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Vol. 01 - Nº 01 - 2020

Reavivar a cor do sangue que ainda escorre das feridas

Há uma cisão explicitamente visível na cena que abre o documentário O Processo, de Maria Augusta Ramos. As multidões pró e anti impeachment da então presidente Dilma Roussef, observadas por uma câmera que sobrevoa lentamente o gramado do Planalto, vibram e gritam, distantes uma da outra, seus respectivos jargões de protesto. De um lado, homens e mulheres vestem figurinos vermelhos, dentre os quais é fácil imaginar uniformes da CUT, MST ou bandeiras petistas; do outro, camisas verde-amarelas da CBF que tremulam sobre corpos aparentemente irritados, uniformes esportivos que agora servem de símbolo, simplório e piegas, de uma direita pseudopatriota barulhenta e vazia de ideias.

É esse mesmo movimento de câmera que percorre os céus da capital brasileira nas cenas derradeiras do famigerado Democracia em Vertigem, de Petra Costa, nos fazendo contemplar, devidamente embebidos do tom melancólico-burguês que inunda o filme através da narração de Petra, um caos instaurado que se revela, também, na (de)formação confusa das mesmas multidões antagonistas que protagonizavam os instantes iniciais de O Processo.

O Processo, de Maria Augusta Ramos
Democracia em Vertigem, de Petra Costa

O mesmo momento político, a mesma observação que, à altura do lançamento de ambos os filmes, já poderia parecer um tanto óbvia: o país estava dividido, polarizado.

Os paralelos e diferenças que se podem traçar entre esses dois documentários nos permitem perceber a construção e consolidação de um discurso político essencialmente unilateral que, em seus vícios e apelos de linguagem, transformaram a possibilidade de mergulhar fundo nas profundezas multiformes e multifacetadas de nossa história política recente em um mergulho raso, às vezes pouco revelador. Estes dois filmes, aliados ao desespero faminto de certa esquerda ansiosa por representações palatáveis e respostas imediatas aos melindrosos golpes sofridos, alcançaram algum sucesso de público (principalmente o filme de Petra Costa, indicado ao Oscar de melhor documentário), mas não conseguem dar conta da real complexidade do jogo político que nos governa e, em sua astúcia perversa, nos torna refém.

O teórico e crítico de cinema Jean-Claude Bernardet chegou a apontar em um post no Facebook (a partir de uma conversa com a própria Maria Augusta sobre certa tensão entre ela e Petra enquanto cineastas que filmavam, ao mesmo tempo, o mesmo processo e, nessa mecânica, esbarravam uma no estilo de filmar da outra) para as diferenças estéticas e semânticas que acabariam por revelar dois modos de fazer política e cinema, entrelaçadamente.

Bernardet destaca que Petra filma muito perto das pessoas, closes do rosto, da textura da pele; cita como exemplo o material de Lula se entregando a PF: “emocionante, dramático”, ele diz. Em contrapartida o que Maria Augusta parece querer filmar, com seus planos mais abertos e enquadramentos mais amplos, é (desde seus filmes anteriores) os rituais da instituição política que promoveu todo o espetáculo patético do impeachment.

Mas é na montagem desses dois documentários que seus discursos se aproximam, principalmente na maneira como abordam as mudanças do Partido dos Trabalhadores durante a trajetória que se propõem a cobrir em suas narrativas.

Em Democracia em Vertigem, há uma visível diferença na forma de retratar o Lula carismático no sindicato dos bancários, rodeado de apoiadores, em direção à prisão, e o Lula das campanhas (a montagem mostra a evolução dos figurinos durante as campanhas eleitorais enquanto a voz de Petra, talvez em certo tom de ironia, utiliza a expressão “conciliação de classe”, termo nunca usado pelo PT) – é como se o filme tentasse resguardar e proteger a imagem do Lula carismático, tentando deixar de lado a do Lula conciliador.

Em O Processo, a sequência das alegações finais do julgamento de Dilma recorta e remonta as falas de Janaína Paschoal e José Eduardo Cardozo, de modo que elas, através do contraste das posições jurídicas e políticas que se contrapõem em discurso e postura, se complementem: Paschoal fala em “fazer sofrer a senhora (Dilma) pelo seu bem”, enquanto Cardozo, com ironia, lembra que Dilma havia sido torturada, parodiando a fala anterior de Janaína. É um jogo de cena que se dá através das palavras, mas que acaba por flagrar a fragilidade da esquerda naquele momento.

“Cada plano capta um momento da situação, mas a articulação dos dois cria nova significação: ao retomar a fala de Janaína de forma paródica e crítica, Cardoso atua dentro do território criado por ela. E dentro desse território balizado pela acusação e pela direita, ele tem um posicionamento reativo”, analisa Bernardet em outro post no Facebook.

A postura desse discurso, que se inicia no campo da política e reverbera nas linguagens do cinema, pode ser lida como defensiva, às vezes lamuriosa, porque se mostra aprisionada, atrelada ao discurso da direita.

Esse discurso perde ainda mais força quando confrontado com a potência de outros filmes, talvez menos famosos ou de menor circulação (filmes de distribuição mais restrita), que ousam olhar não apenas para um lado ou um aspecto da história, mas para feridas mais profundas de um país que, seja em suas múltiplas mazelas socioeconômicas ou em seus mais antigos e enraizados preconceitos estruturais, espelha e alimenta a insuficiência moral de nossas figuras e instituições políticas. São filmes que, desviando o foco do picadeiro do circo sem graça da política, investigam e expõem outras fontes possíveis, formadas debaixo de nosso nariz desde 1500, e apontam para o caos que, agora, nos assola.

