Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Capixaba explora e destaca a diversidade do cinema produzido no Espírito Santo desde os anos 1920 até os dias atuais. A produção, dividida em em oito capítulos (cada um dedicado a aspectos estéticos e históricos fundamentais do cinema feito em nosso estado), é composta por videoensaios que revisitam filmes importantes da nossa cinematografia.
A obra surgiu da constatação de que o “Cinema Capixaba” é relativamente jovem, principalmente quando comparado ao cenário global e nacional, e ainda pouco explorado. A (re)descoberta recente de obras de cineastas como Ludovico Persici, Orlando Bomfim Netto e Ramon Alvarado destaca a força e a diversidade da história do cinema feito no Espírito Santo.
Cada capítulo da webserie explora filmes específicos, selecionados por sua relevância histórica e estética, e são acompanhados por narrativas poéticas que visam observar, (re)pensar e oferecer um panorama abrangente do cinema capixaba.
Ao revisitar obras que vão desde Ludovico Persici e Orlando Bomfim até cineastas contemporâneos como Virgínia Jorge e Carol Covre, e talentos emergentes, como Roger Ghil e Castiel Vitorino, a produção visa colocar em foco as diversas formas de fazer cinema no Espírito Santo ao longo dos anos.
Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Capixaba foi realizada com apoio da Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo e com recursos do Funcultura.
Direção, texto, narração e montagem:
Gustavo Guilherme da Conceição
Som:
Letícia Oliveira
Prod. Executiva:
Ana Carolina Pagani
ASSISTA A VERSÃO INTEGRAL:
TRANSCRIÇÃO E INFORMAÇÕES SOBRE OS FILMES CITADOS
Capítulo Um: Das Origens
Filme citado: Cenas de Família
Diretor: Ludovico Persici
Ano: 1929
Que lugar é esse que chamamos de início? Onde está a origem de algo tão complexo ou sofisticado ou transformador como isso que chamamos de CINEMA? E, sabendo ou não a resposta de tais perguntas, ou ainda daquela antiga questão, ainda mais inquietante, sobretudo por abrigar em si um mistério cuja resolução, talvez, diminuísse a glória da própria indagação: o que é o CINEMA? Essa última, que siga sem resposta… e por que não deixar, também, todas as outras em suspensão, ao menos por enquanto? Cinema é muita coisa. Ou é coisa alguma. Tanto faz. Cinema é o que o olho, vendo, não vê; e o que o ouvido, ouvindo, não ouve.
Disse que não responderia e, quase respondendo nessa divagação poética, pareço lançar ainda mais nuvens nesse céu nublado. Mas o que aqui se pretende é imaginar, pelos trajetos históricos, uma cartografia possível para um cinema produzido em um determinado lugar, o Espírito Santo. Penso que o mais justo seria chamar esta série de Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Espiritossantense… mas é que Capixaba me parece um tanto mais incerto. E é de incertezas que se tratam os começos.
1926, Castelo, cidade bonita no interior do Espírito Santo. Ludovico, nome de inventor. Há quem diga que foi ele quem inventou o cinema feito aqui, lá na década de 1920, tendo inventado também um aparelho que chamou de Aparelho Guarany, com ypslon. Um aparelho que filmava e também projetava imagens em movimento. Pensei por um instante em proferir a heresia: filmar e projetar, princípio e fim do cinema. Ainda bem que não a disse. Porque a projeção é, na verdade, o verdadeiro princípio da coisa. Filmar é antes. Filmar é letra, morfema e língua. Projetar é dar corpo a linguagem e fazer tal corpo desfilar no sonho de quem, de olhos bem abertos, sonha.
Aparelho Guarany, origem dessa odisséia que chamaremos de Cinema Capixaba. Curioso que aqui, nessas imagens de um filme rodado entre 1926 e 1929, intitulado “Cenas de Família”, de Ludovico Persici, o castelense, o inventor, tudo se pareça muito com aquelas imagens iniciais dos irmãos Lumiére… os franceses… os inventores…
Rostos. Movimento. Paisagens.
