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Vol. 01 - Nº 02 - 2020

Fronteira e urbanidade latino-americanas a partir do documentário Terras

O documentário Terras (2009), dirigido pela brasileira Maya Da-Rin, retrata a tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, onde, de acordo com sua sinopse “as cidades gêmeas Letícia [Brasil] e Tabatinga [Colômbia] formam uma ilha urbana cercada pela imensa floresta amazônica. As delimitações territoriais são muitas vezes encobertas pela densa vegetação e as fronteiras se confundem nos rostos de seus moradores”. Nele, os habitantes das duas cidades retratadas contam suas experiências e perspectivas acerca da(s) fronteira(s).

Ainda que heterogêneas, as cidades são construídas numa lógica excludente e pré-estabelecida, reforçando e sustentando as divisões sociais. Esta, por sua vez, produz fronteiras cuja materialidade é escassa, sendo operada a partir de um imaginário coletivo (e suas sustentações legais/econômicas) que definem onde os sujeitos sociais podem ou não estar, viver, trabalhar, desfrutar. A rua de um bairro nobre é em teoria de livre acesso, mas não é qualquer pessoa que pode transitar livremente. Ou mesmo com a sua representação nos mapas, onde linhas fazem essa divisão que não existem geograficamente. Ao mesmo tempo estão as construções que marcam as fronteiras: muros, cercas, pontes.

Os planos iniciais do filme tateiam as texturas da floresta: terra, rochas, folhas numa diegese cujo som remete ao cantarolar dos pássaros e o movimento das folhas. Aos poucos, os primeiríssimos planos vão dando espaço aos asfaltos, ao cimento, enquanto a sonoridade é consumida pelo som de carros e buzinas. Isso nos traz um elemento importante tanto para a obra quando para a temática abordada: a coexistência do rural e urbano.

Em seu ensaio sobre a imaginação pública e os limites tênues entre realidade e ficção, Josefina Ludmer aponta que as divisões outrora bem definidas entre campo e cidade e literatura rural e urbana se dissolvem a partir dos anos 1990, dando lugar a “[…] outros mundos que não reconhecem as dualidades tradicionais. Que absorvem, poluem e desdiferenciam [regressam ao primitivo] o separado e os opostos e traçam fronteiras “ (Ludmer, 2010: 127). E o cinema também acaba por ter suas fronteiras menos delimitadas.

Ludmer destaca que a cidade latino-americana se barbariza tanto na ficção como na realidade. As favelas (Brasil), as villas miseria (Argentina), as comunas (Colômbia), as callampas (Chile), as ciudadelas (Bolívia), os cinturónes (México) de um um lado e os condomínios fechados de outro possuem uma lógica em comum no que tange à uma tendência global que Ludmer (2010: 129) se refere como “divisão global’. Segundo a autora

Assim como ele mesmo está contido num regime global “universal”, com outra consciência histórica, o regime territorial urbano latino-americano (que é o social e a encarnação nacional do global) contém em si outras formas. As cidades grosseiramente divididas do presente contém áreas, edifícios, habitações e outros espaços que funcionam como ilhas, limites precisos. (Ludmer, 2010:130)

Já Becker, neste sentido, indica que

A fronteira amazônica só pode ser interpretada a partir da inserção do Brasil no capitalismo global decorrente da nova escala da relação capital-trabalho tendo como referência a produção de um espaço planetário onde os Estados nacionais conservam suas funções de controle, hierarquização e regulação, e como base o espaço. (Becker, 1988:66)

O filme apresenta uma fronteira onde reinam as motos, que circulam pela cidade envolta pela maior floresta tropical do mundo; de outro lado, os barcos transitam entre os três países. E conta um pouco, a partir de alguns moradores, como se deu sua povoação moderna para chegar a tal cidade urbana, motorizada e turística. Afinal, como continua Becker “A fronteira é um espaço em incorporação ao espaço global, que é o espaço urbanizado, e sua incorporação se efetua através do núcleo urbano, condição-chave da ordenação do espaço territorial e social” (Becker, 1988:73)

O filme, no entanto, transita entre diversas fronteiras para além das geográficas. Primeiramente linguística, quando abarca o português, o espanhol, bora e tikuna em suas narrativas, enfatizando a diversidade cultural e identitária das cidades em questão; e segundo, na sua abordagem – a partir de uma visão nicholiana do documentário – ao utilizar tanto dos modos considerados como observativo e participativo. A câmera muitas vezes está imóvel, apenas captando os movimentos que se dão a sua frente; e em outros momentos, se põe nos espaços, adentrando, seguindo, interferindo. Ou seja: ideia de fronteiras bem definidas é posta em questão em diversos níveis.

