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Espaço prolongado da experiência cinematográfica

A relação entre filme e espectador

Eu abro o sentimento de tal forma que o mundo pode penetrar meus sentidos, meus músculos, minha consciência. A temporalidade da paisagem transforma minha temporalidade… O espaço do ar livre se torna meu espaço… Eu me sinto inspirado, “inspirado” como se fosse do vento e das árvores… As fronteiras entre o interior e o exterior tornam-se porosas…

Jennifer Barker

No dia 8 de setembro de 2018 uma notícia de jornal contou sobre uma mulher que passou mal durante uma sessão de cinema. Na noite do dia anterior, uma mulher de cerca de 50 anos, cujo nome não foi divulgado, passou mal no cinema do Shopping Boulevard, em Vila Velha (ES), quando assistia ao filme de terror A freira (The nun, 2018), de Corin Hardy, na sessão de 20 horas de uma sexta-feira.

A notícia explica que a mulher vomitou na sala de cinema já na metade do filme e foi socorrida pela equipe de saúde do shopping, sendo levada ao hospital. A sessão foi interrompida, o local passou por uma limpeza e o filme continuou para os espectadores que permaneceram na sala. Pessoas que estavam no local contaram ao jornal que pensaram que a mulher havia sofrido um infarto por causa do filme. Já a assessoria do shopping afirmou que a mulher relatou que estava sentindo um mal-estar no estômago desde o almoço.

Esse episódio, ilustra bem como a experiência de assistir a um filme pode mexer com o corpo do espectador de maneira intensa. Como o corpo do espectador se relaciona com o filme. Muitos têm histórias de cenas em que choraram, se assustaram, que sentiram frio, calor, tontura. Isso prova como assistimos ao filme não apenas com os olhos, mas com o corpo todo, sendo difícil desassociá-lo.

Se a mulher que vomitou assistindo a A freira já estava se sentindo mal antes da sessão ou não, o que mais desperta interesse é que o ponto máximo e final do mal estar, o ato de vomitar e expulsar o que a incomodava por dentro, foi ativado durante uma sessão de cinema.

Esse envolvimento entre espectador e filme acontece atravessa todos os órgãos do corpo, e reflete muitas vezes sobre nossa expressão corporal. Juntamo-nos ao filme, entramos em consonância com ele muito por movimentos de câmera que emulam movimentos corporais do espectador.

Jennifer Barker vê o cinema como uma experiência íntima, que atravessa todos os órgãos do corpo do espectador e do filme – visto que ela admite o filme como também possuidor de um corpo. Há aqui uma relação muscular mútua entre dois corpos, que mesmo diferentes, podem experimentar movimentos semelhantes; a teórica afirma que o espectador consegue habitar um espaço intercambiável entre o próprio corpo e o corpo do filme. Uma experiência possível não apenas pelas emoções, mas também através de movimento e fisicalidade, como defende Barker em The Tactile Eye – Touch and the Cinematic Experience.

Mesmo que nossos corpos tenham sido construídos de maneira diferente que o corpo do filme, podemos sentir em nossos músculos seus movimentos porque de alguma maneira já realizamos movimentos semelhantes. Assistindo ao filme, podemos sentir nossos músculos, ombros, por exemplo. Em filmes de ação, podemos acelerar o ritmo da respiração, em busca de fôlego, para acompanhar os movimentos expressos na tela – mesmo que ainda estejamos sentados.

A musculatura da experiência cinematográfica é também definida por funções de expressão e percepção, algo pelo qual experimentamos o mundo. Se, por um lado, o corpo do filme reflete estilos do comportamento corporal humano, por outro, o espectador também emula o comportamento muscular do filme.

A empatia que sentimos com o corpo do filme nos permite habitar esses dois lugares ao mesmo tempo, ainda que não deixemos nossos corpos em momento algum.Como espectadores, nossa posição nunca é passiva porque podemos ocasionalmente sentir que estamos realizando aqueles movimentos, podendo, inclusive, sentir também suas possíveis consequências.Nós nos comportamos com ajuda de pernas, braços, músculos, enquanto os filmes tem movimentos de câmera, normas de edição. Nós e os filmes nos comportamos de acordo com as possibilidades que nossos corpos nos oferecem, em uma experiência de aplicação de forças.

Barker divide essa perspectiva com Vivian Sobchack, uma vez que ambas defendem que a visão não é realizada de maneira isolada, mas sim relacionada aos outros sentidos. Para ambas as pesquisadoras, assistir a um filme implica em uma experiência de encontro de corpos e “a imagem em movimento torna-se sensorial e sensivelmente manifestada como a expressão da experiência pela experiência”, diz Sobchack em seu livro The Address of the Eye – A Phenomenology of Film Experience.