Rostos em movimento que parecem paisagens. Paisagens em movimento.
Se foi mesmo o Ludovico que inventou um aparelho para criar esse tal cinema capixaba? se foi realmente ele o ponto de partida dessa aventura? Não dá pra dizer com precisão, porque as origens são sempre incertas.
Mas encare bem essas imagens. Perceba bem esses olhares, esses sorrisos, esses gestos imprecisos…
Note a perturbação desse preto e branco vibrante, caótico em seus movimentos de câmera famintos por engolir o mundo, as pessoas, a cidadezinha do interior. Repare bem em como essas imagens parecem iniciais.
O começo de um longo caminho pode ser, quase sempre, essa espécie de caos faminto.
E essa fome, esse caos, ainda perduram.
Capítulo Dois: O Verbo
Filme citado: No Princípio era o Verbo
Diretora: Virgínia Jorge
Ano: 2005
Ainda, o começo, as origens, o princípio.
Mas agora não mais a busca por um lugar originário desse tal cinema capixaba.
Não mais a reivindicação incerta de um ponto de partida.
Não mais a perturbação inóspita, o anseio bobo por acreditar que só se deve encontrar, entre tantas hipóteses, uma única origem central de tudo.
Mas é isto, é sobre isto: a origem de tudo.
Ainda, o começo, mas outro começo.
A linguagem. O começo de tudo.
“No princípio, era o verbo.”, diz o versículo bíblico.
“No princípio era verbo” é também o título desse filme da Virgínia Jorge.
Três situações que logo se encontrarão em pleno carnaval: uma criança acocorada debaixo de uma caixa de papelão, perambulando pelas ruas da cidade; uma discussão no balcão de um bar a respeito da origem (novamente, as origens) da invenção da roda; dois cegos na mesa do mesmo bar, brincando um jogo que obviamente não podem ver.
Três situações que, quando se encontram, reverberam os sentidos das palavras, princípio de tudo, e das imagens.
É como se Virgínia Jorge assinalasse, com as imagens, a própria palavra.
Palavra-imagem.
Imagem-palavra.
Existe um outro nome para isso… um nome antigo, quase ancestral.
Palavra-imagem.
Imagem-palavra.
Imaginação-palavra/palavra-imaginação…
Poesia.
“No Princípio era o Verbo”, diz o versículo e o filme de Virgínia Jorge.
No princípio… Foi Rubem Alves quem parafraseou tal versículo do evangelho segundo João…
“No princípio, antes que qualquer coisa existisse,
antes que houvesse o Universo,
O que havia era a Poesia.
Deus era Poesia. A poesia era Deus.
Deus e a Poesia eram a mesma coisa.”
Deus é um homem levemente embriagado de cachaça, conversando sorridente com um menino que se diverte debruçado sob uma caixa de papelão.
Capítulo Três: Tradições
Filme citado: O Mastro do Bino Santo
Diretor: Ramon Alvarado
Ano: 1971
O Mastro do Bino Santo é um marco etnográfico do cinema capixaba. O registro de Ramon Alvarado, um dos diretores mais influentes de sua geração, consegue transitar entre as sombras do passado e a celebração do presente.
Ao redor de uma das festas mais tradicionais do Espírito Santo, o filme se abre para imagens que dialogam em torno da festa e de sua história, traçando um comparativo silencioso muito crítico, característica comum ao cinema feito por Alvarado e seus contemporâneos que, além dos filmes, legaram a história do nosso cinema o pioneirismo da expressão cineclubista que tanto nos identifica.
Esses corpos dançantes, corpos negros em estado de celebração, se mesclam com as ilustrações dos tempos da escravidão: passado e presente, tensionados, paralelos que reverberam a condição de trabalho que, ali, ainda carrega ecos de outros tempos.