O primeiro entrevistado é um colombiano que trabalha como taxista. A câmera vai no banco de trás, como um passageiro, conversam entre si. Ele afirma, a medida que dirige, que “Leticia [Colômbia] e Tabatinga [Brasil] foram divididas por uma fronteira imagnária” porque, em sua visão, as duas cidades são uma só, um só povoado. Por outro lado, traz que “As fronteiras servem para tirar a liberdade. Para impedir o tráfego e o desenvolvimento de algumas pessoas”. Logo no inicio do filme, há um elemento importante nesse sentido: a presença do controle (com suas muitas brechas e vícios) nas fronteiras, aqui representada pelo aparato militar. Uma espécie de axioma quando se trata de fronteira, principalmente as terceiro-mundistas.

O taxista ainda assegura que pelo menos cinquenta por cento da população de Letícia vem “de fora”, ou seja, não nasceu aí. Dentre os migrantes, cita principalmente os costeños (Caribe) e os paisas (Colômbbia), além dos desplazados (deslocados, refugiados) que fogem do conflito armado. Para ele, a fronteira é vista e vivida como um local ideal para se esconder e, seguramente, se deslocar para outro país.

As fronteiras possuem essa característica de abrigar diversas culturas e etnias, principalmente por ser interseção de lugares de configurações políticas-econômicas-geográficas muitas vezes diferentes, mesmo estando tão perto. Ludmer traz a definição de território como

[…] Uma delimitação de espaço e uma noção eletrônico-geográfico-econômico-social-cultural-político-estética-afetiva-de-gênero-e-sexo, tudo ao mesmo tempo. Perpassa os diferentes campos de tensão e todas as divisões e podemos pensar em fusão.(Ludmer, 2010:122)

Os estudos sobre fronteira dentro da academia têm aumentado nas últimas décadas, bem como a crescente presença da temática em filmes, programas de TV, podcasts, artes visuais, literatura etc. O Brasil hoje conta com um programa de pós-graduação em estudos de fronteira, oferecido pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), além de diversos outros grupos de estudo, revistas e eventos em Universidades não só brasileiras, mas de todo o mundo.

Uma indígena Bora é a segunda personagem a aparecer no filme. Ela levanta um apanhado histórico do processo de apropriação e delimitação das terras – antes pertencentes a seus ancestrais e que, portanto, agora deveriam estar sob cuidados e domínio de sua família. Agora, num contexto mais urbano, essas delimitações – outrora entre comunidades/etnias – se concentram mais numa questão nacional, onde também entram as interações globalizadas. Segundo ela, “Antigamente era proibido conviver com outras tribos. Agora não. Agora há gringos que vivem com indígenas, tudo misturado”.

Suas histórias vão sendo contadas em meio a polifonia da mata e os sons dos machetazos [facões], que vacilam entre troncos e cipós. A câmera a segue, acompanhando seu trajeto narrativo. Ela diz que a terra é a mãe, portanto, dividir seria como cortar seu corpo, e pergunta para a lente: “você arrancaria o braço da sua mãe?”. Ludmer, ao abordar a cultura indígena em seu estudo, nesse sentido afirma que ela

[…] Tem uma relação totalmente diferente com seu território. As mapuches dizem que o homem é complemento da terra e de tudo que o rodeia; que é parte de um território e não seu dono. E não pedem o direito a terra, mas sim ao território. Reclamam seus territórios usurpados primeiro pelos espanhóis e depois por mikitares argentinos. Reclamam direitos territoriais como direitos humanos e pedem uma política de rearranjo territorial. (Ludmer, 2010: 125)

Maria Lugones, em seu livro Pilgrimages/Peregrinajes [Peregrinações], teoriza sobre os pontos de interseção e dominação que os sujeitos experienciam ao transitarem pelos espaços, e propõe (também fazendo-o) um exercício metafórico de se localizar [eu múltiplo] no mapa [espaço múltiplo].