Em Espero Tua (Re)Volta, Eliza Capai prefere se afastar desse registro dos bastidores e dos rituais institucionais adotado tanto por O Processo quanto por Democracia em Vertigem para voltar no tempo, votar às ruas, às manifestações, até o marco das marchas de julho de 2013. Ao invés de eleger um único lado, um só discurso ou um ponto de vista unilateral, Capai prefere permitir que seu filme se entregue à multiplicidade conflitante e complementar de seus três protagonistas, jovens secundaristas com visões políticas divergentes. Esse contraste potencializa o discurso do filme, pois o multiplica, lhe confere facetas múltiplas, plurais, complexas. É essa contradição entre a posição política de seus protagonistas que abrirá as cortinas e revelará o espetáculo tosco do fascismo meticulosamente planejado do governo de São Paulo, berço das manifestações daquele ano.

Espero Tua (Re)Volta, de Eliza Capai

É à partir disso, dessa dinâmica entre as personagens, que tudo se potencializa e cada cena adquire a urgência de uma manifestação política. Um encontro de movimentos estudantis, a organização de um almoço coletivo em uma escola ocupada ou uma conversa entre dois jovens negros numa calçada (onde ao fundo uma abordagem policial inapropriada literalmente reconfigura e atualiza a cena) se transformam em verdadeiras declarações, revoltadas e urgentes, a respeito da insuficiência do atual sistema político. E uma bomba explodindo se faz leitmotif do discurso. Quantas merendas poderiam ter sido compradas com o dinheiro gasto com uma única bomba de gás lançada contra estudantes secundaristas em manifestação? A pergunta ainda ecoa quando o filme acaba.

Auto de Resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho, também parece querer registrar o ritual de uma instituição, mas para isso não se atém somente às paredes, rostos e vozes do rito jurídico e se aprofunda no sofrimento das famílias envolvidas nos processos que o filme acompanha, vítimas dos chamados “autos de resistência” que serviram para justificar atos criminosos de uma polícia assassina e racista, treinada para matar primeiro e perguntar depois.

Auto de Resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho

Auto de Resistência é um dedo na ferida aberta da falida política do Rio de Janeiro, que tem a polícia militar como a ponta de uma caneta cuja tinta é o sangue de corpos negros das periferias cariocas, uma caneta manipulada pelas mãos de governos descaradamente fascistas capazes, por exemplo, de comemorar a morte como quem comemora um gol, com o agravante de transformar o gesto em um espetáculo grotesco e televisionado.

Em Martírio, de Vincent Carelli, a investigação é ainda mais profunda, remonta de tempos muito antigos e nos faz ver, ainda aberta, uma ferida ancestral, cuja observação se faz fundamental para compreender nossas origens enquanto povo.

A interminável guerra entre latifundiários e tribos indígenas é observada por câmeras que parecem muito interessadas nos corpos dos índios, em sua postura diante das ameaças do avanço do homem branco, no modo como respeitam a terra e sobrevivem dela; câmeras que se aproximam de rostos a fim de capturar suas expressões mais minuciosas.

Por outro lado, Martírio filma as instituições políticas (inegáveis agentes do interminável massacre indígena no Brasil), a uma distância segura, como se desconfiasse, ao lado dos índios, das intenções daquelas figuras políticas. As ligações que o documentário faz, através da montagem, entre latifundiários e figuras políticas é muito evidente e ressoa o que está anunciado desde os planos iniciais: não é possível ser isento e, neste caso, o único lado humanamente possível para se estar é ao lado de quem sofre, na pele, as consequências da ganância infinita de um sistema falido.

Uma sessão dupla de Martírio e Ex-Pajé (Luiz Bolognesi) comporia uma apavorante porém necessária aula sobre o poder destruidor da ganância humana, capaz de promover o apagamento de toda uma história e cultura, fundadoras do próprio povo que, a cada dia mais, esquece suas origens.

Por fim, um clássico do documentário brasileiro como Cabra Marcado Pra Morrer, de Eduardo Coutinho, parece gritar do passado, não como um artefato ou uma relíquia cinematográfica, mas como uma obra viva e pulsante que ainda tem muito a dizer. Revisitar um projeto inacabado, reconfigurando-o, transformou um filme sobre um camponês assassinado por latifundiários em um verdadeiro flagrante histórico, tanto pelo fato de ter as filmagens interrompidas por uma perseguição promovida pela ditadura, quanto pela maneira como Coutinho volta ao filme interrompido, 17 anos depois, buscando sobreviventes daquela época e acaba por encontrar a figura icônica de Elizabeth Teixeira. É dos eventos cinematográficos mais poderosos e politicamente relevantes de nossa história. É a prova em forma de filme da devastação incalculável causada pela Ditadura, mas é também a imagem emblemática de um povo que, acima de tudo, resistiu e sobreviveu.

Apesar dessa força deflagradora de Cabra Marcado e do Cinema Brasileiro, os fantasmas do Golpe Militar nos perseguiram até aqui. Forjaram suas sombras nos mais tenebrosos porões da política institucional e, agora, recobraram suas forças e esnobam o projeto identitário do brasileiro ao ponto de, com uma canetada, tentar extinguir a cultura, ignorar a arte, destruir o cinema, rebaixar tudo isso a um status que, na verdade, caberia unicamente a eles.

