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Vol. 03 – Nº 06 – 2022

O estilo Jane Campion

Filmes devem ficar na sua memória. E muitas vezes ficam por um aspecto específico ou outro, o que ainda é bom, mas a melhor sensação é quando ele gruda na sua mente pela sua totalidade, pelo que te faz sentir, pensar, refletir, etc. Os filmes que marcaram a história conseguiram reproduzir esse efeito nos espectadores de modo perene, prolongado. Desde que eu o assisti em 2021, Ataque dos Cães, de Jane Campion, entrou na minha mente dessa maneira.

Meu primeiro contato com os trabalhos da diretora neozelandesa foi com a série Top of the Lake, em 2013. Um trabalho que, junto com Bom Trabalho de Claire Dennis, me fez conhecer um outro tipo de narrativa para além dos filmes mega populares que minha versão mais jovem gostava de ver. Top of the Lake foi, para mim, uma introdução ao estilo que viria a ser trabalhado em Ataque dos Cães. Depois de assistir ao filme, senti vontade de rever a série e engatar em sua segunda temporada, China Girl, e tive o que me proporcionou, ainda, uma nova experiência.

Existe uma fatia da crítica que classifica Ataque dos Cães como “filme de arte” no vício de tentar justificar seu ritmo lento, seu tipo de roteiro elipsado e sua direção profunda. Parece que só assim, sob essa etiqueta, podem falar bem do filme. Primeiramente, a expressão “filme de arte” pode soar completamente imbecil quando serve apenas para diminuir ou condicionar a arte cinematográfica em determinada linha de produção, determinada grife. Ora, os domínios do cinema, que o fazem ser entendido como uma arte, deveriam bastar para qualquer tipo de filme. Me parece que falta a esse tipo de crítico uma mínima bagagem menos generalista e superficial, mais aprofundada, a fim de fugir da pretensão de classificar um filme dentro de uma vertente que ele mesmo criou em sua cabeça. Basta carregar sua bagagem minimamente e verá que não há nada de “difícil” em Ataque dos Cães. O que existe é um trabalho de roteiro, encenação, direção – e de todos os outros aspectos – muito bem elaborado e planejado nos mínimos detalhes.

Ataque dos Cães começa quando Phil, um fazendeiro durão, trava uma guerra de ameaças contra Rose, a nova esposa do irmão, George, e seu filho adolescente chamado Peter. Há, em todo o filme, uma forte influência do cinema clássico e até do auge do cinema mudo. A história será contada para quem foi fisgado e está dedicado a ela. Todas as entrelinhas são apresentadas na primeira metade e, em seguida, são desenvolvidas lenta e detalhadamente, até cada uma delas chegar ao seu objetivo dramático final, umas com mais força narrativa do que outras. A questão do antraz, a relação dos irmãos e suas lembranças de seu antigo mentor, a sexualidade de Phil, as intenções de Peter, esses desenvolvimentos poderiam até ser feitos de modo seguro dentro do roteiro: apresentar personagens, vagar de uma cena a outra e ir crescendo, fazendo disso o próprio andamento do filme. Mas não é essa a intenção ou o estilo de Jane Campion. Nessa narrativa, seu objetivo principal não é nos entregar respostas, mas nos guiar através das dúvidas.

O que significa Peter procurar animais mortos pela região? Qual a real intenção de Phil ao se aproximar de Peter mesmo após atormentar o menino? Onde o alcoolismo de Rose a levará? Ela vai fazer algo contra Phil, que parece ameaçá-la silenciosamente vinte e quatro horas por dia? Como Jane Campion faz isso?

Para mim, é como se ela soubesse de toda a história e conduzisse seu roteiro através de cada ato que dê conta das relações dos personagens. Em alguns casos, ela consegue alcançar e desenvolver bem; mas, em outros, as personagens parecem correr mais que a escrita da autora e se distanciam, como se tivessem vida própria. É difícil descrever isso com precisão teórica.

E então, Campion mostra o que vem depois. Elipse e, sem seguida, lá está o personagem, ou lá estão as relações que definem esses personagens depois de seu desenvolvimento ter atingido um novo patamar. No caso de Ataque dos Cães, a principal marca dessa estratégia é a impossível amizade entre Phil e Peter.

Quando o garoto chega na fazenda com seu estilo afeminado e seu corpo magrelo, ele logo vira alvo das provações de Phil e de seus subordinados. A aproximação acontece após Peter descobrir um pequeno segredo de Phil. O cowboy depois não o confronta mais, não o ameaça, mas é mostrado sempre buscando uma aproximação e se surpreendendo com o espírito corajoso do menino. Phil encontra em Peter o que perdeu com o irmão George. Um tipo de companheirismo e amizade que cresce a partir do que cada um mostra ao outro e de como essas coisas se traduzem em respeito.

Foi ótimo rever Top of the Lake e perceber esse tipo de artifício sendo usado também em uma outra história, anterior e mais longa. Um estilo que reforça aquilo que realmente te faz lembrar de um filme: o sentimento, o pensamento, a reflexão. É esse mesmo estilo faz de Ataque dos Cães uma obra que traça, desde a primeira voz que ouvimos, a de Peter, suas intenções, mas que também nos diz “calma, espere, a resposta virá na hora certa, enquanto isso deixa eu te mostrar isso aqui…”.

Por fim, um apelo: talvez não seja um bom caminho validar um filme pela sua lentidão ou ritmo diferenciado, dê uma chance e tente senti-lo. Se a coisa realmente não “bater”, é vida que segue. Mas, se bater, é quase certo que a experiência será maravilhosa. Filmes são, também, como as melhores coisas da vida. Só se tornam as melhores se dermos chance a elas.

PH Martins é originário do interior do Espírito Santo, estudante de Cinema e Audiovisual da Ufes. É diretor, roteirista e produtor, seu último curta metragem, o documentário "Os Que Esperam", foi exibido no 26º Festival de Cinema de Vitória, em 2019.

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