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Vol. 01 - Nº 01 - 2020

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O apagamento negro na televisão e a lenda do herói branco

Desde que foi liberto, jogado sem qualquer auxílio numa sociedade que não o considerava sequer como gente, o povo negro sofre para ocupar espaços. Não é novidade para ninguém que a trajetória desse povo no Brasil é marcada pelo esquecimento e pela discriminação. Mesmo depois de 131 anos da abolição, a população negra ainda é atingida diariamente pelo preconceito entranhado em cada buraco da estrutura social vigente no país. Desde cedo, enfrenta-se uma realidade bem diferente daquela reservada a pessoas brancas, uma realidade muito mais dura que, mesmo com o passar dos anos, continua sem muitas perspectivas.

É abundante o número de estatísticas que provam essa teoria. Na maioria das vezes, negros são os que menos têm acesso à educação, os que ocupam cargos menores no mercado de trabalho, os que mais realizam trabalhos braçais (e, muitas vezes, desumanos), bem como os que possuem as piores moradias ou que nem mesmo a possuem. E como se não bastasse a inferioridade dentro das relações sociais na vida real, a presença negra dentro da ficção ainda obedece a uma lógica histórica romantizada de “branco salvação”.

Desde o início da televisão no Brasil, um dos grandes problemas sempre foi a ausência de representatividade, principalmente no que se refere à presença de atores, profissionais audiovisuais e personagens negras.

Quem nunca ouviu falar da polêmica que envolveu “A Cabana do Pai Tomás”? A novela, exibida no ano de 1969, trouxe o maior e mais escandaloso caso de blackface da televisão brasileira. Na situação, Sergio Cardoso, galã da época, foi escalado para viver o personagem principal da trama, um escravo. Eis o grande questionamento: por que maquiar um homem branco para que parecesse ter pele negra ao invés de contratar um ator negro? Na ocasião, inclusive, não faltavam bons nomes para ocupar o posto. Por que não escalar Antônio Pitanga ou Milton Gonçalves?

A discussão a respeito do blackface é antiga e esconde uma realidade muito comum até os dias de hoje: a retirada do corpo negro dos espaços de protagonismo na teledramaturgia.

TV GLOBO

Desde quando a saudosa Ruth de Souza estrelou nessa mesma novela, tornando-se a primeira protagonista negra da televisão brasileira, poucas obras tiveram pessoas negras como seus personagens principais. Pior ainda, é que algumas foram rejeitadas pelo público, acostumado a ver atrizes e atores brancos nesses lugar de destaque. Foi o caso, por exemplo, da personagem Helena interpretada pela atriz Taís Araújo na novela “Viver a Vida”, de 2009. Com o peso de ser a primeira Helena negra do autor Manoel Carlos, a personagem era uma supermodelo que tinha personalidade forte e vida independente. Entretanto, mesmo estampando um modelo de mulher atual e mais próxima da realidade, grande parte dos telespectadores não a aceitou muito bem, o que fez com que a personagem saísse do lugar de protagonismo e se tornasse apenas mais um papel secundário da trama, dando lugar à mimada (porém branca) Luciana, que sofrera um acidente e ficara tetraplégica, situação que não se reverteria ao fim da novela. Vale ressaltar que, durante boa parte de trama, atribui-se à Helena a culpa do acidente de Luciana, fato que tornou a personagem ainda mais odiada pelo público.

Viver a Vida (TV Globo)

Talvez a coisa mais estranha e potencialmente ofensiva já inventada na teledramaturgia (e também, em medida igualmente traumática, no cinema) tenha sido a ideia do herói branco. A noção de que a branquitude representa tamanha prosperidade que, para uma pessoa não caucasiana conseguir alcançar altos objetivos, ela precise ser “abençoada” por um branco.

Não é difícil reparar em qualquer obra televisiva que, quando um negro ocupa um cargo ou posição que, na vida real, ele usualmente não ocuparia, por trás há sempre um personagem branco — um conhecido, o patrão do pai, a patroa da mãe, aquela mulher que encontrei na rua, etc; sempre há um branco-salvador que surge não apenas para salvar o negro, mas também para evidenciar como e quanto isso esta ligado a um certo passado de sofrimento quase límbico da pessoa negra.

Isso faz lembrar a representação do escravo submisso, que sofria nas lavouras sob os chicotes mas que, de repente, por algum motivo, se via “a salvo” quando inserido numa realidade de escravidão doméstica, adquirindo supostas regalias, como se tivesse sido “promovido” e que, com o passar do tempo, incorporava nele mesmo a ideia de seus senhores, desenvolvendo indiferença à revolta de outros escravos e certa gratidão ao branco escravagista que, ilusoriamente, o libertara da senzala.

Na história da nossa teledramaturgia, há centenas de exemplos que podem ocupar incontáveis linhas de texto e anos de pesquisa. Entretanto, existe um tipo de trama que talvez seja a mais incômoda e dispensável: as tramas sobre escravidão.

Sinhá Moça (Reprodução/Memória Globo)

Ora, o enredo desse tipo de história parece ser sempre o mesmo, com pouca ou nenhuma variação. É a síntese da ideia do herói branco. Sinhá Moça, por exemplo, é um caso clássico. As duas versões da novela (1986 e 2006), ambas derivadas de um livro e um filme, mostram como a escravidão no Brasil foi derrubada graças a reunião de justíssimos homens brancos e, mais especificamente, pela corajosa mocinha branca com pouco mais de 20 anos de idade, filha de senhor de escravos, que tinha como sonho o fim desse sistema desumano. Sinhá Moça, principalmente o remake de 2006, coloca os negros em local de total dependência, em situações muitas vezes animalescas.

Obras com temáticas como essa normalmente deixam de lado toda a luta de resistência do povo negro escravizado e as diversas revoltas que esse mesmo povo impetrou, substituindo-a por um falso heroísmo branco que de nada serve.

Infelizmente, esse tipo de discurso não se restringe apenas à obras épicas. Com o tempo, a mídia começou a utilizar as subjetividades a favor do seu racismo, naturalizando essa problemática em enredos contemporâneos.

Estamos em 2019, mas a gente ainda tem muito o que mudar dentro das fábulas que fingem querem nos incluir. Precisamos gritar e lutar para ocupar os espaços da ficção, ainda que seja “na marra”. O ciclo do apagamento negro no audiovisual não acontece só quando nos proíbem de falar abertamente, na vida real, sobre problemas reis, mas também quando nos impedem de ocupar lugares dignos e de poder, atrás das câmeras ou dentro da ficção, nas histórias que nos são contadas na TV e no Cinema. Afinal, a representatividade é muito mais potente quando de fato toca a imaginação das pessoas, quando as permite reimaginar essas histórias sob outras cores, outros olhares, outras vivências, outras bandeiras.

É preciso mostrar às futuras gerações, crianças e adolescentes negros que acompanham a teledramaturgia do país, que é possível, na vida real, assim como fazem os personagens da ficção, alcançar lugares altos neste mundo sem precisar da benção de nenhum homem branco. É preciso apagar do imaginário popular a ideia estúpida e racista da subserviência negra e da gratidão imbecilizada.

É necessário e urgente normalizar a ideia de que a nossa cor de pele não influencia na capacidade de sermos donos do nosso próprio destino. Que nós podemos, sim, conhecer e trilhar, com nossos próprios pés, os caminhos do sucesso, e que podemos, inclusive, construir nossa própria estrada de maneira autônoma, independente, seja na vida real ou nos universos criados pela televisão.