Talvez, portanto, ainda seja necessário revisitar Elizabeth Teixeira e sua luta silenciosa, ou observar secundaristas e ocupar as escolas com eles, ou chorar ao lado das mães da periferia e caminhar com elas, não esquecer e manter viva a memória dos nossos povos originários. Se um dia já não houver mais força para lutar e resistir em nossos corpos cansados, que reste, apesar de tudo, a potência inegável de nossa cultura, de nossa história, de nossa arte, de nosso Cinema.

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Quem me ajudou a chegar até aqui?

O apagamento negro na televisão e a lenda do herói branco

Desde que foi liberto, jogado sem qualquer auxílio numa sociedade que não o considerava sequer como gente, o povo negro sofre para ocupar espaços. Não é novidade para ninguém que a trajetória desse povo no Brasil é marcada pelo esquecimento e pela discriminação. Mesmo depois de 131 anos da abolição, a população negra ainda é atingida diariamente pelo preconceito entranhado em cada buraco da estrutura social vigente no país. Desde cedo, enfrenta-se uma realidade bem diferente daquela reservada a pessoas brancas, uma realidade muito mais dura que, mesmo com o passar dos anos, continua sem muitas perspectivas.

É abundante o número de estatísticas que provam essa teoria. Na maioria das vezes, negros são os que menos têm acesso à educação, os que ocupam cargos menores no mercado de trabalho, os que mais realizam trabalhos braçais (e, muitas vezes, desumanos), bem como os que possuem as piores moradias ou que nem mesmo a possuem. E como se não bastasse a inferioridade dentro das relações sociais na vida real, a presença negra dentro da ficção ainda obedece a uma lógica histórica romantizada de “branco salvação”.

Desde o início da televisão no Brasil, um dos grandes problemas sempre foi a ausência de representatividade, principalmente no que se refere à presença de atores, profissionais audiovisuais e personagens negras.

Quem nunca ouviu falar da polêmica que envolveu “A Cabana do Pai Tomás”? A novela, exibida no ano de 1969, trouxe o maior e mais escandaloso caso de blackface da televisão brasileira. Na situação, Sergio Cardoso, galã da época, foi escalado para viver o personagem principal da trama, um escravo. Eis o grande questionamento: por que maquiar um homem branco para que parecesse ter pele negra ao invés de contratar um ator negro? Na ocasião, inclusive, não faltavam bons nomes para ocupar o posto. Por que não escalar Antônio Pitanga ou Milton Gonçalves?

A discussão a respeito do blackface é antiga e esconde uma realidade muito comum até os dias de hoje: a retirada do corpo negro dos espaços de protagonismo na teledramaturgia.

TV GLOBO

Desde quando a saudosa Ruth de Souza estrelou nessa mesma novela, tornando-se a primeira protagonista negra da televisão brasileira, poucas obras tiveram pessoas negras como seus personagens principais. Pior ainda, é que algumas foram rejeitadas pelo público, acostumado a ver atrizes e atores brancos nesses lugar de destaque. Foi o caso, por exemplo, da personagem Helena interpretada pela atriz Taís Araújo na novela “Viver a Vida”, de 2009. Com o peso de ser a primeira Helena negra do autor Manoel Carlos, a personagem era uma supermodelo que tinha personalidade forte e vida independente. Entretanto, mesmo estampando um modelo de mulher atual e mais próxima da realidade, grande parte dos telespectadores não a aceitou muito bem, o que fez com que a personagem saísse do lugar de protagonismo e se tornasse apenas mais um papel secundário da trama, dando lugar à mimada (porém branca) Luciana, que sofrera um acidente e ficara tetraplégica, situação que não se reverteria ao fim da novela. Vale ressaltar que, durante boa parte de trama, atribui-se à Helena a culpa do acidente de Luciana, fato que tornou a personagem ainda mais odiada pelo público.

Viver a Vida (TV Globo)

Talvez a coisa mais estranha e potencialmente ofensiva já inventada na teledramaturgia (e também, em medida igualmente traumática, no cinema) tenha sido a ideia do herói branco. A noção de que a branquitude representa tamanha prosperidade que, para uma pessoa não caucasiana conseguir alcançar altos objetivos, ela precise ser “abençoada” por um branco.

Não é difícil reparar em qualquer obra televisiva que, quando um negro ocupa um cargo ou posição que, na vida real, ele usualmente não ocuparia, por trás há sempre um personagem branco — um conhecido, o patrão do pai, a patroa da mãe, aquela mulher que encontrei na rua, etc; sempre há um branco-salvador que surge não apenas para salvar o negro, mas também para evidenciar como e quanto isso esta ligado a um certo passado de sofrimento quase límbico da pessoa negra.

Isso faz lembrar a representação do escravo submisso, que sofria nas lavouras sob os chicotes mas que, de repente, por algum motivo, se via “a salvo” quando inserido numa realidade de escravidão doméstica, adquirindo supostas regalias, como se tivesse sido “promovido” e que, com o passar do tempo, incorporava nele mesmo a ideia de seus senhores, desenvolvendo indiferença à revolta de outros escravos e certa gratidão ao branco escravagista que, ilusoriamente, o libertara da senzala.

Na história da nossa teledramaturgia, há centenas de exemplos que podem ocupar incontáveis linhas de texto e anos de pesquisa. Entretanto, existe um tipo de trama que talvez seja a mais incômoda e dispensável: as tramas sobre escravidão.