O mastro. A banda.
O trajeto. A tradição.
Os corpos. Uma multidão de corpos: corpos que dançam, mas também corpos de trabalho…
A maneira direta como Alvarado registra a tradicional festa de São Benedito, o modo como observa de perto e permite que sua câmera se deixe sequestrar por aqueles corpos em movimento, exultantes em sua celebração, ao fim mistura-se com as fotografias e pinturas de outra realidade, outro tempo, outro ambiente.
Corpo que baila. Corta. Agora, corpos que trabalham na construção daquele que é, hoje, o segundo maior porto de exportação de minério de ferro do Brasil.
Brasil…
Na banda sonora, ouvimos um texto que explica as origens da festa, dá contexto e contorno ao que se vê. Mas é possível ouvir também, quase que desde as primeirissimas cenas, uma música compassada e frenética, um reco-reco ritmado interminável que cresce à medida que o filme avança. Entre o som das vozes e dos gritos, da voz firme que nos explica tudo, ouve-se o congo.
O Mastro do Bino Santo não é apenas um registro histórico importante das tradições capixabas, tampouco nos pertence, de modo exclusivo, como cabe aos bons documentários, o filme, existindo e sendo visto, deslimita-se
ganha, por sua expressão inegavelmente urgente, mesmo depois de tanto tempo, uma força que o transmuta em um filme, sim, sobre a festa serrana,
a expressão capixaba, mas que transpassa os limites e o confirma como um filme sobre o Brasil.
Capítulo Quatro: O (In)Visível
Filme citado: Mestre Pedro de Aurora, para ficar menos custoso
Diretor: Orlando Bomfim Netto
Ano: 1978
O que faz Ramon Alvarado, em seu registro em “O Mastro do Bino Santo”, ao capturar uma tradição coletiva, de origem ancestral e que, no movimento dos corpos dançantes, ressoa própria história e cultura do Brasil, Orlando Bonfim Netto, mineiro que se mudou definitivamente para o Espírito Santo nos anos 80, adotou como modo de enxergar o mundo e, através dele, fazer cinema.
Sua cinematografia é, por si só e de um modo bastante particular, uma cartografia da cultura capixaba. As personagens centrais de seu cinema, documental e, quase sempre, envolvido pela poesia em movimento de câmeras imparcialmente cativadas pelas histórias que capturam, são reais agentes do fazer cultural nos horizontes mais diversos do nosso lugar: são descendentes de imigrantes, cantadores, ecologistas, e tantos outros rostos que emprestam o rosto e o corpo para as tradições culturais e históricas do Espírito Santo.
Aqui, nessa observação que se revela intimista, não por escolher uma proximidade particular de seu objeto central, mas por perceber, no cotidiano de seu protagonista, a feição vívida de uma alma inundada pela arte, Orlando Bomfim Netto, esse cronista que escreveu pela letra de suas imagens, observa o cotidiano de um homem encantado, o mesmo que empresta o nome ao título, Mestre Pedro de Aurora, o último tirador de jongo.
Tambores. Vozes. Corpos. Rostos que demonstram, em suas expressões, o rastro de uma cultura que resiste. Afinal…
Tambores. Vozes. Corpos. E o sorriso de Mestre Pedro enquanto canta, enquanto fala do jongo e da herança cultural que aprendera.
Tambores. Vozes. Corpos que dançam a “dança mágica dos escravizados”.
Os escravos acreditavam que essa dança tornava invisível os seus mestres, magia que poderia ser muito útil a favor da luta pela libertação daqueles corpos que, ainda que tornados cativos, insistiam em dançar…
Curioso… se o jongo tinha mesmo esse poder mágico da invisibilidade, por que os enxergamos tão lindamente nesses planos que parecem, a cada nova cena, se deixar cativar pelo ritmo do tambor, pelo movimento dos corpos, pelos versos cantados… até tornar-se, ele mesmo, o próprio filme, uma cantiga que reverbera a poesia de uma composição transcendental.
