Em seu livro sobre roteiro, Flávio de Campos define seis pontos de vista onde um narrador pode se posicionar; entende-se como narrador, em uma narrativa fílmica, o modo como a câmera e os demais aparatos cinematográficos se posicionam e como captam e moldam a trama.
O narrador, em se tratando do personagem principal, é um “recurso que, materializado numa forma de perceber a estória, narra apenas o que o personagem percebe, da forma como ele percebe, e no momento que ele percebe”. Assim, esse narrador-personagem não tem poder de antecipar o que vai acontecer, nem de seguir outros fios da trama; portanto, o filme estará condicionado a seguir o fluxo desse protagonista-narrador.
A narrativa em O Cremador (1968), de Juraj Herz, segue o personagem Kopfrkingl, homem de família tradicional (casado, dois filhos), dono de um crematório na Tchecoslováquia durante o período pré Segunda Guerra Mundial – um típico “cidadão de bem”, poderíamos dizer? –, que sonha em se tornar parte da alta classe da sociedade, almeja ser reconhecido como figura importante, como eram considerados os homem cultos da época. Há pinturas espalhadas por toda sua casa, mesmo que ele não faça ideia de seu real significado.
Ainda no contexto da narrativa, os ideais de Hitler estão em ascensão e sua influência se espalha cada vez mais pelos países vizinhos da Alemanha, e a alta classe – tão desejada por Kopfrkingl – agora começa a se atrair por esses princípios.
O cremador atua como um grande monólogo do protagonista que busca sua própria ascensão, e é assim que o filme se dá desde o primeiro minuto até seu desfecho: as convicções do narrador-personagem traspassam as imagens. Kopfrkingl raramente para de falar, há poucos momentos de silêncio, o que atenua o aspecto eloquente e ganancioso do protagonista, que demonstra necessidade por atenção e se utiliza de seus pequenos poderes e influência para tal. Pequenos poderes porque os personagens secundários com quem o protagonista mais se impõe são os mais próximos – que fazem parte de sua família, ainda que clientes e funcionários do crematório também seja vítimas de seu ego.
A duração e disposição dos planos são conduzidos pelo monólogo e pensamentos de Kopfrkingl; podemos perceber uma ritmização das imagens e do sentido que há dentro do quadro, que está intrinsecamente ligada às falas do cremador, como no momento em que ele chega em casa com novos quadros, bonitos e imponentes, e decide, em conjunto com sua esposa e filha, onde poderá pendurá-los. Junto com o diálogo, há alguns jump-cuts onde vemos Kopfrkingl e sua família em diversas partes da casa, a decidir em qual local os quadros deverão ficar. É isso o que, aqui, podemos chamar de narrador-protagonista.
Não há antecipações, não encontram-se recortes de vida de outros personagens a não ser aquilo que está dentro da cabeça do cremador-narrador-protagonista. Assim, o filme revela-se uma constante linha de raciocínio de uma mente gananciosa que nos mostra um olhar sobre o iminente perigo ditatorial a partir de alguém que está inserido no movimento, e de sua lógica; alguém que pensa e age de acordo com os princípios de um governo fascista.
Há poucos segmentos em que o narrador não está atrelado a Kopfrkingl, e esses acontecem quando o protagonista se encontra com os funcionários do Partido Nazista, que querem que ele também faça parte de seu grupo. Esses personagens são responsáveis pelas maiores mudanças na mentalidade do cremador e, portanto, dentro da própria narrativa. Nesses momentos, a narração assume uma posição paralela ao protagonista. Ou seja, saímos do espiral das inabaláveis convicções da cabeça do protagonista e conseguimos, pela primeira vez, perceber algum espanto diante das falas de figuras mais poderosas que ele. Depois, quando voltamos a mente do personagem, entendemos sua perspectiva daquela conversa.
Esse sistema empregado pelo diretor transforma o filme em uma narrativa pesada e sufocante. Respiramos apenas quando o cremador também o faz, o que é escasso. Junto a isso, há a atmosfera gótica de uma fotografia sombria, ambientes fantasmagóricos e primeiríssimos planos que distorcem rostos e os transformam em o que pode ser comparado a gárgulas.
Junto a loucura que é a mente do protagonista, temos uma figura que se apresenta durante todo o filme: uma mulher trajada com um vestido preto, cabelos longos e escuros, pele pálida e expressão inquebrantável, que sempre se aproxima de Kopfrkingl. A identidade dessa mulher fica para a interpretação do espectador, mas o filme nos dará sugestões para a suposição de teorias.
O cremador é uma viagem pela mente de um personagem que representa todo um país que está acometido pela paranoia da maior ameaça que sua sociedade já viveu, com medo de uma sombra macabra que se aproxima devagar e sorrateira. É também um exercício narrativo que trabalha noções de autoritarismo a partir de seu ponto de vista – egocêntrico e cruel, que se agiganta gradualmente até assumir um estado (irreversível) de psicopatia.
O mais notável em O cremador, portanto, pode estar na percepção de que as convicções e aspirações de Kopfrkingl provavelmente não se concretizariam de acordo com suas expectativas, apesar de suas investidas, por ele estar abaixo na hierarquia do projeto de poder vigente; e no entendimento de que esse, provavelmente, seria a terrível representação da mente de um aspirante a ditador.
O filme não está presente em muitos catálogos de streaming, mas há uma cópia disponível no YouTube com legendas em Português.
PH Martins é originário do interior do Espírito Santo, estudante de Cinema e Audiovisual da Ufes. É diretor, roteirista e produtor, seu último curta metragem, o documentário "Os Que Esperam", foi exibido no 26º Festival de Cinema de Vitória, em 2019.