Sinhá Moça (Reprodução/Memória Globo)

Ora, o enredo desse tipo de história parece ser sempre o mesmo, com pouca ou nenhuma variação. É a síntese da ideia do herói branco. Sinhá Moça, por exemplo, é um caso clássico. As duas versões da novela (1986 e 2006), ambas derivadas de um livro e um filme, mostram como a escravidão no Brasil foi derrubada graças a reunião de justíssimos homens brancos e, mais especificamente, pela corajosa mocinha branca com pouco mais de 20 anos de idade, filha de senhor de escravos, que tinha como sonho o fim desse sistema desumano. Sinhá Moça, principalmente o remake de 2006, coloca os negros em local de total dependência, em situações muitas vezes animalescas.

Obras com temáticas como essa normalmente deixam de lado toda a luta de resistência do povo negro escravizado e as diversas revoltas que esse mesmo povo impetrou, substituindo-a por um falso heroísmo branco que de nada serve.

Infelizmente, esse tipo de discurso não se restringe apenas à obras épicas. Com o tempo, a mídia começou a utilizar as subjetividades a favor do seu racismo, naturalizando essa problemática em enredos contemporâneos.

Estamos em 2019, mas a gente ainda tem muito o que mudar dentro das fábulas que fingem querem nos incluir. Precisamos gritar e lutar para ocupar os espaços da ficção, ainda que seja “na marra”. O ciclo do apagamento negro no audiovisual não acontece só quando nos proíbem de falar abertamente, na vida real, sobre problemas reis, mas também quando nos impedem de ocupar lugares dignos e de poder, atrás das câmeras ou dentro da ficção, nas histórias que nos são contadas na TV e no Cinema. Afinal, a representatividade é muito mais potente quando de fato toca a imaginação das pessoas, quando as permite reimaginar essas histórias sob outras cores, outros olhares, outras vivências, outras bandeiras.

É preciso mostrar às futuras gerações, crianças e adolescentes negros que acompanham a teledramaturgia do país, que é possível, na vida real, assim como fazem os personagens da ficção, alcançar lugares altos neste mundo sem precisar da benção de nenhum homem branco. É preciso apagar do imaginário popular a ideia estúpida e racista da subserviência negra e da gratidão imbecilizada.

É necessário e urgente normalizar a ideia de que a nossa cor de pele não influencia na capacidade de sermos donos do nosso próprio destino. Que nós podemos, sim, conhecer e trilhar, com nossos próprios pés, os caminhos do sucesso, e que podemos, inclusive, construir nossa própria estrada de maneira autônoma, independente, seja na vida real ou nos universos criados pela televisão.

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Revisitar pesadelos

Maria foge do castigo por libertar a três porcos, refugiando-se numa casa em meio a floresta onde, ao encontrar outros dois porquinhos, se converte no terceiro. Aqui, diferente da fábula original, as paredes não são a barreira que os protege do predador, mas sim uma tela de memórias, traumas e medos. De imagens mutantes que transbordam das paredes tomando diversas formas.

O longa-metragem La casa lobo (Cristóbal Leóne Joaquín Cociña, 2018) revisita e recria as imagens e narrativas que perpassam a história da Colonia Dignidad, local de torturas que teve como sede o Chile no período do regime militar. Após a saída de Pinochet (que não foi o fim do pinochetismo), vieram à público informações antes censuradas sobre os abusos cometidos durante os 12 anos de funcionamento como campo de extermínio. Desde então, muito se retratou em filmes, livros, filmes e obras de arte em geral.

La casa lobo vai além, transformando pinturas e instalações num filme stopmotion cuja narrativa utiliza um estilo denso e sombrio – tal qual sua história – para trazer à luz essas feridas ainda abertas na história. Os cenários foram construídos e expostos em museus e galerias do Chile, Alemanha, Países Baixos, México e Argentina, num período de cinco anos. Apesar da construção em e por diversos países, La casa lobo reivindica sua chilenidad; principalmente ao atualizar as poucas referências de longas de ficção que tratam sobre a Colonia – apresentada principalmente em documentários. Atualmente a referência está concentrada em Colonia (Florian Gallenberger, 2015), filme alemão que, apesar de se passar em território sul-americano, é falado majoritariamente em inglês.

Logo, se trata de um filme amplamente atravessado por restaurações. Principalmente ao lidar com os traumas através das fábulas, constantemente referenciando-se nos irmãos Grimm. Há diversos elementos que nos remetem a essas histórias, como a presença de um narrador off cujo discurso se faz simples, como se contado a crianças. Inserindo morais, e apresentando a polarização entre bem e mal contida nos contos de fadas, aqui sem final feliz. A voz do narrador com seus traços alemão, nos remete ao fundador da Colonia, Paul Schäfer. Pretendendo-se, portanto, que a história de Maria fosse contada a partir de seu torturador, tendo a figura do lobo como elemento central. Podemos lê-lo como a encarnação do próprio “Tio”, ou, enquanto locutor, encarna numa espécie de simbologia disciplinadora para definir os espaços fora dos limites da Colonia como demasiado perigoso, pois “afuera hay un lobo”.

Como enunciaram os realizadores, e se Paul Schäfer fosse uma espécie de Walt Disney? O longa traz, de maneira complexa e até angustiante, esta inversão talvez impensável desde uma análise crítica, mas que, a partir deste jogo de alteridades, acaba por alcançar uma substancialidade de tensões.