A visão é um exercício que se encontra em uma dupla manifestação, pelo espectador e pelo filme também. Sobchack cita a fotografia como exemplo de algo que não possui comportamento, apenas espera estática que a experimentamos. O corpo do filme, no entanto, constitui seu próprio ser e seus próprios modos de comportamento. O filme age e desenvolve uma dimensão mais profunda e tridimensional no plano da tela.

Sobchack chama o que se vê na tela de “percepção expressa de um anônimo”, uma vez que percebemos uma projeção expressiva outra – ao mesmo tempo em que estimulamos nossa experiência de percepção. Esse jogo de percepção e expressão coloca filme e espectador em uma relação praticamente horizontal, onde ambos exercem papéis importantes em uma comunicação que envolve um processo de “ser-no-mundo e na reversibilidade viva da percepção e expressão exercida pelo corpo-vivido”, defende. O filme e seu olhar “anônimo” conjuga seu sentido a partir de sua manifestação em si.

A percepção anônima do filme por vezes aplica sobre a imagem o olhar próximo de investigação que a desfigura como objeto e a revela como um percurso de formas e cores intrincadas e desorientadoras. Aqui a percepção muda de nuance e parece ansiar um contato mais íntimo com a imagem. As imagens muito próximas aparecem sem um significado imediato e o espectador começa a caminhar o olho sobre ela, investigando e descobrindo, entrando em um labirinto de formas e sensações. Os planos, os movimentos de câmera, a textura sonora seriam atalhos para entender esse “modo selvagem e penetrante” do qual discorre Sobchack. Assistimos ao filme plano por plano, experienciando cada imagem individualmente, caminhando pelos corredores do labirinto de uma pedagogia cinemática que se comunica e nos envolve por vias pré-reflexivas.

Os modos de visão dos dois corpos acabam resultando no que Sobchack e Shaviro se preocupam, que seria a “identificação carnal”, denotando o movimento corpóreo entre filme e espectador que se apresentam antes de uma interpretação racional do filme. Uma vez que o espectador é afetado pelas imagens, desperta nele, por exemplo, arquivos somáticos que lhe permite imaginar como poderiam ser sentidas as sensações que as imagens emanam.

O filme, no entanto, pode conceber seus próprios arquivos somático, baseado em repetições narrativas e estéticas. A imagem de um objeto, pessoa ou paisagem pode adquirir ao longo do filme significados completamento díspares, mesmo mostrados nos mesmos ângulos. Na verdade, é essa repetição que colabora com a mudança de perspectiva possível sobre eles. O que no início do filme estimula sensações prazerosas, no seu fim pode incitar seu oposto máximo.

Sobchack defende que o cinema proporciona uma extensão da existência encarnada do espectador, que na experiência cinematográfica, mais que comunicar pelas histórias, diálogos, os significados dos filmes são experimentados no corpo. A percepção de mundo se torna mútua. O espectador começa a entender cortes como vírgulas ou pontos finais de cenas, uma cor como uma sensação, um ruído como sentimento, ele pode fluir no movimento da câmera. As linguagens de ambas as visões estão afinadas uma a outra de modo que o espaço intercambiável parece tender a diminuir. O filme passa a se comportar como uma presença no mundo que vai tomando forma com o movimento de sua projeção, como “uma presença que pode então ser dita como tendo um passado, um presente e um futuro”, ela diz. O filme seria um sujeito, de fato, com configurações intencionais e capacidade de expansão do plano liso de sua tela. Há aqui uma consciência intencional e relacional em movimento.

O estudo fenomenológico de Sobchack destaca o caráter interativo do modo de assistir a um filme, em um exemplo de envolvimento do eu com o mundo, da abertura das percepções do eu para com o mundo. O que temos é uma relação de visões com consciência, porque além de ver o mundo, ambos os corpos veem o mundo com seus próprios aparatos de percepção. Tanto o filme como o espectador reconhecem a visão como uma atividade de contato mediada com o mundo, como uma consciência da experiência vivida. São corpos conscientes de sua carne e de sua habilidade de visão.

Isso leva a crer que se filme e espectador possuem consciência e intenção e correspondem a métodos técnicos. Sobchack coloca ambos os corpos em paralelo, sendo que o filme seria para a tecnologia cinematográfica o que a percepção e a expressão humana representam para a fisiologia do corpo humano.