Visualize, lembre e sinnta um mapa que foi desenhado pelo poder em suas várias formas e direções e onde há um lugar para você. Todas as estraas e lugares estão marcados como lugares onde você talvez deva ou não ocupar. Sua vida é espacialmente mapeada pelo poder. Seu lugar está no cruzamento de todos os locais onde você deve ou não viver ou se mudar. (Lugones, 2003:15)

Ou seja, a ordem dos espaços é pensada através das relações de poder que estão em choque e constroem as relações e movimentos. A personagem Bora traz a aparelhagem burocrática que molda a vida contemporânea, mencionando a necessidade de um Estado para proporcionar condições que os permita, por exemplo, comprar comida. Mas expõe que sua alimentação era retirada da terra, não dos mercados. Territórios tomados, delimitados e protegidos, para que cumpram sua função na lógica do capital. Ainda assim, encontra-se numa situação de cruzamento, pois essa urbanidade a qual se refere ainda possui muito do que seria seu oposto – o rural. O modo de estar na casa: cozinhar, dormir, limpar se mantêm como herança familiar. O ritmo mais devagar, as manualidades, o contato constante com a terra.

Gloria Anzaldua, ao teorizar sobre a dualidade e multiplicidade vivida pela mulher mestiza, aborda constantemente a questão da(s) fronteira(s). Ela defende a ideia de que a situação de fronteira pede que se tenha olhos de serpente e águia a mesmo tempo.

O choque de uma alma esmagada entre o mundo espiritual e o mundo técnico as vezes a sobrecarrega. Presa em uma cultura, encarcerada entre duas, abrangendo todas as três culturas e seus valores, um mestiço passa por uma luta de corpo, uma luta de fronteiras. Uma guerra interna. (Anzaldua: 78, grifo nosso)

O filme se adentra a esses diferentes espaços, sendo o ato de transitar um traço primordial na obra. Isso se mostra nas entrevistas, que se dão geralmente em movimento: no carro, no barco, no caminhar, o que nos faz perceber, portanto, choque de montagem em várias cenas. Um exemplo disso é, do som acústico dos chocalhos para as batidas techno, a sequência em que acompanhamos um ritual de toma de ayahuasca [chá com potencial alucinógeno], em um contexto onde há uma atmosfera de xamanismo e espiritualidade, somos, em seguida, levados a uma boate onde casais dançam e os mais velhos se embebedam. As multiplicidades (e contrastes) da densidade noturna, afirmam, como traz Becker:

A fronteira não pode ser mais pensada exclusivamente como franjas do mapa em cuja imagem se traduzem os limites espaciais, demográficos e econômicos de uma determinada formação social. Uma nova definição de fronteira mais abrangente torna-se necessária, capaz de captar sua especificidade – como espaço excepcionalmente dinâmico e contraditório – e a relação desta com a totalidade de que é parte. (Becker, 1988:62)

A personagem Bora conta sobre o caso de um tio que vive em território colombiano que foi visitar um parente no Brasil e a polícia Federal não permitiu sua entrada, pois não possuía documentos. Para ela, a ideia de países não existe, pois toda essa família é um território só. “Por isso digo que para os indígenas não existe fronteira. Para mim, pelo menos, não há fronteira. Posso ir onde quiser, sabe por que? Tenho família lá.”

Desta maneira, a obra se constrói em torno dos paradigmas e imaginários urbano-fronteiriços, para então desdobrar suas problemáticas, singularidades e potências, a fim de que não se caia em dualidades herméticas que apequenam as diversidades e tornam-se uma política de controle, destruição e obstrução.


Referências

Anzaldúa, Gloria. Borderlands/La frontera: the new mestiza. 1st ed. San Francisco: Aunt, Lute, 1987.

Becker, Bertha K. Significância contemporânea da fronteira: uma interpretação geopolítica a partir da Amazônia Brasileira. In: Fronteiras. Aubertin, Catherine (org.). Brasília: Editora Universidade de Brasília; Paris: ORSTOM, 1988.

Ludmer, Josefina. Aquí América Latina: una especulación. 1a ed. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, pp. 127-148, 2010.

Lugones, Maria. Pilgrimages/Peregrinajes: theorizing coalition against multiple oppressions. Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2003.

Luciana GB é formada em Cinema e Audiovisual pela UFES e Mestre em Estudos Latino-Americanos pela UNILA. Atualmente integra o Cineclube El Caracol e pesquisa sobre os Festivais de Cinema Indígena.

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