E, por outro lado, se exprime na manipulação imagens televisivas, elementos chave dentro da obra que além de estarem presentes de forma constante entre os personagens, recupera imagens de arquivo produzidas pela Colonia para transformá-las numa hipotética propaganda televisiva divulgada à época. “Seguramente usted ya há tenido La oportunidad de probar el inigualable sabor y textura de La miel La Colonia”. O lugar é vendido como um paraíso afastado, onde o trabalho em comunidade é a ordem. Tão doce quanto o mel. De tal maneira que afirmam “La leyenda oscura que se há creado al nuestro alrededor se debe principalmente a la ignorancia. Son ignorantes quienes temen a uma comunidad que permanece pura y aislada”.

Essa lenda escura ao qual se referem é apresentada no longa a partir da história real de uma moradora da Colonia que, tal qual a personagem, conseguiu escapar do campo mas não pôde se readequar ao mundo “lá fora”. O filme, desta maneira, se constrói também presumindo certa dificuldade – quando não impossibilidade – de superação de traumas tão viscerais. A relação de Maria, como um escape, se torna profundamente maternal em seu convívio com os porcos e essa transição, em mimese, transforma os animais em crianças. Assim como em todo o filme, há transmutação de materiais, formas, matérias, técnicas e símbolos, realçado principalmente pelas emoções conflitivas que se manifestam.

Até que as esperanças, por fim, se convertam e libertem como pássaro, e o corpo, domado, se configure árvore. Não à toa, enquanto escrevo este texto, Chile está em peso nas ruas, questionando todo esse passado, que influi intensamente no presente e torna incerto o porvir. Que os símbolos de opressão sejam destruídos mas não esquecidos, pela autonomia dos nossos corpos e mentes.

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Entre Hong Kong e Heptapods

Amor à Flor da Pele (Wong Kar Wai)

Hong Kong, 1962. Uma mulher visita um apartamento a fim de conseguir um quarto para viver com o marido. Em seguida, um homem sobe ao mesmo apartamento, passa pela mulher e pergunta, também, se há um quarto para ele viver com a esposa. A senhoria diz que não, mas que, talvez, na porta seguinte, seus vizinhos tenham um quarto vazio. O homem vai até a porta indicada e aperta a campainha. Corta. Até aqui, estávamos condicionados a planos fechados e internamente abarrotados, às vezes emoldurados, dando pouco espaço visível para que os personagens se movimentassem. A cena seguinte é uma montagem paralela das duas mudanças, do homem e da mulher. Continuamos confinados. No plano em que trabalhadores carregam um móvel por um corredor, conseguimos distinguir quatro ou cinco personagens, mas o espaço pequeno e a banda sonora nos fazem acreditar que há muito mais pessoas tentando ajudar. Essas são as cenas iniciais de Amor à flor da pele (2000) de Wong Kar Wai. E isso que aqui, de certa forma, comentei é a mise-en-scène, ou, como chamarei neste texto, a encenação.

A história da encenação nasce junto com a história do cinema. A habilidade de pôr em cena começa com o primeiro plano de todo filme já feito. Quando uma posição de câmera é escolhida, começa o processo de encenar. Se a estratégia continuará, já é outra história. Mas o que podemos ter certeza é que mesmo o filme mais comercial, o mais picotado e mastigado, começa com um plano que foi escolhido pelo diretor ou diretora a fim de nos preparar para algo.

Encenar, para o teórico e crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. é “a arte de colocar os corpos em relação ao espaço e de evidenciar a presença do homem no mundo ao registrá-lo em meio à sua vida”. Oliveira Jr. escreveu um belo livro sobre encenação. Ele faz uma cartografia dos teóricos que a estudaram, apontando suas principais ideias e confabulando ele próprio a respeito do tema. Me interessa especialmente a última parte dessa citação: “registrá-lo em meio à sua vida”. Pois todo filme é sobre a relação de um personagem com o espaço e sobre sua presença no mundo. O mais complicado de uma realização cinematográfica é conseguir filmar a vida de um ou mais personagens. Filmar essa vida é, em curso e em resultado, a encenação.

Em termos mais concretos, encenar é: escolher uma posição de câmera e se ela terá movimento, posicionar os elementos cenográficos em relação aos personagens, dirigir a direção de fotografia a iluminar as cenas em favor do cenário e da subjetividade do diretor(a) e dos personagens, dirigir os técnicos de som a captar aquilo que será mais importante para a cena e para o filme, dirigir os atores a seu modo de interpretar em relação a totalidade do filme; tudo isso para, à priori, controlar o ritmo interno da cena, pensando no ritmo de todo o filme que se formará no processo de montagem.

Eu diria que, além da vida, o ritmo seria outro resultado a se alcançar com a encenação. O ritmo interno de uma cena específica, se estiver em consonância com o das demais, constrói não só a sua própria força, mas também a força de todo o filme. Esse ritmo seria a velocidade com que as coisas acontecem? Até certo ponto sim, mas é mais que isso. Ele é o controle das emoções dos personagens durante a cena. Controle dos gestos e dos olhares. Do andar. Do psicológico. Etc.

Assim se estabeleceu a encenação durante a história do cinema. O filme mudo evoluiu sua linguagem até alcançar perfeição com Aurora (1927), primeira produção hollywoodiana de Murnau. No início do cinema falado é lançado M, o vampiro de Dusseldorf (1931) de Fritz Lang, onde já era possível observar as mais eficientes estratégias de encenação usadas em um filme de suspense assustadoramente atual.

