Maria foge do castigo por libertar a três porcos, refugiando-se numa casa em meio a floresta onde, ao encontrar outros dois porquinhos, se converte no terceiro. Aqui, diferente da fábula original, as paredes não são a barreira que os protege do predador, mas sim uma tela de memórias, traumas e medos. De imagens mutantes que transbordam das paredes tomando diversas formas.
O longa-metragem La casa lobo (Cristóbal Leóne Joaquín Cociña, 2018) revisita e recria as imagens e narrativas que perpassam a história da Colonia Dignidad, local de torturas que teve como sede o Chile no período do regime militar. Após a saída de Pinochet (que não foi o fim do pinochetismo), vieram à público informações antes censuradas sobre os abusos cometidos durante os 12 anos de funcionamento como campo de extermínio. Desde então, muito se retratou em filmes, livros, filmes e obras de arte em geral.
La casa lobo vai além, transformando pinturas e instalações num filme stopmotion cuja narrativa utiliza um estilo denso e sombrio – tal qual sua história – para trazer à luz essas feridas ainda abertas na história. Os cenários foram construídos e expostos em museus e galerias do Chile, Alemanha, Países Baixos, México e Argentina, num período de cinco anos. Apesar da construção em e por diversos países, La casa lobo reivindica sua chilenidad; principalmente ao atualizar as poucas referências de longas de ficção que tratam sobre a Colonia – apresentada principalmente em documentários. Atualmente a referência está concentrada em Colonia (Florian Gallenberger, 2015), filme alemão que, apesar de se passar em território sul-americano, é falado majoritariamente em inglês.
Logo, se trata de um filme amplamente atravessado por restaurações. Principalmente ao lidar com os traumas através das fábulas, constantemente referenciando-se nos irmãos Grimm. Há diversos elementos que nos remetem a essas histórias, como a presença de um narrador off cujo discurso se faz simples, como se contado a crianças. Inserindo morais, e apresentando a polarização entre bem e mal contida nos contos de fadas, aqui sem final feliz. A voz do narrador com seus traços alemão, nos remete ao fundador da Colonia, Paul Schäfer. Pretendendo-se, portanto, que a história de Maria fosse contada a partir de seu torturador, tendo a figura do lobo como elemento central. Podemos lê-lo como a encarnação do próprio “Tio”, ou, enquanto locutor, encarna numa espécie de simbologia disciplinadora para definir os espaços fora dos limites da Colonia como demasiado perigoso, pois “afuera hay un lobo”.
Como enunciaram os realizadores, e se Paul Schäfer fosse uma espécie de Walt Disney? O longa traz, de maneira complexa e até angustiante, esta inversão talvez impensável desde uma análise crítica, mas que, a partir deste jogo de alteridades, acaba por alcançar uma substancialidade de tensões.
E, por outro lado, se exprime na manipulação imagens televisivas, elementos chave dentro da obra que além de estarem presentes de forma constante entre os personagens, recupera imagens de arquivo produzidas pela Colonia para transformá-las numa hipotética propaganda televisiva divulgada à época. “Seguramente usted ya há tenido La oportunidad de probar el inigualable sabor y textura de La miel La Colonia”. O lugar é vendido como um paraíso afastado, onde o trabalho em comunidade é a ordem. Tão doce quanto o mel. De tal maneira que afirmam “La leyenda oscura que se há creado al nuestro alrededor se debe principalmente a la ignorancia. Son ignorantes quienes temen a uma comunidad que permanece pura y aislada”.
Essa lenda escura ao qual se referem é apresentada no longa a partir da história real de uma moradora da Colonia que, tal qual a personagem, conseguiu escapar do campo mas não pôde se readequar ao mundo “lá fora”. O filme, desta maneira, se constrói também presumindo certa dificuldade – quando não impossibilidade – de superação de traumas tão viscerais. A relação de Maria, como um escape, se torna profundamente maternal em seu convívio com os porcos e essa transição, em mimese, transforma os animais em crianças. Assim como em todo o filme, há transmutação de materiais, formas, matérias, técnicas e símbolos, realçado principalmente pelas emoções conflitivas que se manifestam.
Até que as esperanças, por fim, se convertam e libertem como pássaro, e o corpo, domado, se configure árvore. Não à toa, enquanto escrevo este texto, Chile está em peso nas ruas, questionando todo esse passado, que influi intensamente no presente e torna incerto o porvir. Que os símbolos de opressão sejam destruídos mas não esquecidos, pela autonomia dos nossos corpos e mentes.
Luciana GB é formada em Cinema e Audiovisual pela UFES e Mestre em Estudos Latino-Americanos pela UNILA. Atualmente integra o Cineclube El Caracol e pesquisa sobre os Festivais de Cinema Indígena.