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O tesouro e o espelho

Aproximar-se da produção cinematográfica indígena latino-americana é observar o tempo, suas marcas impressas tanto nos povos nativos quanto na terra na qual eles ainda resistem, mas é também perceber a memória não como algo estanque, tal qual um estatuto antigo que precisa ser preservado, mas como uma força atuante e em movimento, constante e ininterrupta, que constrói um tecido novo cujos fios se entrelaçam, vivos, diante de nós. 

Dos registros de maternidades possíveis à impressão sonora de uma língua mãe, que ecoa lamentos ou conselhos atemporais, todos os registros audiovisuais que compõem essa mostra exemplificam e constituem essa construção presente e perene da memória. Tudo aquilo que, aqui, pode parecer mera observação de algum passado distante, é na verdade a reivindicação de um presente digno a partir do qual se possa vislumbrar o futuro, mesmo que, nele, ainda seja necessário resistir e lutar. No contexto dessa mostra, na verdade, é impossível dissecar o tempo, pois tudo vibra e pulsa, grita e chora, finca os pés no solo e resiste, aqui, agora, em tempo presente, sob uma linguagem que se renova e nos transpassa enquanto espectadores. 

Observar esses cinemas é, também, reconhecer em nós a insuficiência de nosso olhar colonizado, viciado em imagens de fácil assimilação. É que as lógicas e os desejos da mentalidade colonizadora que nos foram oferecidos desde quando fomos crianças provavelmente nos fariam enxergar, nesses filmes, não só uma perspectiva de tempo e espaço tradicionais, o que talvez nos movesse a encaixar essas personagens como meras marcas de um passado latino-americano distante e esquecível, mas também nos impeliria a enquadrar esses povos sob uma perspectiva de ingenuidade que não lhes cabe, pois já não é possível que, depois de tantos séculos de colonização, os povos indígenas ainda se submetam a velha troca: seu Cinema (o tesouro) pela bugiganga de nossas teorias (o espelho). Não. Nunca mais. Não haverá troca. Não haverá catequese. Não haverá tradução. 

Ainda somos reféns de lógicas e pensamentos envenenados, ainda que minimamente, por uma lógica colonizada e colonizadora, enquanto a arte (e o cinema) indígena aprendeu a resistir ao tempo e às condições de opressão, violência e arrogância que, até hoje, ameaçam sua existência na terra que, antes de tudo, lhes pertence. No pranto cantado que lamenta o passado ou no sonho de fogo que prevê uma praga mundial, tudo aqui é Memória – não para arquivar o tempo, mas para resistir a ele. Estes Cinemas que aqui se apresentam são, portanto, uma maneira de tecer essa Memória, de elaborar uma linguagem que se renove eternamente e com a qual sempre se possa dizer (e, ao dizer, declarar resistência): ainda estamos aqui e não vamos sair.

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Este texto integra a Mostra Cinemas Indígenas do Festival de Cine Latino Americano El Caracol, realizado entre 16/novembro a 19/dezembro de 2020.

Pesquisador, roteirista e crítico de cinema. Dirigiu os curtas documentais "Nós" (2016) e "Minhas Mães" (2018). Colaborou como co-curador do Festival de Cinema de Vitória (2016 e 2017) É um dos idealizadores dos podcasts "Reimagem" e "Terrorias da Conspiração" e realizador das webseries "S[C]INÉDOQUE" e a ainda inédita "Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Capixaba" (em produção).

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