M, O Vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang)

Os anos passam e os estudos acerca da encenação se profundam. Na França, um grupo liderado por Michel Mourlet radicaliza o entendimento de mise-en-scène, propondo limites mais diretos, endurecendo o que poderia se dizer ser um bom filme. Estes eram os mac-mahonianos, críticos e cineastas que frequentavam o cinema Mac-Mahon, em Paris. No saguão do cinema estavam os retratos dos quatro cineastas que eles consideravam serem os únicos a honrar a arte da encenação: Raoul Walsh, Otto Preminger, Joseph Losey e Fritz Lang. Eles diziam que tudo está na mise-en-scène. Mourlet vai defini-la como “uma força, uma tensão, que é condicionada pelo quadro e pela lente da câmera”.

Ao fim dos anos 1980 e o início dos 1990 o cinema passava por uma crise identitária relacionada a um assunto que à primeira vista não estaria diretamente relacionada com a encenação: o realismo. Após passar por uma fase de glória nos anos pós Segunda Guerra Mundial, o realismo foi condicionado ao maneirismo e ao pós-modernismo cinematográfico. A essência se perdeu. O realismo só voltaria ao centro da discussão com cineastas como Tsai Ming-Liang, Claire Dennis, Jia Zhangke, Béla Tarr, Gus Van Sant, entre outros, que nos anos 1990 realizariam filmes que incitariam a pergunta: estaria a encenação desaparecendo?

Mas essa questão não deveria ser considerada em uma perspectiva pessimista ou negativa, pois mesmo com a proposta fílmica desses novos realismos estando distante do que se entendia como encenação, a significância e o sentimento da cena apareceriam de outra forma, seja pelo viés contemplativo (Sátántangó, Plataforma, Vive L’amour) ou pelo sensório (Chocolate, Elefante, Rosetta). Nessas estratégias, a vida não é expressamente dirigida em cena, mas sim espelhada. Para tanto, os longos planos de lentes abertas serviriam para transformar o que entendíamos como ritmo e propor uma nova forma de sentir o filme.

Mas, assim sendo, se não há ritmo, haverá encenação? O problema é que alguns desses filmes se baseiam em significados espaçados demais, apostando num entendimento quase acadêmico de todo e qualquer espectador. Isso também resultaria numa noção de desaparecimento da encenação como antes conhecida.

Outra discussão acerca dessa morte da encenação está também no constante crescimento da produção de filmes hollywoodianos, de enormes blockbusters. David Bordwell vai questionar a desnecessária objetividade da planificação de alguns desses filmes em seu livro Figuras Traçadas na Luz, ao analisar uma cena de diálogo de Jerry Maguire (1996). Ali, são filmados os seguintes tipos de planos para a cena: close em cada um dos personagens, plano conjunto da conversa, planos detalhes de cada um dos personagens. Esse sistema objetivo, de acordo com Bordwell, acabaria com a possibilidade de imprimir significado à cena, como se bastasse apenas contar uma história o mais rápido possível, sem sentimentos e sensações, ao espectador.

Mas ainda há quem tente, mesmo com todas as reutilizações e reimaginações da mise-en-scène, utilizá-la de maneira subjetiva e sincera em meio essas duas vertentes. Abbas Kiarostami e seu Gosto de Cereja (1997) trazem ao cinema contemplativo um desdobramento: um filme cujo ritmo é pautado pela pulsação subjetiva do personagem principal. Em uma planificação simples e eficiente, permanecemos em grande parte das sequências condicionados a um jogo de planos e contra-planos de diálogos, estratégia que encontrará lastro no estado emocional do Sr. Badii, o protagonista, um homem que procura alguém para lhe assistir em seu suicídio. Ora, como traduzir isso em filme? Não há uma redenção em jogo, não há uma história de superação. O que Kiarostami filma, aqui, é uma busca que parte da convicção de que não há nada mais a se fazer neste mundo. Quando um trabalhador questiona Badii de sua decisão suicida e tenta convencê-lo do contrário, Badii responde que aquele homem pode até entender sua dor, mas jamais será capaz de senti-la. De igual modo, nós nunca conseguiremos senti-la. É por isso, provavelmente, que o filme nos confina ao carro de Badii, aos diálogos que ele traça com homens que irão ajudá-lo ou não, e a sua busca por dar fim a si mesmo. Mas mesmo sem uma remissão, ao final, Kiarostami ainda nos deixará com uma dúvida.

Gosto de Cereja (Abbas Kiarostami)

Há um ritmo em Gosto de Cereja que o diferencia dos demais exemplares dos novos realismos, pois ele aposta no personagem e traça cada plano pensando nele, por e através dele. Essa é sua estratégia mais eficiente.