Capítulo Cinco: Lugares – Volume I
Filme citado: Lugar de Toda Pobreza
Diretor: Amylton de Almeida
Ano: 1983
Não me parece justo traçar uma cartografia, sobretudo por carregar a pretensão de ser chamada de poética, sem observar, para além dos aspectos culturais da tradição capixaba, obras mais críticas e diretas de nossa produção audiovisual. Tampouco me parece honesto considerar que o cinema, ao menos enquanto conceito de produção artística, seja apenas o que está direcionado às telas das salas escuras, dos festivais e mostras, sempre tuteladas por um olhar curatorial. Cinema pode ressoar em outros lugares, nas telas não tão grandes de uma televisão, ou no luminoso universo dos celulares, na palma de nossas mãos. Cinema é, como já dito, linguagem. E, enquanto linguagem, pode ocupar o lugar que precisa. Se “lugar de poesia é na calçada”, como canta o cachoeirense Sergio Sampaio, lugar de cinema é no olho, nos ouvidos, na presença de quem se dedica, por menor que seja o tempo da fita, do filme, do vídeo, a receber os sons e imagens que o constituem como tal.
Assim sendo, também não me parece justo caminhar por essa história sem observar esse filme, feito para a TV, sob direção de Amylton de Almeida, cineasta e crítico de cinema com extensa e longínqua produção artística e intelectual.
Acredito ser plenamente possível chamar Lugar de Toda Pobreza de documentário, alçando-o a este lugar muitas vezes idolatrado pela cinefilia e que, tantas vezes, exclui de seu panteão os produtos da TV brasileira. Lugar de Toda Pobreza é, talvez, a obra mais diretamente crítica que esta série se propõe a observar. Aqui, os corpos não dançam, não celebram, talvez não sonhem, mas são, novamente, corpos que trabalham… corpos que, em condições precárias, resistem porque precisam sobreviver.
O cenário é o antigo lixão de São Pedro, tradicional bairro da Grande Vitória, lugar onde as figuras das pessoas se misturam com o lixo, em uma imagem de caos e labuta. São olhares cansados, mãos cansadas, rostos cansados, vozes cansadas. Todo movimento, aqui, parece custar demais. Todo gesto, por menor que seja, soa carregado de significados: a angústia de um tempo sofrido, já não mais nos distantes anos de escravidão, como as imagens de Alvarado em seu Mastro do Bino Santo, mas agora em meados dos anos 80, talvez o tempo da trilha derradeira que em breve culminaria na redemocratização do país, mas que ainda gritava os ecos da injustiça de outros tempos: todos os tempos. Esses corpos, rodeados de lixo, o desprezo material dos homens, reclamam de sua condição tenebrosa, mas raramente surgem parados em tela, pois estão sempre cercados de trabalho, movimentando-se por entre entulhos, sobras, dejetos, sujeira.
Por pouco a câmera não os perde no cenário, porque seus corpos se mesclam ao lugar… esse lugar de toda pobreza.
Mas então, quando esses indivíduos cansados param e olham diretamente para a câmera, comentando sobre suas dificuldades e declarando ao mundo seu desassossego, suas histórias se sobressaem, por um instante deixam de pertencer ao lixo, porque, finalmente, reformularam a equação: precisam dele, pois é de lá que tiram seu sustento, mas se fazem necessários, fundamentais, soberanos, pois dão ao lixo uma função que lhes sirva como modo de enxergar, ainda que nos escombros de algum entulho, um caminho possível, um horizonte para onde possam mirar, um destino pelo qual possam, finalmente, sonhar e, sonhando, descansar.