A atividade perceptiva do filme permite sua expressão no mundo (outro termo da autora), o modo como o filme forma seu olhar sobre o mundo já está diretamente relacionado como ele funda seu mundo próprio, como ele se apresenta como ser. Seu corpo, seu discurso, sua consciência intencional e material atuam na sua concepção. No encontro com o corpo do espectador, o filme inscreve sua “conduta corporal pré-reflexiva e reflexiva diante de si”, segundo ela, o que prova sua autonomia enquanto ser e sua presença enquanto corpo consciente.

O espectador absorve a percepção expressa do filme na sua própria, bem como o contrário também ocorre – é esse envolvimento que estrutura a reversibilidade da experiência cinematográfica. O que se tem são dois corpos vivos com suas próprias materialidades, seus projetos intencionais pessoais e suas capacidades expressivas exclusivas. Por isso, o contato entre ambos dificilmente não seria outro senão material, no qual um envolve o outro em uma experiência que excede o mundo dos dois.

ANOTAÇÕES SOBRE TRAJETÓRIAS DOS CORPOS

Na parte final da minha pesquisa realizei grupos focais em que colocava pessoas para assistir a filmes e depois conversávamos sobre suas impressões sobre cenas específicas. Queria poder ver e provar com uma experiência própria como os espectadores percebem sensorialmente e se relacionam com os filmes. Em geral, os autores da teoria sensória do cinema falam muito de suas percepções sobre os filmes. Isso nos leva a ver a figura do espectador como fundamental para um pensamento sobre a relação sensória no cinema e também como não única, já que as respostas pré-reflexivas podem mudar de acordo com o esquema sensório de cada um.

Em uma das sessões, cinco participantes, jovens de 20 e poucos anos, assistiram a O abismo prateado. O filme de 2011 é do brasileiro Karim Aïnouz. Baseado na música Olhos nos olhos, de Chico Buarque, a história acompanha Violeta, uma mulher que divide os dias entre trabalhar como dentista e cuidar da família no Rio de Janeiro. De repente, seu marido Djalma deixa uma mensagem dizendo que vai embora de volta para Porto Alegre, abandonando-a.

Durante a sessão, algumas cenas suscitaram reações motoras dos corpos dos participantes. Fiquei no fundo da sala atento aos movimentos e vi Naira e Jéssica se mexendo, como se ajeitando no assento ou demonstrando um leve incômodo, durante a cena de sexo entre Violeta e Djalma. Quando Violeta espera em uma sala no ambiente da construção, Jean boceja vendo a personagem parada e inquieta. As cenas no consultório odontológico de Violeta foram as que mais agitaram a superfície dos corpos, com cabeças dando impulsos para trás, buscando se afastarem da tela.

Um sentimento forte que Naira teve por todo o filme foi uma angústia pelo não direito de resposta de Violeta ao abandono do marido. Para ela, Violeta buscava um ponto final. “Ela tinha que ter isso para sentir que realmente terminou”. Naira também percebeu um ambiente urbano onde tudo se movimentava, mas a personagem estava parada. “Ela parecia isolada no meio de tudo”.

Um sentimento de desorientação também foi percebido por Jean, mas além da personagem, ele mesmo se via desorientado na narrativa. Quando Violeta fala pela primeira vez que foi abandonada, ela está no meio da construção e sua fala é abafada pelos ruídos das máquinas. Jean não ouviu; só teve certeza do abandono quando a personagem ouve o recado deixado na caixa postal – nesse momento, já se passaram 40 minutos do filme. Isso me remeteu a Sobchack que diz que, mesmo munidos de um sistema de orientação formado, sendo os objetos sensoriais que somos, estamos jogados no mundo material do filme e fazemos parte dele, nos rearranjando em seu próprio esquema sensorial.

Um segundo passo dessa desorientação seria as sensações inspiradaspelo contato com as imagens e o estado emocional da personagem. A cena da dançade Violeta na boate foi para Jéssica como uma explosão. “Vi um cansaço, ela se movimentada muito rápido, uma sensação de suor. Acho que ela queria tirar a tensão da mente e cansar o corpo”, comenta. Os sons dessa cena, bem como os movimentos do corpo de Violeta remeteram a Liliane uma atividade intensa, como um exercício militar. “É pra descontar toda raiva”, sugere Naira. “Ajudar a colocar tudo para fora”, completa Heloisa.