Claire Dennis aposta no sensorial para construir Bom Trabalho (1999), se utiliza do espaçamento da história e dos significados de maneira a deixar símbolos que sempre nos lembrem o que está acontecendo: aqui, temos uma história de hierarquia, ciúmes e repreensão. Um capitão da Legião Estrangeira tenta proteger um soldado prodígio de um sargento nocivo. Dennis investe os sete minutos iniciais jogando com o fluxo de sentimentos das cenas antes de fazer o enredo andar de fato, e quebra a expectativa de um filme sobre militares quando inicia com uma cena empolgante e dançante numa boate em Djibouti. Isso se revelará essencial, pois já nos apresenta como se dará a encenação durante todo o filme. Temos uma planificação que exalta os corpos filmados dos soldados, conflitos narrativos que encontram seus maiores embates em olhares trocados, um heroísmo não espetacularizado e uma disputa entre capitão e sargento que às vezes é simbolizada por uma partida de xadrez ou de sinuca. Dennis filma a repreensão de sentimentos dos personagens; amizade, homoafetividade, religiosidade. Por encher a história com esses símbolos, o filme não perde o ritmo proposto pela diretora e, portanto, não perde encenação.

Há muitos filmes que podem ser considerados parecidos com Bom Trabalho, mas a diferença é que, aqui, a diretora não está satisfeita em espelhar a vida, filmando planos longos e abertos que emulam o cotidiano. Ao tentar fazer isso, muitos realizadores apenas conseguem filmar o insuportável, o que poderá ser (ou não) bem recebido em alguns festivais ou circuitos fechados. Claire Dennis, no entanto, dirige sua subjetividade e a subjetividade de seus personagens.

Bom Trabalho (Claire Denis)

Alguns realizadores darão atenção especial à aspectos técnicos específicos de uma produção. O som, por exemplo, sempre fez parte da encenação. Há construção de encenações ontológicas cujo sucesso dependeu essencialmente do desenho sonoro. Em Daunbailó (Jim Jarmusch, 1986), numa das partes da fuga do personagem de Roberto Benigni, o personagem se encontra sozinho, abandonado pelos seus companheiros; no minuto seguinte, a câmera permanece em Begnini, amedrontado, enquanto ouvimos a floresta, o rio, os cachorros latindo, os policiais se aproximando, até passos mais intensos serem ouvidos e seus companheiros retornarem para ajudá-lo. No conhecidíssimo Vá e Veja (Elem, Klimov, 1985), por pelo menos meia hora a trilha sonora é prejudicada por uma bomba que cai próximo ao protagonista, e ouvimos durante todo esse tempo um som distorcido e irregular, que vai retornando ao normal aos poucos, com um zunido constante.

Pode soar clichê falar que a obra da cineasta argentina Lucrecia Martel é pautada por construções sonoras muito planejadas, mas não há como escapar de referenciá-la quando a encenação é movida e tão fortificada por um único elemento. Em A Mulher Sem Cabeça, lentes fechadas colam a protagonista Vero aos locais por onde ela transita, tornando-a indissociável da história que a persegue. Em um momento de distração ao volante, Vero bate com seu carro em alguma coisa. Na batida, ela machuca sua cabeça, mas ignora o que atropelou e vai embora. No momento da batida, começara a ocorrer uma mudança na subjetividade sonora da personagem, causada tanto pelo trauma físico, quanto pelo psicológico. Será que ela matou alguém? A dúvida é mostrada pelo silêncio e pela passividade de Vero, pelos inúmeros planos em que ela está de costas, pelos sons que hora estão longe, hora estão perto,às vezes distorcidos, às vezes com um zunido baixo e constante. Essas estratégias fazem pulsar o psicológico de Vero, fazem pulsar a sua vida durante o período em que o filme se passa.

A Mulher sem Cabeça (Lucrecia Martel)

Dennis Villeneuve, diretor atualmente nas graças do mercado de Hollywood, após impulsionar sua carreira com Incêndios, em 2010, demonstrou aos executivos americanos que poderia dirigir filmes de grande orçamento com eficiência. Fez em sequência Os Suspeitos (2013) e A Chegada (2016).

Expressar suas idéias em produções de grande orçamento do mercado americano não é algo fácil, muito menos fazer de um filme que chega quase pronto em suas mãos um filme verdadeiramente seu. Há relatos de produtores e executivos que ficam 24 horas por dia no pé de um diretor para que determinado filme não saia dos caminhos pré-determinados pelo estúdio.

Em seu livro Esculpir o Tempo, Andrei Tarkovsky diz que aquele diretor ou diretora que faz um filme comercial para só depois fazer o seu filme pessoal, na verdade, nunca vai fazer o filme pessoal. Levando isso em conta, fazer A Chegada deve ter sido um feito e tanto para Villeneuve. Nele, a encenação é emocional e fisicamente interligada ao enredo, indissociavelmente. Resumindo, algumas naves alienígenas pousam na Terra em diversos pontos do planeta e o governo americano chama a linguista Louise Banks e o cientista Ian Donnely para ajudá-los a estabelecer contato com os seres que chamaram de heptapods. Quando consegue desvendar e compreender a linguagem desses seres, Louise explica que o modo de escrita daqueles aliens é circular, eles não escrevem uma sentença de modo gradual, mas de uma única vez; é como se tentássemos escrever uma frase com as duas mãos, movendo-as simultaneamente, já sabendo exatamente o que escrever, do início ao fim, e o tamanho da frase. Mais tarde, entendemos que este tipo de linguagem também está ligada ao modo como os heptapods conhecem e percebem o tempo: eles não vivem sua vida um dia após o outro, mas toda ela de uma vez, sentindo tudo que sentirão durante toda sua extensão, sabendo o que acontecerá em todos os momentos dela.

Desde o começo desse A Chegada, Louise sonha com uma vida em que ela tem uma filha, uma filha morreu de câncer. Inicialmente, entendemos que esse é o passado da personagem. Mas quando Louise começa a se aprofundar na linguagem alienígena, seu companheiro Ian pergunta: “Você está sonhando na linguagem deles?”. Sim, logo saberemos: ela está sonhando com o futuro.