Capítulo Seis: Lugares – Volume II
Filme citado: Perto da Minha Casa
Diretores: Carol Covre e Diego Locatelli
Ano: 2013
Das possibilidades do cinema, talvez a mais bela seja esta capacidade singular de ressignificar os espaços, sobretudo quando essa reconfiguração se dá a partir da vivência dos indivíduos que, inseridos naquele espaço, o reconstituem. Reconfigurar um espaço, entretanto, requer o frescor de um olhar capaz de observar o movimento de ressignificação que é, pelo cinema, sempre possível.
No começo dos anos 2010, uma nova geração de realizadores surgiu no cenário audiovisual capixaba. Era um tempo de renovação de olhares e modos de se fazer cinema no Espírito Santo, que já vinha acontecendo desde o início dos anos 2000. Não digo, claro, que o surgimento dos cursos de Rádio e TV em Vila Velha e a graduação em Cinema e Audiovisual foram os primeiros responsáveis por fazer brotar a geração responsável pelo chamado cinema universitário por aqui, visto que, ainda nos anos 1980, a geração do vídeo, também advinda da universidade, diretamente influenciada e mobilizada pela chegada dos equipamentos ao campus da Ufes, construíram seu lugar definitivo na história do fazer audiovisual capixaba. Mas é inegável o vigor dos novos ventos trazidos pela nova geração.
Dito isso, faz-se necessário observar essa brincadeira que Carol Covre e Diego Locatelli realizam com seu documentário Perto da Minha Casa, uma contemplação do processo de reimaginação de um espaço determinado, aparentemente inóspito e sem sentido, na cidade de Vila Velha. Perto da Minha Casa se detém em um grupo de jovens que, no intuito simples de passar o tempo, decide frequentar um determinado lugar, cuja função, até então, parecia inútil. Entre uma quantidade inumerável de containers, figuras juvenis brincam como crianças em um parque, reconstituem o lugar com seus corpos, alterando a função do espaço, inserindo nele a vivência de sua existência pueril.
É um sintoma temporal, nessa renovação de olhares e modos de produção resultante do surgimento dessa nova leva de realizadores no começo dos anos 2000, que o próprio filme se deixe contaminar, depois de apresentar os personagens e seu mote principal, pela vivacidade dos indivíduos que filma.
Essa renovação é, também, uma renovação de linguagem: é reconhecer na própria imagem sua natureza autônoma, é uma espécie de didatismo ao contrário: é entregar ao espectador uma obra viva e rica, capaz de dizer e desdizer, formular e desconstruir, reconstruindo-se através de sua própria forma, construindo a partir dela um legado, constituído também de outras obras contemporâneas, que assume o artifício como aspecto fundamental da linguagem audiovisual.
Capítulo Sete: Feitiço
Filme citado: Para Todas as Moças
Diretora: Castiel Vitorino Brasileiro
Ano: 2013
Castiel Vitorino Brasileiro. Brasileira.
Para Todas as moças é, ao mesmo tempo, uma expressão poética por si só, uma reza e um tratado decolonial. É um grito de afirmação que transcende a superfície das imagens, reverbera no som da declamação que, se por um lado parece uma canção espiritual, por outro atinge a força mais brutal de uma corrente de retorno, como uma tormenta que se vinga, com palavras e imagens, de toda a História, com H maiúsculo, que traspassou corpos como este que, em tela, exibe sua existência.
Castiel Vitorino Brasileiro. Brasileira.
Macubeira. Travesti. Artista.
Castiel, um corpo… ou melhor, uma corpa, como ela mesma costuma dizer. Uma corpa que pertence a todos os lugares e a lugar nenhum. A expressão definitiva da capacidade que as imagens tem de, postas em tela, proporcionar tempestades e tormentas nos padrões pré-estabelecidos aos corpos… as corpas…
Para todas as moças é um filme e um ponto de macumba. É a canção e a poesia de um travesti, negra, é a declaração de uma bicha preta e macumbeira, que olha de volta para o país que traumatiza corpos, corpas, como este que vemos em tela, celebrando em si mesmo a não assimilação de sua existência no mundo.
