagonista, grunhindo e com movimentos impulsivos, bestiais e extremamente violentos.
O sound design possui os efeitos sonoros esperados para a cena in loco, com cadeiras sendo arrastadas, correntes e golpes, mas aqui os grunhidos emitidos pela protagonista nos fazem perceber que algo está fora de contexto, e que suas reações sonoras não são naturais. Quando Red atinge Adelaide com tesouras e foge, a ambiência sonora do fundo e a trilha sonora adquirem tensões mais evidentes. A protagonista continua a caminhar pelas instalações abandonadas no subsolo e se depara com um dormitório.
Nessa altura, a música de outrora converte-se em tensões sonoras, quase como ruídos abafados. O desenho de som das memórias de uma Adelaide ainda pequena se torna mais evidente, assim como os golpes que joga no ar. Aqui a música permanece apenas nos cortes da infância, onde Adelaide aparece a dançar, até que a sombra da antagonista surge e os violinos começam a soar tensões novamente. Neste momento, o golpe final de Red se dá, ao passo em que Adelaide prontamente a atinge no peito, finalizando a batalha-dança, vencendo ao sair com vida do confronto.
A trilha sonora para, ouvimos apenas as tesouras a cair no chão, assim como a antagonista. A mulher em vermelho cai sentada, ouvimos o sangue que começa a jorrar de sua boca, um pequeno assobio que – só entenderemos na próxima cena – atiça ainda mais a fúria de Adelaide, que acaba por enforcar sua cópia enquanto grita e grunhe, e ouvimos os ossos quebrando. Então a protagonista nos lança uma inesperada gargalhada que soa quase que maléfica, em comemoração a sua vitória; ela se levanta e vai a procura de seus filhos que estão escondidos em algum ponto daquele lugar estranho.
O que nos chama atenção neste filme são os maneirismos atribuídos aos antagonistas, cópias dos protagonistas da trama, que são bastante peculiares, animalescos e bizarros, assim como as figuras que os emitem. Na cena em questão, a antagonista perde completamente esses maneirismos, ao passo que quem os assume é a suposta vítima, protagonista.
A percepção de que algo não se encaixa na expressão corporal das personagens durante a briga nos faz entender que uma assume o lugar da outra (o que poderia ser explicado pela tensão na luta que está posta, e no descontrole causado por tal situação), mas quando ouvimos – intercalado com as cenas de dança da criança que cresceu em meio a apresentações de balé – uma música que introduz o contexto para o receptor da mensagem, e ruídos, gritos, grunhidos que nos remetem aos trejeitos da antagonista que são assumidos pela protagonista no confronto, nos trás um desfecho completamente inesperado.
A dúvida sobre essa caçada é trazida e revelada através das passagens sonoras empregadas na cena. É a narrativa sonora que entrega a mudança de papel entre as personagens e então nos revela como, quando e onde se dá a conexão entre antagonista e protagonista, bem como a verdadeira identidade de ambas, além da causa originária dos conflitos da trama.
Musicista formada pela UFES e uma das idealizadoras do podcast "Terrorias da Conspiração", atua como sound designer, arte educadora e é especializada em Arte e Tecnologia e Produção Musical.