Brasil, 2020. Uma pandemia de nível global nos colocou em isolamento. O novo cotidiano imposto pela Covid-19 nos condicionou a um estado de alerta interminável, reconfigurou nossos costumes e nossa percepção, alterou definitivamente nossa forma de olhar e perceber o mundo. O mais simples dos detalhes, imperceptível aos olhares apressados de outrora, agora obtém significado(s), adquirem forma, ganham vida, tornam-se importantes. Daqui, deste ponto nublado da história, é difícil enxergar algum futuro…
No presente, respiramos com alguma dificuldade, falamos com a voz abafada – por causa do temor ou do uso das máscaras, mas também porque percebemos que talvez estejamos mais solitários do que desejávamos, ou porque notamos (os que ainda não tinham se dado conta disto) que não há entidade, instituição ou tampouco um indivíduo de quem possamos esperar algum gesto de liderança. Não há presente. Não há futuro.
Durante o período de isolamento social, as ideias para uma segunda edição temática desta revista transmutavam-se a cada instante. Como se manter minimamente relevante nesses tempos? Ou, ainda: como pensar o Cinema neste momento histórico de impossibilidades e reconfigurações? A própria noção de tema (bem como a de prazos e limites) nos parecia irrelevante, egocêntrica, mesquinha. Acompanhamos o crescimento da produção (e reprodução) das imagens como ponto de fuga da realidade, mas também como ancoradouro de novas possibilidades e configurações desse novo olhar – confinado, inseguro, solitáro. Assim sendo, retiramos o subtítulo da revista e assumimos nossa vulnerabilidade. Não mais “Cinema e TV”, apenas Reimagem – para (nos) reconfigurar, reinventar, relembrar, reestabelecer, reconectar, reimaginar, ressignificar.
Como temática, a princípio, queríamos deflagrar o flerte do governo brasileiro com os ideais do mais descarado fascismo como tema central da edição, olhando para o passado na expectativa de reconhecer nele algum traço do presente para que, a partir disso, pudéssemos imaginar alguma possibilidade de futuro. No entanto, sucumbindo a corrente de reformulações sob a qual o próprio mundo parece estar implicado a partir de agora, afrouxamos os limites do tema, ainda que ele permaneça por lá, nos rondando de longe – um olhar que ainda considera traços e sombras de opressões, passadas e presentes, para resistir ao caos que nos foi imposto.
Nesta edição: PH Martins traça, em uma análise concisa sobre a figura do narrador-persongem, um paralelo entre O Cremador (Juraj Herz, 1969) e a figura emblemática de um aspirante a ditador; Luciana GB reflete sobre fronteiras e urbanidades na América Latina a partir do documentário Terras (Maya Da-rin, 2009); na Seção Painel, o artigo de Letícia Oliveira analisa a narrativa sonora do confronto final do filme Nós (2019), de Jordan Peele. Além disso, a realizadora Jo Serfaty fala sobre o fazer cinematográfico, linguagem, resistência e realização em uma conversa sobre seu premiado longa-metragem Um filme de verão.
As imagens do mundo foram irremediavelmente reconfiguradas. Reconfiguremo-nos, então.
EXPEDIENTE || Editor-chefe: Gustavo Guilherme da Conceição | Revisão: Gustavo Guilherme da Conceição e Letícia Oliveira | Tradução e revisão (English version): Letícia Oliveira | Mídias sociais: Luana Macedo Pereira || Assinam os textos desta edição: Gustavo Guilherme da Conceição, Letícia Oliveira, Luciana GB e PH Martins ||| Agradecimentos especiais a Jo Serfaty e Luana Cabral.
Pesquisador, roteirista e crítico de cinema. Dirigiu os curtas documentais "Nós" (2016) e "Minhas Mães" (2018). Colaborou como co-curador do Festival de Cinema de Vitória (2016 e 2017) É um dos idealizadores dos podcasts "Reimagem" e "Terrorias da Conspiração" e realizador das webseries "S[C]INÉDOQUE" e a ainda inédita "Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Capixaba" (em produção).