A maneira como o corpo se expressa chamou a atenção de todos os participantes. Todos viam ali um corpo em atividade física intensa, como se seus limites da pele estivessem sendo testados. Jéssica lembra da cena dela malhando, Heloisa lembra de como ela se machuca, mas parece que isso não a impede de nada, o que Naira diz achar o mesmo. Os participantes concordam que o estado emocional influencia no estado do corpo, e o filme reflete isso com planos turbulentos, com uma câmera trepidante. “Ela está sentindo duas dores; ela não consegue parar de pensar no abandono”, diz Liliane. Correndo, caindo, se machucando, a trajetória de Violeta é a trajetória de seu corpo.

Sugeri que os participantes elencassem cenas que promoviam o que seria um encontro dos corpos. Na cena em que Violeta e Djalma se beijam divididos pelo vidro do box do banheiro, eles discutiram sobre se haveria toque ou não, se aquilo era um encontro ou não. “Eles beijam o vidro, mas não se tocam”, argumenta Jéssica. “Para ela aquilo foi poético, para ele não, só indicava uma distância entre eles”, afirmou Heloisa.

Quando Violeta vai ao canteiro de obras, os ruídos incomodam demais Heloisa. “Era barulho demais, me incomodava”, lembra. “A voz dela fica abafada no meio de tanto barulho”, diz Jéssica. “Eu não conseguia ouvir nada direito, só os barulhos da construção”, Naira concorda. Acompanhar a percepção da personagem fizeram os participantes sentir o que ela estaria sentindo nas situações filmada. “A câmera tremia demais, e a vida dela só vai caindo durante o filme”, argumenta Liliane. Nas cenas do consultório de Violeta, a inquietação reverberou em todos. “Eu sentia uma agonia, uma perturbação na minha cabeça”, lembra Naira. “Ao mesmo tempo eu estava mais preocupada em ela receber a mensagem de Djalma”, Heloisa complementa.

Ouvindo essas impressões percebo que mundo do filme age sobre os espectadoresos transformando, elesagem sobre o mundo do filme experimentando como se tivessem as mesmas configurações dele. Lembrei quando Barker fala sobre o cinema ser uma metáfora tecnológica sobre o corpo, desenhando suas formas a partir da configuração do corpo humano e as expressa na forma cinematográfica.

Barker diz também que a atividade háptica do filme pode descer às profundidades dos corpos, em uma relação de conexão e possessão mútuas com o espectador. Quando Violeta conhece a pequena menina no banheiro de um quiosque na praia, ela a ensina a travar a vontade de chorar. Ela enche o peito de ar e solta forte, ao que a menina a imita. Em seguida, elas repetem. Heloisa disse que nesse momento ela se sentia imitando a inspiração e expiração das personagens, como se fizesse junto com elas.

Como os movimentos dos filmes são propriedades táteis, os corpos dos filmes também reverberam uma hapticidade no corpo do espectador, já que estão muito próximos da maneira de funcionamentos dos corpos espectadores. Naira diz que os movimentos das imagens de um ambiente urbano turbulento chacoalharam sua percepção, como se não pudesse acompanhar aquela velocidade.

Em momentos como esse, Barker afirma que é impossível dizer o que é o filme o que é o espectador, “o que pinta e o que é pintado”.

Os participantes muitas vezes comentavam cenas do filme de Karimacompanhas de memórias de suas vidas. Heloisa disse que já se sentiu como Violeta. “Entendo o que é pirar depois de uma notícia inesperada como essa, o que é perder o chão e não saber o que fazer. Ela casou muito jovem, com 22 anos”.

Todos participantes viram no mar uma figura importante. “O filme começa e termina na praia”, aponta Heloisa. “O marido dela deve ter tido alguma revelação ou algo do tipo quando vai à praia”, Jean supõe. “No fim, ela aparece no mesmo lugar que o marido dela, aquela mesma praia”, sugere Liliane. A figura do mar, sua relação com os participantes, a maneira como ele se manifesta, tudo isso conjuga sensações e desperta memórias nos participantes. O mar exerce sobre os participantes sensações fortes, trazem à tona memórias que eles guardam; levanta a questão de uma relação próxima com o mar que, embora seja indiferente ao filme, é despertada por ele. O poder da imagem consegue os levar a situações e lugares de seus passados, muito vivos no esquema sensório de cada um.Parecido com o que Heloisa diz: “A gente que mora no litoral às vezes recorre ao mar. Só sentar na areia da praia e aproveitar o silêncio”.

Mestre em Artes e bacharel em Comunicação Social pela Ufes. Mantém o podcast "Olhos Fechados".

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