Porque, afinal, Castiel não quer ser assimilada por este país que ela mesma, em outro ponto de sua carreira, vai chamar de traumático, em um trocadilho inteligente que ela mesma devolve para seu sobrenome. O trauma é brasileiro.
Com a descrição certeira de seu ritual que propõe uma cura, Castiel devolve a esses corpos e corpas marginalizados pela História, pela Política e pelo próprio cinema, as armas com as quais se pode lutar.
Seu antídoto é tão profundo que mergulha fundo: na consciência coletiva, na trajetória histórica dos indivíduos invisibilizados e massacrados através dos tempos, no significado de sua corpa de travesti negra e macumbeira.
Castiel confirma, em si mesma, a ancestralidade das mãos, olhos, boca, dedos, ânus, testículos femininos, de uma nação inteira. Sim, pois os corpos que representa através de si mesma, como um símbolo vivo, mutável e transgressor, são ainda parte dessa nação violenta, brutal e desgraçada.
Não à toa, Castiel encerra sua reza, seu canto, seu enigma mágico, seu curta-metragem, com as instruções exatas que condicionam os efeitos de seu feitiço audiovisual, pois é isto que Para todas as moças realmente é: um feitiço de travesti. As regras são ditas, ao fim desse ritual sobre o qual estamos todos, irremediavelmente, enfeitiçados:
… Castiel, então, nos revela, como mensageira de todas as almas, a origem de nossa desgraça, de nossa necessidade de cura; nos diz, finalmente, o que é preciso romper.
É preciso descolonizar a poesia, é preciso descolonizar o processo de cura, é preciso descolonizar, enfim, o cinema.
Capítulo Oito: Final?
Filmes citados: Remendo (Roger Ghil, 2023), Procuro Teu Auxílio para Enterrar um Homem (Anderson Bardot, 2022) e Toda Noite Estarei Lá (Tati Franklin e Suellen Vasconcelos, 2023); e todos os outros já citados durante a série.
Percorremos esse trajeto desde sua invenção, passando por territórios diversos e instâncias definitivas do fazer audiovisual capixaba, até chegar no terreno cada vez mais preciso da reinvenção.
É impossível prever o que ainda está por vir neste território vasto e antigo do cinema capixaba. Mas traçar uma cartografia, sob o prisma da visão poética, me permite imaginar, a partir do cenário do presente, uma vastidão de caminhos possíveis.
Caminhos que ultrapassam a barreira dos limites cartográficos, como os filmes Remendo, de Roger Ghil, Procuro teu auxílio para enterrar um homem, de Anderson Bardot; ou os longas Toda Noite Estarei Lá, de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin, e Os Primeiros Soldados, de Rodrigo Oliveira, que recentemente percorreram os mais importantes e variados festivais de cinema pelo Brasil e ao redor do mundo. Todos esses filmes foram feitos aqui, no Espírito Santo, por gente daqui.
Talvez então, a partir dos registros poéticos dessa cartografia, que tanto olhou para as produções do passado a fim de compreender o presente de nossa cinematografia, seja possível também observar o futuro, imaginando-o.
O que ainda virá?
O que ainda pode esse nosso cinema?
Ainda é tão urgente e necessário chamá-lo de nosso?
A vontade era dizer que alçamos voo, alcançamos outras paragens, e já podemos deixar esse caminho se fazer sozinho, germinando e crescendo, gigantesco.
Mas ainda é preciso olhar com zelo para esse terreno fértil. Não se faz cinema sem incentivo, não se trabalha a cultura sem investimento. Ao menos não sem o objetivo de, finalmente, alçar voo.
O caminho ainda é longo.
O trabalho é perene.
Sigamos.
Cartografias Poéticas para um (Im)Possível Cinema Capixaba foi realizada com apoio da Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo e com recursos do Funcultura.