Os corpos que constantemente compõem as imagens dos filmes de Apichatpong Weerasethakul estão quase sempre envolvidos por uma aparência de sonho, fábula e mistério. São vultos fantasmagóricos que transitam entre a luz e a sombra, seja na sequência final de Mal dos Trópicos ou em toda a concepção visual de Tio Boonmee; no movimento hipnótico das chamas em Phantoms of Nabua ou na emblemática cena que observa a doença/sono dos soldados em Cemitério do Esplendor: tudo aparenta pertencer a um universo que só existe quando fechamos os olhos.
Memória, porém, é um filme que começa com um despertar. Em contraluz, uma figura humana recém acordada (por um estrondo sonoro que nós, espectadores, também ouvimos) se levanta da cama e perambula pelo cenário. A princípio, Jessica é apenas uma silhueta esguia, sombria e misteriosa, ainda sem rosto, que se move lentamente pelo chiaroscuro da cena com movimentos incertos que sugerem certo estado de dormência, como em um pós-transe, como uma alma que acaba de regressar ao seu corpo físico.
Como no sonho mais ordinário, é necessário algum esforço para (re)conhecer a face de Jessica rodeada pela penumbra. E até mesmo quando o filme avança e já reconhecemos o rosto inconfundível de Tilda Swinton, que aqui assume uma expressão bastante diferente de outros trabalhos entre os tantos que já realizou em sua carreira, o filme insiste em registrá-la quase sempre como essa silhueta fantasmagórica que flutua pelas ruas e lugares de Bogotá. Talvez não chegue a ser um corpo habitado pelas incertezas de um fantasma, como os alienígenas de Kiyoshi Kurosawa em Antes que Tudo Desapareça (vazios, em busca de significados), mas é certamente um corpo perturbado pelo arrebatamento daquele primeiríssimo sonho, naquela primeiríssima cena. Nesse sentido, é mais provável que Apichatpong tenha bebido na fonte de outro Kurosawa, o Akira, especificamente de seu Sonhos, não pela expressão surrealista daquelas imagens, tão coloridas e por vezes abstratas, mas pela investigação do que há de material nos mistérios que habitam o subconsciente.
É essa perturbação da protagonista, inclusive, que se transformará em uma espécie de obsessão e, consequentemente, em força-motriz da narrativa. O barulho estrondoso da cena inicial se converterá em leitmotiv dentro da forma fílmica, quase sempre acompanhado de imagens dominadas por certa incompletude e incerteza, imagens que nos devolvem indagações que elas mesmas provocam — que barulho é esse, afinal? de onde ele vem? mais alguém o pode escutar?
À medida em que esse leitmotiv sonoro invade e preenche o filme, a tecitura narrativa se desfaz. Se, em determinada cena, um cachorro sonhado por outra personagem se materializa diante dos olhos de Jessica, provocando nela um visível espanto, em outra essa figura surgirá pacificada, dormindo ao seus pés enquanto ela, sentada tranquilamente em um banco de praça, recita um poema de sua própria autoria. E quando o filme, em si, parece finalmente aceitar seu próprio mistério sem querer desvendá-lo, é que a obra de Apichatpong transcende. Som e imagem, enfim, dialogam em harmonia e o que outrora só se podia ver de olhos fechados, se revela na superfície da tela.
Memória, então, resgata uma conexão universal que não está ligada à globalização, à tecnologia ou às angústias intermináveis da contemporaneidade, mas ao que há de mais sensorial na humanidade. Suas imagens parecem propor uma regressão ao subcutâneo, ao primário, uma viagem ao passado e ao futuro ainda aqui, no tempo presente; uma espécie de sonho comum que interliga o homem e as coisas em uma relação de afeto entre a memória do mundo e a memória mais antiga da existência humana: ainda no ventre, estrondos extra-uterinos aos poucos nos despertaram, anunciando a iminência da vida.
Na sequência que precede as cenas finais, Jessica pergunta a um pescador se ele se lembra dos próprios sonhos, ao que ele responde com certo ceticismo, como alguém naturalmente incapaz de sonhar. Mas o pescador afirma ser capaz de ouvir o que as pedras falam e, compreendendo o que elas contam, pode observar e habitar o mundo em outro ritmo, em outro estado de percepção. É como se esse homem fosse capaz de sonhar apenas quando está de olhos e ouvidos abertos.
Para ouvir a voz das pedras, portanto, talvez seja preciso regressar ao interior da caverna e recordar daqueles sonhos já esquecidos. O olhar, a audição e a percepção atentos ao mundo, aos silêncios e aos sons que nos rodeiam entre luzes e sombras que, finalmente e desde o princípio, anunciam os mistérios e a memória da existência humana.
Pesquisador, roteirista e crítico de cinema. Dirigiu os curtas documentais "Nós" (2016) e "Minhas Mães" (2018). Colaborou como co-curador do Festival de Cinema de Vitória (2016 e 2017) É um dos idealizadores dos podcasts "Reimagem" e "Terrorias da Conspiração" e realizador das webseries "S[C]INÉDOQUE" e a ainda inédita "Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Capixaba" (em produção).