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Aftersun, de Charlotte Wells

É complicado filmar memórias. Dentro do universo cinematográfico, em mais de cem anos de cinema, artifícios de tudo quanto é jeito já foram pensados e realizados por diretoras e diretores para materializar em tela o que é uma memória. E falo de memória como algo que os personagens se recordam, uma lembrança que está ligada às suas motivações, sentimentos, ações. Pois, em uma história, uma memória não deve ser exposta de modo gratuito. Seja com o mais simples e poderoso recurso do flashback convencional, como usado em Lost (TV, 2004-2010); passando pelos planejadíssimos flashbacks de Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) ou Bom Trabalho (Claire Denis, 1999); nas misturas de passado, presente e futuro de A Chegada (Denis Villeneuve, 2016); ou no recurso do falso found footage como em Lake Mungo (Joel Anderson, 2008).

Pois em 2022 surge uma obra capaz de trazer novas discussões sobre este recurso narrativo. Aftersun é o primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells e conta sobre Sophie, uma mulher que remexeu em gravações de uma antiga câmera digital para encontrar filmagens dela com seu pai, Calum, durante férias que aconteceram 20 anos antes. Mas o filme não se demora no que seria o “atual”, nas cenas de Sophie adulta. Aliás, para entender que ela está revendo as imagens há apenas um plano, bem no comecinho do filme. Estamos vendo imagens de uma das gravações e, de repente, percebemos o reflexo de Sophie na tela da TV, se levantando. Essa cena, aliada aos efeitos imagéticos e sonoros de manuseio de uma câmera digital, são gatilhos mais que suficientes para sacar que, a partir de agora, vamos entrar nos fios de memória muito particulares da protagonista.

Alternando entre cenas que são as gravações e cenas filmadas a modo convencional, rapidamente dá para entender porque Sophie está buscando rever essas memórias. Há um tipo muito especial de relação dela com seu pai. Apesar da típica história do pai que não mora com seus filhos, Calum se mostra alguém ressentido e nem um pouco orgulhoso dessa distância, o que faz com que cada momento passado com Sophie se multiplique por modo de seu carinho, de sua atenção e de sua cumplicidade. E Sophie, como é uma criança, não pensa muito nisso, ela apenas vive os momentos. E é quase palpável a influência de Calum sobre Sophie. A menina parece emular, a seu próprio modo, os jeitos e os pensamentos do pai, ao mesmo tempo que confronta alguns e estabelece novos e originais. A Sophie escrita por Charlotte Wells é uma persona em desenvolvimento, construindo sua própria personalidade.

A conexão entre pai e filha nos parece tão forte que, vinte anos depois, Sophie parece se lembrar minuto a minuto daquelas férias. Não há aqui uma dúvida do que era o relacionamento dos dois, há certezas. As dúvidas ficam para os momentos que ela, quando criança, não consegue ver, nos problemas pessoais e psicológicos que Calum aparenta ter. E, quando conseguimos ter algum vislumbre dessas dúvidas, é quando Sophie apenas imagina o que aconteceu. Mesmo no momento de maior rompimento entre os dois, o dia seguinte mostra que provavelmente não foi a primeira vez que eles se separaram assim e que Sophie já entende boa parte do que deve fazer. Ainda assim, há as desculpas, os arrependimentos. Se o roteiro costura essas memórias, Paul Mescal e Frankie Corio, os atores protagonistas, as materializam. É um trabalho sensível e muito apurado dos dois. A melancolia se mistura com a felicidade em Aftersun a partir de suas atuações.

O filme propõe a inversão do que é presente e passado em um filme. O passado é, em grande parte das histórias, um fator subordinado ao presente, mesmo que sua importância seja tão grande quanto os fatos que decorrem no tempo presente do filme. Já em Aftersun, o presente é que é acessório do passado. Pois essas memórias de Sophie se tornam elemento fílmico palpável, são gravações que se tornam a vida, que retornam a ser gravações, e voltam novamente a vida, ligando-se à Sophie vinte anos mais velhas, uma Sophie que tem saudades, remorsos e felicidades ao rever suas férias com o pai. A memória escrita e filmada por Charlotte Wells é mais do que um longo filme em flashback. Ela é o desejo da protagonista, sua vontade de viver e reviver.

PH Martins é originário do interior do Espírito Santo, estudante de Cinema e Audiovisual da Ufes. É diretor, roteirista e produtor, seu último curta metragem, o documentário "Os Que Esperam", foi exibido no 26º Festival de Cinema de Vitória, em 2019.

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