A Chegada (Dennis Villeneuve)

Villeneuve transforma esse conceito no princípio da encenação de seu filme. Desconfiamos desde o início que Louise é uma personagem carregada pelo trauma de perder uma filha, percebemos a solidão e a soturnidade que ela carrega consigo e como isso afeta os ambientes e as ações que nos são mostradas. De início, a chegada das naves espaciais não é espetacularizada, acompanhamos Louise caminhar pelas notícias e suas reações como se fossem apenas mais um dia comum em sua vida. Quando Louise é chamada pelo governo e adentra a um novo mundo, Villeneuve nos mostra a personagem desfilando, reagindo aos poucos as novas informações. Deixamos de estar ao seu lado para estar ao lado da situação. O que nos mantém presos ao subjetivo de Louise são as constantes visões de sua filha. Estamos vivendo o círculo de sua vida sem saber. Assim como ela, que sonha na linguagem dos alienígenas a medida que a compreende, nós também absorvemos a encenação ao mesmo tempo em que aprendemos a escrita/linguagem dos heptapods pelos olhos de Louise, principalmente porque Villeneuve filma a partir do que cada cena pede, a partir do que cada situação exige da câmera e do som – como na sequência do primeiro contato com a nave, onde muitas coisas são filmadas com lentes abertas que distorcem a imagem, tornando tudo ora maior, ora esquisito, estranho, enquanto o som passa de uma trilha musical soturna ao silêncio perigoso para potencializar a experiência da sensação de adentrar um lugar, um mundo, completamente desconhecido.

Nenhum estilo é melhor que o outro. Propostas são diferentes e cabem a diferentes públicos. Há quem acredite na morte da mise-en-scène, no fim da encenação, mas talvez seja, ainda, necessário questionar essa sentença. Afinal, mesmo quando filmes parecem desprovidos de tantas estratégias de encenação, não é exatamente ela que nos faz lembrar, sutilmente ou não, que estamos diante da vida em movimento de uma personagem?

Se morrer a encenação, como voltaremos a sonhar, vez ou outra, nessa linguagem que, apesar de tão distinta da que utilizamos no dia-a-dia, nos permite experimentar mistérios (do mundo, da vida e do tempo)?

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Editoriais Vol. 01 - Nº 01 - 2020

Reimaginar…

Refilmagens, recomeços, sequências, atualizações, novas versões das histórias mais contadas, dos mais antigos personagens. Perseguindo constantemente um objetivo de reinvenção, a TV e o Cinema parecem cada vez mais interessados em revisitar e/ou atualizar velhas imagens. Termos como remake e reboot tornaram-se populares e rendem discussões e teorias das mais variadas, além de terem se transformado em fontes muito rentáveis de entretenimento. Nesse sentido, até mesmo questões políticas muito caras ao nosso tempo podem ser engolidas pela lógica de mercado da indústria audiovisual para que possam ser devidamente embaladas para consumo fácil do faminto espectador contemporâneo. Dessa forma, conceitos como representatividade ou subjetividade podem ser esvaziados e/ou mascarados a fim de assumirem formatos mais palatáveis.

Talvez, portanto, seja necessário observar com cautela essa figura que se (re)desenha no mapeamento desse audiovisual hegemônico contemporâneo, questionar e ressignificar o que está posto a fim de apregoar a existência (e resistência) de outros olhares, outras percepções, outras vivências.

Como, dentro dessa lógica, corpos, vidas e culturas não hegemônicas tem sido representadas? Como essa tendência audiovisual contemporânea atualiza (ou não) as questões que propõe revisitar – cinematográficas, dramáticas, estéticas, narrativas, mas também sociológicas, filosóficas, políticas, psicológicas – e de que maneira isso pode (ou não) influenciar o imaginário coletivo? É possível traçar outra cartografia dessa tendência a fim de apontar alternativas que, apesar de fazerem parte desse tempo, acenam com alguma originalidade e potência para outras propostas e possibilidades?

O objetivo dessa primeiríssima edição é (re)pensar filmes, séries, novelas, etc. que se propõem a revisitar histórias já contadas, personagens já representados, dilemas já abordados ou memórias e abordagens muito presentes no imaginário coletivo por causa do audiovisual; é analisar a potencialidade desse processo de revisitar e atualizar imagens, reconhecendo ou desconfiando da popularidade dessas produções; é, também, questionar as hegemonias de produção que permitem que, mesmo quando se prestam a reimaginar uma obra, permanecem propagando conceitos envelhecidos e ultrapassados.

Nesta edição: novas propostas de encenação apontam para possibilidades de renovação no cinema contemporâneo; velhas fábulas se atualizam a fim de contar a história oculta da opressão de um povo; uma desconfiança inicial a respeito da representação do negro na televisão brasileira e o surgimento do mito do herói branco; provocações a respeito do documentário político (ou a política no documentário) brasileiro contemporâneo. Além disso, sessões livres de fluxo contínuo recebem textos sobre a relação dos leitores com o audiovisual e de profissionais da área e sua experiência no mercado; críticas de cinema e tv e um artigo especial sobre o prolongamento da experiência cinematográfica na estreia da Seção Painel.

Reimaginar é, também, duvidar, reconstruir, atualizar. Reimaginemos, então.